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SENHORA B.jpg

CENA: O palco está vazio. Das laterais os quatro atores entram cada um carregando uma cadeira. Eles estão vestidos de uma forma elegante e sóbria – ternos para os atores e um conjunto de calça e blazer para as atrizes em cores escuras. Posicionam as cadeiras no centro do palco e sentam.

 

JUNTOS: Boa noite!

 

ATOR 1: Os caríssimos espectadores, serão apresentados hoje a digníssima senhora B! Uma dama impressionante! Suas histórias parecem inacreditáveis... talvez até inverossímeis! Mas não tenham dúvidas, senhoras e senhores, tudo que será dito aqui é a mais pura expressão da verdade!

 

ATRIZ 1: Antes de começarmos, gostaríamos de avisar que algumas das histórias que serão contadas aqui não são muito agradáveis!

 

ATOR 2: Aliás, elas não são nada agradáveis!

 

ATIRZ 2: Exatamente por sua veracidade elas podem se tornar chocantes! Por isso, se houver entre os senhores alguém com uma sensibilidade muito grande...

 

ATOR 1: Cardíacos, sentimentais, chorões e coisas do gênero...

 

ATRIZ 1: Solicitamos que se retirem da sala!

 

ATOR 2: As narrativas podem ser pesadas e causar um certo desconforto... Talvez reações destemperadas... náuseas...

 

ATRIZ 2: Também podem causar leves sorrisos, risos discretos ou gargalhadas escandalosas...

 

ATOR 1: Isso mesmo! Sorrisos, risos e gargalhadas! Sendo assim... riam.... gargalhem... se tiverem vontade ou forem obrigados a isso! Não tenham medo, nem vergonha!

 

ATRIZ 1: E não se preocupem... O riso e a gargalhada nem sempre são expressões de felicidade...

 

ATOR 2: Mas é muito importante lembrar que...

 

ATRIZ 2: Não nos responsabilizamos pelas reações que as narrativas podem causar...

 

ATOR 1: O valor dos ingressos não será devolvido!

 

ATRIZ 1: Reações violentas serão reprimidas pelos seguranças contratados! Eles estão disfarçados na platéia... entre os senhores...

 

ATOR 2: Não duvide! Esse desconhecido sentado ao seu lado pode ser um exímio lutador de karatê...

 

ATRIZ 2: (APONTANDO PARA ALGUÉM) Ou essa doce senhora pode ser uma lutadora de vale tudo!

 

ATOR 1: Pensem bem antes de tomar qualquer atitude! Se desejarem ficar... serão bem vindos, mas volto a dizer: pensem bem...

 

ATRIZ 1: Aguardaremos alguns instantes para que tomem uma decisão!

 

(OS QUATRO FICAM EM SILÊNCIO. UM BARULHO DE RELÓGIO (TIC-TAC) PODE TOCAR AO FUNDO. DEPOIS DE ALGUNS INSTANTES OS ATORES SE ENTREOLHAM E CONTINUAM)

 

ATOR 1: Bom... acreditamos que já tomaram uma decisão e podemos iniciar...

 

ATRIZ 1: Nossa história começa há muito tempo... num tempo perdido no próprio tempo... Era um ano bissexto e a menina B nasceu exatamente no dia 29 de fevereiro...

 

ATRIZ 2: Ela prefere não revelar o ano... razões pessoais...

 

ATOR 2: A menina nasceu de forma natural em casa sem ajuda de parteiras! O pai morreu no parto!

 

ATOR 1: Não foi a mãe?

 

ATOR 2: Não! Foi o pai mesmo! A emoção foi demais para o pobre homem! Teve um ataque fulminante e irrecuperável! O pobre homem morreu sentado em frente a cama do casal onde a mãe da senhora B deu a luz a menina!

 

ATRIZ 1: Os bombeiros que foram recolher o corpo ficaram espantados. Encontraram a mãe da senhora B amamentando a criança e as duas ainda estavam ligadas pelo cordão umbilical! Dizem que a mulher relutou em cortar o cordão... Queremos avisar aos caríssimos espectadores que essa informação não foi totalmente comprovada!

 

ATOR 2: O suposto pai da senhora B...

 

ATRIZ 2: Suposto?

 

ATOR 2: (EXPLICANDO) Não se sabe ao certo se aquele pobre homem era realmente o pai da senhora B... (CONTINUANDO) O suposto pai da senhora B foi enterrado com honras de chefe de estado!

 

ATRIZ 1: Foi surpreendente porque era um homem comum sem importância alguma! Um homem como outro qualquer!

 

ATOR 1: Durante o velório, o enterro e nas missas que se seguiram, apesar da imensa multidão que se acotovelava para prestar a última homenagem ao falecido, a viúva, a mãe da senhora B, não verteu uma única lágrima!

 

ATRIZ 2: Diferente da criança que chorava sem consolo!

 

ATOR 2: Alguns acreditam que o motivo desse choro irritante era fome!

 

ATOR 1: Mas isso não tem nenhum fundamento! A mãe da senhora B mantinha a pequena constantemente no peito! Amamentou a filha até os oito anos! Só parou porque a menina começou a morder-lhe o peito com certa violência! O sangue misturava-se ao leite! E a mãe da senhora B, com toda razão, achou que isso não era bom! Essa mistura poderia causar algum tipo de anomalia na pequena!

 

ATRIZ 1: A menina B teve uma infância sem muitas atribulações....

 

ATRIZ 2: Diferente da maioria das pessoas!

 

ATRIZ 1: Era muito alva, muito clara, uma pele branca de porcelana. Parecia um bibelô, um enfeite de penteadeira...

 

ATRIZ 2: Nunca arranhou um joelho. Tinha os dois imaculados. Intactos! Motivo de grande orgulho por muito tempo.

 

ATRIZ 1: Nunca quebrou um osso do corpo! Porque nunca caiu! Esteve sempre de pé! Também motivo de grande orgulho!

 

ATOR 1: Teve todas as doenças infantis possíveis! E até enfermidades que não são próprias dos pequenos! Mas tudo foi curado pelos cuidados e atenções extremadas de sua mãe!

 

ATOR 2.: Apesar de todas essas doenças não tinha uma saúde frágil!

 

ATOR 1: Muito pelo contrário! Tinha uma saúde de ferro: faces coradas, dentes fortes, olhos brilhantes, cabelos volumosos, pernas e braços rijos...

 

ATOR 2: Era uma menina linda! Vestia-se como uma boneca!! A mãe não media esforços para encher a criança de fitas, babados e rendas... Mas esse tempo passou rápido... como deve ser...

 

ATRIZ 1: Relatos de pessoas próximas da senhora B afirmam que ela não gosta muito de lembrar desse tempo, nem tem vontade de voltar a infância...

 

ATOR 1: Diferente da maioria das pessoas!

 

ATOR 2: Porém sabemos que a maioria das pessoas mente!

 

ATRIZ 2: Não é possível apreciar um tempo em que não sabemos de nada, temos que aprender tudo, obedecer a todos, não temos vontade própria e ainda temos que frequentar escolas...

 

ATRIZ 1: Exatamente por isso, para sorte dela, a infância não demorou muito e a menina B transformou-se na adolescente B...

 

ATOR 1: A mocinha B teve também uma adolescência tranquila... sem maiores atribulações...

 

ATRIZ 2: A não ser pelo incidente da sua primeira menstruação...

 

ATOR 1: Ah... sim! Uma fatalidade! Um jorro de sangue tão poderoso que a mocinha B teve que ser internada!

 

ATRIZ 2: Os lençóis eram trocados de meia em meia hora empapados de suor e sangue!

 

ATRIZ 1: A mãe da senhora B já achava que também perderia a filha...

 

ATOR 1: Um milagre salvou a mocinha! É a única explicação! O primeiro milagre da vida da senhora B! De uma hora para outra a hemorragia cessou! Nunca mais teve esse problema! Tirando isso, ela teve uma adolescência tranquila...

 

ATRIZ 2: Diferente da maioria das pessoas ela vivia uma adolescência tranquila com a mãe... uma senhora digna e honesta...

 

ATOR 2: Como a maioria das pessoas...

 

ATOR 1: Não há registro de maiores discussões, nem zangas, nem nada que desabonasse a relação afetuosa entre as duas mulheres...

 

ATRIZ 2: A mocinha B só não gostava muito de jiló...

 

ATOR 2: Aliás... como a maioria das pessoas...

 

ATRIZ 2: Mas isso não era... de forma alguma... motivo de briga entre mãe e filha...

 

ATOR 1: A harmonia reinava absoluta naquele lar...

 

ATRIZ 1: Apesar da menstruação o seu corpo não se transformou! Mantinha o mesmo corpo de menina: sem seios, sem curvas.... uma tábua!

 

ATRIZ 2: Mas esse fato não intrigava as duas mulheres que viam aquela situação com muita naturalidade...

 

ATRIZ 1: Até a chegada do que chamamos de juventude B! Curiosamente a chegada da juventude aconteceu de repente...

 

(A ATRIZ 2 LEVANTA E VAI ATÉ A COXIA – PEGA DOIS BONECOS DO TAMANHO DE DUAS CRIANÇAS DE OITO ANOS. OS BONECOS NÃO DEVEM TER FEIÇÕES. SÃO BONECOS DE PANO QUE DEVEM SER ARRASTADOS PELA ATRIZ 2 QUE ANDA DE UM LADO A OUTRO DO PALCO DE FORMA EXAGERADA)

 

ATOR 1: Aconteceu num final de semana! Na sexta era uma mocinha, na segunda já não era mais... Os seios cresceram e ficaram fartos... as curvas generosas... uma beleza feminina tomou conta de seu corpo. E a então jovem B tomou uma decisão: não tomaria mais banhos! Depois dessa transformação, e talvez por causa dela, não deveria mais tomar banhos. Se manteria limpa, mas sem banhos. Imediatamente após essa transformação, deu-se outra... que foi mais sutil! Levou nove meses! Nove meses de transformação... sem enjôos e sem grandes desejos... Terminado esse período apareceram duas crianças. Seus filhos. Não se sabe se eram dois meninos, duas meninas ou um casal! Eram apenas duas crianças! (O ATOR 1 PARA E OBSERVA POR INSTANTES A CAMINHADA DA ATRIZ 2 PELO PALCO) Não se tem também notícias do suposto pai. Eram apenas duas crianças que ela arrastava por aí. Curiosamente não se tem notícias da presença da mãe da senhora B nesse período...

 

ATRIZ 2: (SEM PARAR DE CAMINHAR) Como era mesmo o nome da mãe?

 

ATOR 1: Que mãe?

 

ATRIZ 2: A Mãe da senhora B! Como era o nome dela?

 

ATOR 1: Mãe da senhora B!

 

ATRIZ 2: Não! O nome... como era o nome dela?

 

ATOR 1: Mãe da senhora B! É o nome que lhe cabe! (PEQUENA PAUSA) A senhora B fazia tudo com aquelas crianças! Arrastava as pequenas pelas mãos para realizar todas as suas atividades: comia, dormia, se vestia, vivia. Sempre unidas. Como trigêmeos siameses unidos pelas mãos...

 

ATRIZ 2: (SEM PARAR DE ANDAR) Até que um dia...

 

(UMA SONOPLASTIA COM BARULHO DE ÔNIBUS COMEÇA – ATOR 2 E ATRIZ 1 LEVANTAM-SE E FICAM EM PÉ ATRÁS DAS CADEIRAS. FAZ COMO SE ESTIVESSE EM UM ÔNIBUS EM MOVIMENTO – QUANDO O ATOR 2 FALA A ATRIZ 2 DEVE FAZER O QUE É DITO)

 

ATOR 2: A senhora B tomou um ônibus lotado ainda arrastando as crianças...

 

ATRIZ 1: Apesar de arrastar as crianças ninguém levantou para ceder lugar para aquela mulher...

 

ATOR 1: Não eram mais crianças de colo! Deviam ter mais ou menos 8 ou 9 anos... Eram grandes e quietas! Estranhamente quietas...

 

ATOR 2: A senhora B foi se ajeitando como dava... um empurrão daqui... um com licença dali... até que ficou bem ao lado de um homem... e aconteceu!

 

(ATRIZ 2 OLHA DE UMA FORMA EXAGERADA PARA O ATOR 1 QUE NÃO OLHA PARA ELA)

 

ATRIZ 1: A senhora B ficou como magnetizada... hipnotizada por aquele homem! Não conseguia tirar os olhos dele... Por seu lado o homem mantinha-se impassível! Parecia que só ele estava naquele ônibus! Sozinho e majestoso!

 

(PEQUENA PAUSA – O ATOR 1 E  A ATRIZ 2 FAZEM OS PERSONAGENS MUDOS E DE FORMA EXAGERADA)

 

ATRIZ 2: (SEM TIRAR OS OLHOS DO OUTRO) Não era um homem especial... era um homem comum... como muitos outros, mas ela não conseguia tirar os olhos dele. Estava agora presa pelas mãos e pelo olhar! O ônibus rodou muito até que...

 

ATOR 2: Chegou ao destino do homem! Ele fez o gesto característico para avisar ao condutor, o motorista, que ele, o homem, tinha chegado ao seu destino e desejava deixar o veículo! Para tal apenas puxou uma cordinha!

 

ATRIZ 2: (SEM TIRAR OS OLHOS DO OUTRO) Um gesto que não precisa ser ensinado! Um gesto conhecido por aqueles que têm o hábito de utilizar esse tipo de veículo!

 

ATRIZ 1: O ônibus parou! (ELES FAZEM O MOVIMENTO – A SONOPLASTIA PARA) E o homem saiu do veículo! (OS ATORES FAZEM O MOVIMENTO)

 

ATOR 2: A senhora B fez o mesmo sempre arrastando as crianças... os olhos grudados no homem... (OS ATORES FAZEM O MOVIMENTO)

 

ATRIZ 1: Andaram bastante! (ELES ANDAM PELO PALCO) A principio o homem não notou a presença da senhora B.

 

ATRIZ 2: (SEM TIRAR OS OLHOS DO OUTRO) Era inacreditável! Apesar de ter aqueles olhos grudados na sua figura o homem agia como se nada existisse. Apenas o seu destino. Ele caminhava sem parar. Até que...

 

(ELES PARAM)

 

ATOR 1: O homem teve um estranhamento! Sentiu que algo o seguia. Virou-se pra trás e viu a senhora B. Ficou por instantes olhando para ela como se tentasse entender. Até que perguntou: (COMO O PERSONAGEM) A senhora deseja?

 

ATRIZ 2: Sem pestanejar a senhora B respondeu: (COMO O PERSONAGEM) Desejo acompanhá-lo pelo resto de minha vida ou até o desejo acabar!

 

(PEQUENA PAUSA)

 

ATOR 2: Disse assim! De uma vez só! Sem pensar muito! Como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo!

 

ATRIZ 1: Era uma proposta estranha! E ao mesmo tempo encantadora! O homem que sempre soube o que queria respondeu:

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) Seu desejo pode ser realizado, mas não desejo conviver com crianças!

 

(SEM MOSTRAR NENHUM TIPO DE EXPRESSÃO A ATRIZ 2 VAI ATÉ A COXIA E JOGA OS DOIS BONECOS – ATOR 1 VIRA-SE PARA A PLATÉIA).

 

ATOR 1: (NORMAL) Não se sabe ao certo o destino das crianças. Apenas temos certeza que não houve remorsos de nenhuma parte.... Bom... pelo menos os adultos envolvidos não tiveram remorsos! As crianças não foram consultadas! Não temos notícias da opinião delas!

 

(ATRIZ 1 SE POSICIONA NA FRENTE DO PALCO. ENQUANTO FALA ATOR 2 ARRUMA OBJETOS CENOGRÁFICOS NO PALCO: MÓDULOS GEOMÉTRICOS COM RODAS. UM DOS MÓDULOS DEVE SER UMA CAIXA DE ONDE SAIRÃO OBJETOS PARA A CENA. DEPOIS ATRIZ 2 PEGA DOIS BONECOS – UM HOMEM E UMA MULHER – DE TAMANHO NATURAL E TAMBÉM SEM FEIÇÕES – ELE COLOCA O CASAL EM CIMA DOS OBJETOS COMO SE ELES ESTIVESSEM NUMA CAMA)

 

ATRIZ 1.: Não! A senhora B não teve remorsos! De jeito nenhum! Principalmente porque as crianças não tinham nome e por isso, de certa forma, não existiam!  A senhora B e o homem foram para casa dele! Passaram a viver juntos... Onde era mesmo?

 

ATOR 2: (ARRUMANDO OS OBJETOS) Numa pequena cidade do interior...

 

ATRIZ 2: Não! Não era, não! Era aqui na cidade mesmo! Era numa vila... não! Era num condomínio fechado! Um pequeno condomínio fechado desses que tem em todas as grandes cidades! O tipo de lugar onde as pessoas devem viver felizes! E era um lugar lindo! Maravilhoso! Um lugar onde as pessoas só podem viver, ou tentam viver, felizes! E a senhora B procurou viver feliz com o... o... (COMO O PERSONAGEM) Como é mesmo o seu nome?

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) Senhor Aranha!

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) Ah... senhor Aranha! Como um super-herói? O senhor joga teias?

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) Não! O meu poder é a ilusão! E o seu nome? Qual é?

 

ATIRZ 2: (NORMAL PARA A PLATÉIA) A senhora B mentiu: (COMO O PERSONAGEM) Meu nome é Alva!

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) Está bem, Alva! Seja bem vinda!

 

(ELE TERMINA DE ARRUMAR OS BONECOS E FICA OBSERVANDO OS DOIS SOBRE OS MÓDULOS. ATRIZ 2 SE APROXIMA E OBSERVA TAMBÉM)

 

ATRIZ 1: (NORMAL PARA A PLATÉIA) Não era seu nome verdadeiro, mas pelo menos era um nome! E a senhora B teve pela primeira vez a sensação que poderia ser feliz e ela procurou viver feliz com o senhor Aranha! E conseguiu! Uma felicidade absoluta! Plena! Apaixonante!

 

ATOR 1: (SEM TIRAR OS OLHOS DOS BONECOS) Irritante! Abjeta! Repugnante!

 

ATRIZ 1: Os dois viviam um para o outro! Isso era o que a senhora B acreditava! E podia mesmo ser verdade! Parecia, pelo menos, ser verdade!

 

ATOR 2: Depois de três anos juntos começou a acontecer algo impressionante: a senhora B era muito limpa, mas tinha um hábito estranho que adquiriu depois da adolescência... na chamada juventude B...

 

ATRIZ 1: A senhora B, como já foi dito antes, não tomava banho! De nenhuma forma! Penteava-se, maquiava-se e estava sempre arrumada. Não usava perfume, nem uma leve colônia, nem uma água de cheiro! Mas não fedia! Tinha um aroma até agradável e um inacreditável aspecto de limpeza.

 

ATOR 2: Por não se banhar, uma colonia de piolhos cresceu nos seus cabelos.

 

ATRIZ 1: Mas eles não a incomodavam! Não coçavam!

 

ATOR 2: Era uma sociedade organizada que se mantinha tranquila na cabeça da senhora B. A única situação desagradável era a impressionante fome dos membros dessa comunidade!

 

(ATRIZ 2 FAZ COM A BONECA O QUE DESCREVE: ARRANCA E JOGA A CABEÇA PARA O ALTO ENQUANTO FALA. OS ATORES BRINCAM DE JOGAR A CABEÇA UM PARA O OUTRO ENQUANTO FALAM – UMA SONOPLASTIA DE UM ZUMBIDO ESTRANHO COMEÇA AO FUNDO)

 

ATRIZ 2: A fome era tanta que a cabeça da senhora B, todas as noites, saia do corpo e voava pelo céu procurando comer com voracidade...

 

ATOR 1: Não se sabe como essa separação da cabeça se dava: se era por vontade da própria cabeça ou uma ação da organizada sociedade de piolhos que cortavam com delicadeza o pescoço para a cabeça poder voar!

 

ATRIZ 1: E não se sabe também o que fazia a cabeça voar. É de conhecimento público que cabeças não voam! Pelo menos não como os pássaros! Porém, muitos acreditam que o que fazia a cabeça voar era a fome...

 

ATOR 2: Nada escapava a imensa fome noturna da cabeça da senhora B! A cabeça voava e fazia um som estranho! Voava muito alto! Ia muito longe guiada por sua fome! Buscando comida para saciá-la!

 

ATRIZ 2: O incrível é que a comida não saia pelo pescoço! Uma cabeça sem corpo não pode reter a comida! Ela deveria cair pelo pescoço! Isso é o certo!

 

ATOR 1: A explicação lógica para isso é que a comida não ia para o pescoço, mas sim para a colônia de piolhos que devorava tudo com voracidade!

 

ATRIZ 1: E todos as noites a situação acontecia! A cabeça voava atrás de comida! NHAC! NHAC! NHAC! NHAC!!

 

ATOR 2: Dilacerante! Sem piedade! Ela devorava tudo o que via! NHAC! NHAC! NHAC! NHAC!!

 

(OS ATORES FAZEM O SOM DE FORMA MECÂNICA – A SONOPLASTIA CRESCE – ATÉ QUE ATOR 1 SEGURA A CABEÇA – A SONOPLASTIA PARA)

 

ATOR 1: Com os primeiro raios de sol a cabeça voltava para o corpo como se nada tivesse acontecido. Pousava nos ombros do corpo da senhora B e grudava. Essa operação acontecia com o auxílio da organizada colônia de piolhos! E na noite seguinte ela voltava a voar! E todos os dias o vôo noturno acontecia! E com isso todos ficavam felizes!

 

(ATOR 1 JOGA A CABEÇA NA COXIA)

 

ATRIZ 2: A sociedade de piolhos estava alimentada e a senhora B satisfeita!

 

ATOR 2: Até o senhor Aranha ficava satisfeito. Ele via a alegria da mulher e isso o enchia de prazer! O homem sabia perfeitamente o que acontecia durante a noite. E aceitava isso com muita naturalidade. O único inconveniente era uma mancha de sangue...

 

ATRIZ 1: Uma mancha de sangue?

 

ATOR 2: Uma pequena mancha de sangue! A senhora B dormia com a cabeça no ombro do senhor Aranha. Quando a cabeça se desprendia do corpo... o rompimento... produzia uma pequeno jato de sangue que manchava o ombro do senhor Aranha!

 

ATRIZ 1: Ah... é isso? Mas esse problema era facilmente resolvido pela senhora B! Todas as manhãs ela esfregava a mancha com um paninho úmido e a removia completamente! Os dois viviam uma felicidade plena e absoluta! Nada podia atrapalhar a união dos dois!

 

ATOR 2: Mas nada é para sempre! De uma hora para outra a mãe da senhora B retornou ao convívio da filha!

 

ATRIZ 1: A mãe da senhora B? Ela não tinha desaparecido?

 

ATOR 2: Não! Ela só não estava satisfeita com as crianças! Não queria ainda ser avó! E como as crianças desapareceram...

 

ATRIZ 1: Ah... bom!

 

(ATRIZ 1 PEGA UM XALE GRANDE DENTRO DO MÓDULO CAIXA E SE TRANSFORMA NA MÃE DA SENHORA B)

 

ATOR 2: Inconveniente como são todos os parentes, que esquecem que devem estar confinados as festas infantis, as de final de ano e aos álbuns familiares, a mãe da senhora B passou a frequentar a casa da filha com assiduidade. Primeiro vinha pela manhã para ver a filha acordar e saber o que ela tomava no café. Depois passou a vir a tarde para ver o que a filha almoçava e lanchava. Logo em seguida passou a vir a noite para ver como a filha jantava e ceava. E finalmente apareceu de madrugada pois queria saber como a filha dormia e sonhava... Numa dessas visitas deu com o corpo sem cabeça da filha deitado ao lado do senhor Aranha! E a velha se desesperou...

 

ATRIZ 1: (COMO A MÃE DA SENHORA B) Minha filha!! Minha filha está morta!! Minha pobre filha! Você matou minha filha!! Esse monstro cortou a cabeça da minha filha!!

 

ATOR 1: O senhor Aranha tentava explicar: (COMO O PERSONAGEM DESESPERADO) Ela não está morta! A cabeça está voando! Ela precisa se alimentar! Todas as noites ela faz isso! É normal! (NORMAL PARA A PLATÉIA)  Mas evidentemente a mãe da senhora B não acreditou no que o homem dizia! Nem achou aquela situação normal! Ela gritava alucinada!

 

ATRIZ 1: (COMO O PERSONAGEM) Ele matou!! Matou minha filha!! Arrancou a cabeça da minha filha!! É um monstro! Minha filha vive com um monstro!!

 

(ATRIZ 1 TIRA O XALE E SEGURA NA MÃO COMO SE NÃO FOSSE O PERSONAGEM)

 

ATOR 2: Logo os moradores do pequeno condomínio fechado apareceram no pequeno apartamento. A visão daquele corpo sem cabeça era terrível!

 

ATRIZ 1: E aquela velha senhora gritando que a filha estava morta era também desagradável! (COLOCA O XALE COMO O PERSONAGEM DESESPERADO) Minha filha!! Minha filha está morta! Esse monstro matou minha filha!!

 

(ATRIZ 1 CONTINUA A DIZER AS FRASES ENQUANTO ATOR 2 FALA)    

 

ATOR 2: Mas tinha algo que os habitantes do pequeno condomínio temiam mais do que o corpo sem cabeça e a velha a gritar... O escândalo! A possibilidade de serem apontados como moradores de um local onde aconteceu uma tragédia! Era o que eles mais temiam! Tinham medo que a felicidade fosse embora dali para sempre!

 

(ATRIZ 1 TIRA O XALE E SEGURA NA MÃO COMO SE NÃO FOSSE O PERSONAGEM)

 

ATRIZ 1:  Resolveram de comum acordo enterrar aquele corpo sem cabeça e não falar mais sobre o assunto! Apesar dos protestos do senhor Aranha:

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) A cabeça vai voltar! Esperem o dia amanhecer! Ela vai voltar e não vai encontrar o corpo!

 

ATRIZ 2: Mas ninguém deu ouvidos aos seus protestos...

 

(ATRIZ 2 RETIRA O CORPO SEM CABEÇA E O COLOCA NA COXIA)

 

ATOR 2: Com os primeiros raios de sol a cabeça voltou!

 

ATRIZ 1: A mãe da senhora B começou a gritar pedindo para que desenterrassem a filha! (COLOCA O XALE COMO O PERSONAGEM DESESPERADO) Minha filha! Desenterrem minha filha! A cabeça voltou! O aranha dizia a verdade! Desenterrem minha filha!!

 

(ATRIZ 1 CONTINUA A DIZER AS FRASES ENQUANTO H FALA) 

 

ATOR 2: Mas já era tarde! O corpo já estava enterrado e não seria elegante desenterrá-lo! A velha mãe da senhora B gritava sem consolo! Os moradores do pequeno condomínio decidiram, de comum acordo, expulsar aquela mulher velha do lugar! Uma velha histérica não combina com um lugar onde reina a felicidade! O próprio senhor Aranha mostrou para a velha histérica a saída! E não o fez de maneira educada!

 

(ATOR 1 ARRANCA O XALE DA ATRIZ 1 E O GUARDA NO MÓDULO CAIXA – ATRIZ 1 FICA EM SILÊNCIO ESTÁTICA NO MEIO DO PALCO)

 

ATOR 2: Alheia a isso tudo a cabeça voava procurando o seu pouso. Como não encontrou o seu corpo começou a procurar um lugar para pousar e descansar de sua viagem noturna! Escolheu o ombro direito do senhor Aranha como repouso... (ATRIZ 2 SOBE NUMA CADEIRA QUE O  ATOR 1 ESTÁ ENCOSTADO. ELA POSICIONA SUA CABEÇA SOBRE SEU OMBRO DIREITO) Aquilo se tornou um problema. Não só pela questão estética. Um homem com duas cabeças não é uma visão das mais agradáveis, mas esse não era o maior problema. O maior inconveniente era que a cabeça observava tudo (ATRIZ 2 OBSERVA TODA A PLATÉIA DE FORMA BASTANTE EXAGERADA) como se apontasse com o olhar os erros e defeitos de todos!

 

ATRIZ 1: E pior! Fora do seu corpo verdadeiro a cabeça começou a apodrecer! Um fedor insuportável tomou conta do pequeno condomínio! Mas a rotina da cabeça não mudava! Todas as noites ela saia para se alimentar! A colônia de piolhos não podia ficar sem comer! (ATRIZ 2 DESCE DA CADEIRA E SAI DANDO RODOPIOS E SALTOS)

 

ATOR 2: A situação era realmente desagradável. Principalmente para os moradores do pequeno condomínio que só queriam viver em plena felicidade. E uma cabeça fedorenta pousada no ombro de um homem e ainda por cima observando tudo... não combinava com uma ideia decente de felicidade. Os moradores reuniram-se e num consenso resolveram sugerir que o senhor Aranha fosse embora aproveitando, evidentemente, um momento que a cabeça não estivesse em seu ombro. E ele assim fez.

 

(ATOR 1 PEGA O BONECO DO HOMEM E SAI DE CENA COM ELE. ATRIZ 2 VOLTA ANDANDO NORMALMENTE)

 

ATRIZ 2: O senhor Aranha aceitou o conselho e desapareceu sem deixar vestígios usando o seu poder da ilusão. Mas ainda tinha um problema: a cabeça iria voltar! Ela não foi aconselhada. Nenhuma sugestão foi dada para ela. Eu sinceramente acredito que ela, se fosse aconselhada, não aceitaria o conselho. E nos primeiros raios de sol a cabeça voltou.

 

ATRIZ 1: Como não encontrou mais o ombro do senhor Aranha para o pouso resolveu que ficaria por ali mesmo não tendo corpo. No fundo gostava daquele pequeno lugar. E se instalou no campo de futebol do pequeno condomínio. No campo de futebol de salão! Próximo a piscina e a churrasqueira.

 

(ATRIZ 2 PULA EM CIMA DOS MÓDULOS , FICA DE CÓCORAS COMO SE ELA TODA FOSSE A CABEÇA E FICA OLHANDO A PLATÉIA DE FORMA EXAGERADA)

 

ATOR 2: Observava tudo! Sabia de todos os segredos! E com o tempo começou a crescer! Ficou imensa do tamanho de um homem adulto em pé! Com o crescimento o mau cheiro só aumentou! E ela observava! Nada escapava do seu olhar! Os moradores do local se sentiam vigiados por dentro... Não existiam mais segredos! Tudo poderia ser revelado...

 

(ATOR 1 VOLTANDO TRANQUILAMENTE)

 

ATOR 1: E aí surgiram novos problemas: não só a inconveniência daquela cabeça que observava... não só o fedor insuportável... não só o fato dos condôminos não poderem mais usar o campo de futebol... nem a piscina... muito menos a churrasqueira! Os inconvenientes maiores eram o escândalo e a possibilidade dos segredos revelados....

 

ATRIZ 1: E pior: o fim da felicidade! Aquela cabeça imensa e fedorenta afugentava qualquer resquício de dias felizes! Os moradores se reuniram e decidiram, de comum acordo, procurar a solução na fé! Chamaram um padre para benzer o local, mas não adiantou... Chamaram um pai de santo, depois um pastor, um monge budista, um exorcista... nada adiantava! Por fim, ainda de comum acordo, resolveram usar a violência! Armaram-se de paus e pedras e fizeram a cabeça em pedaços! (ATRIZ 2 DEITA SOBRE OS MÓDULOS) Depois enterraram os restos junto com o corpo e resolveram que aquilo nunca tinha acontecido...

 

ATRIZ 2: (AINDA SOBRE OS MÓDULOS) O tempo passou...

 

ATOR 1: E o tempo é poderoso! Cura tudo! Cura feridas e traz esquecimentos! E numa noite de grande tempestade aconteceu o milagre! O segundo milagre da vida da Senhora B! As águas penetraram na terra e colaram o corpo e cabeça da senhora B! Ela saiu daquela cova querendo esquecer...

 

(ATRIZ 2 LEVANTA E SE APRUMA)

 

ATRIZ 1: E a colônia de piolhos? O que aconteceu com ela?

 

ATOR 2: Sem o alimento que a manteve organizada por tanto tempo a colônia se extinguiu! Infelizmente não sobrou nenhum membro da organizada civilização!

 

ATRIZ 2: Depois do segundo milagre a senhora B percebeu que a vida poderia continuar, mas não naquele lugar! Não naquele lugar de felicidade! Precisava sair pra sempre daquele lugar! E foi! Saiu do condomínio... saiu da cidade... seguiu sem destino sem querer lembrar de nada... andou por dias, semanas, meses... até que chegou em uma outra cidade... uma cidade bem pequena... e viu uma casa. Entrou sem pedir licença e lá encontrou um homem que perguntou:

 

ATOR 2: (COMO O PERSONAGEM) O que a senhora deseja?

 

ATRIZ 2: E a senhora B respondeu: (COMO O PERSONAGEM) Desejo viver a minha vida até o desejo acabar! (NORMAL) Disse sem pensar no absurdo do que dizia!

 

ATOR 2: O homem aceitou aquela mulher ali, mas quis saber: (COMO O PERSONAGEM) Como é o seu nome?

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ATRIZ 2: A senhora B não poderia dar o nome que dera inicialmente, que afinal de contas nem era o seu verdadeiro e inventou um outro nome: (COMO O PERSONAGEM) Meu nome é Clara! (NORMAL PARA A PLATÉIA) E a senhora B também quis saber: (COMO O PERSONAGEM) E qual é o seu nome?

 

ATOR 2: (COMO O PERSONAGEM) Sou o senhor Coruja!

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) Um homem sábio! (NORMAL PARA A PLATÉIA) Sonhou a senhora B.

 

ATOR 2: Mas foi corrigida: (COMO O PERSONAGEM) Não! Um homem observador!

 

ATRIZ 1: E a senhora B ficou vivendo ali sendo sempre observada! Tentava mais uma vez ser feliz! Voltou a tomar banhos para não ter experiências desagradáveis! Os dias e principalmente as noites eram muito tranquilas. O senhor Coruja sempre a observar. Mas os problemas vieram quando ele disse:

 

ATOR 2: (COMO O PERSONAGEM) Clara, gostaria que você cozinhasse pra mim! Sinto fome quando volto para casa!

 

ATRIZ 1: Disse com calma! Como se tivesse o direito de pedir tal coisa! Como se fosse uma coisa normal!

 

ATOR 1: A senhora B pensou em se revoltar, em dizer verdades na cara do homem, mas não desejava a infelicidade! Aceitou o que o senhor Coruja pedia!

 

(ATRIZ 2 FAZ MOVIMENTOS COMO SE ESTIVESSE NA CASA DESCRITA POR H)

 

ATOR 1: A senhora B preparou-se para fazer comida depois que o senhor Coruja saiu, mas deparou-se com um problema: a casa era perfeitamente limpa... imaculada! Como um sonho! Um lugar que todos gostariam de viver! Pelo menos em tese! Tudo estava sempre no lugar! A cozinha era quase inacreditável de tão limpa e arrumada. Mas não tinha uma única panela no lugar. Nem uma pequena caçarola.

 

ATRIZ 2: E a senhora B percebendo que aquele lugar tão perfeito poderia acabar com sua felicidade falou:  (COMO O PERSONAGEM) A solução é chamar minha mãe!

 

ATOR 1: A mãe? A mãe da senhora B?

 

(ENQUANTO ATRIZ 2 FALA ATRIZ 1 TIRA O XALE DA MÃE DA SENHORA B DE DENTRO DO MÓDULO CAIXA E SE ENROLA)

 

ATRIZ 2: (NORMAL) Exatamente! A mãe da senhora B! Ela sempre acompanhou todos os passos da filha. Mesmo a distância! O tempo também passou para ela! Virou uma velhinha com uma voz grossa e rouca por causa do tabagismo. Vício que ela conseguiu abandonar, mas que ficou permanente na sua voz grossa. A velha frequentava a casa, mas evitava as madrugadas! Não queria mais surpresas desagradáveis. E em problemas culinários nada melhor que um conselho de mãe...

 

ATRIZ 1: A velha chegou na casa e perguntou: (COMO O PERSONAGEM) O que há minha filha?

 

ATRIZ 2: E a senhora B explicou: (COMO O PERSONAGEM) Minha mãe, o senhor Coruja quer que eu cozinhe para ele!

 

ATRIZ 1: (COMO O PERSONAGEM) Porque, minha filha? Porque ele pediu isso para você?

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) Ele se acha no direito de pedir isso! Ele tem esse direito, minha mãe?

 

ATRIZ 1: (COMO O PERSONAGEM) De certa forma! Se você dá esse direito a ele... o direito é dele!

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) Mas se ele sente fome quando volta para casa não sou eu que tenho que preparar a sua comida?

 

ATRIZ 1: (COMO O PERSONAGEM) Não, minha filha! Se ele tem fome, ele é que deveria preparar a sua comida! Mas tem coisas que não se explicam... Vivemos sem explicações e sem perguntas!

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) Eu não sei o que fazer...

 

ATRIZ 1: (COMO O PERSONAGEM) Não sabe cozinhar, minha filha?

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) Sei, minha mãe! Sei cozinhar! Mas para cozinhar preciso de panelas! E nessa casa não tem nenhuma panela. Nem uma pequena. Não quero pedir panelas para o senhor Coruja... tenho medo de desagradá-lo...

 

ATRIZ 1: (COMO O PERSONAGEM) Não se preocupe, minha filha! Para tudo existe solução! Você vai ter sua panela para cozinhar!

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) Onde, minha mãe? Onde está essa panela?

 

(ATRIZ TIRA O XALE E ABRE O PANO NA SUA FRENTE FAZENDO UM ARCO)

 

ATRIZ 1: (NORMAL PARA A PLATÉIA) A velha mãe explicou que a senhora B deveria colocá-la de cabeça pra baixo e abrir suas pernas...

 

ATRIZ 2: Entre susto e horror a senhora B procurava entender... mas no fundo não queria saber...

 

ATOR 1: E a mãe explicou que a comida seria feita dentro dela... nos seus buracos...

 

ATRIZ 2: Cada vez mais assustada a senhora B fez como a mãe dizia... virou a velha de cabeça pra baixo... abriu suas pernas e cozinhou naquela panela. Mas ficou com medo da reação do senhor Coruja. E se ele desconfiasse de como ela cozinhava. Daquela maneira de cozinhar...

 

(DURANTE A FALA ATRIZ 2 PEGA O XALE E O ENROLA FAZENDO UM BOLO)

 

ATOR 2: A noite o senhor Coruja chegou, sentou e pediu a comida que desejava. Queria o seu direito!

 

(ATOR 2 SENTA E ATRIZ 2 COLOCA NO SEU COLO O BOLO DE XALE. ATOR 2 FAZ MOVIMENTOS LENTOS ABRINDO O XALE DURANTE A FALA DA ATRIZ 2)

 

ATRIZ 2: Apreensiva a senhora B esperava o fim daquela comilança. Ela tinha medo que ele não gostasse. O gosto poderia estar desagradável. Não seria estranho até pela forma que aquele alimento foi cozinhado. E se o senhor Coruja desconfiasse aonde aquela refeição tinha sido preparada? Qual seria a reação dele? O jantar parecia não ter fim. A senhora B já não suportava aquela espera e o silêncio do outro. Até que o senhor Coruja terminou de comer e declarou:

 

ATOR 2: (COMO O PERSONAGEM) Nunca comi nada igual!

 

ATRIZ 2: E a senhora B quis saber: (COMO O PERSONAGEM) Estava bom? O senhor gostou?

 

ATOR 1: O senhor Coruja fez uma pequena pausa...

 

ATRIZ 1: Parecia uma eternidade...

 

ATOR 2: Até que ele declarou: (COMO O PERSONAGEM) A sua comida é maravilhosa!! Continue a fazê-la exatamente como você fez essa! Você tem mãos de fada!!

 

(ATOR 2 GUARDA O XALE DENTRO DO MÓDULO CAIXA E SAI DE CENA)

 

ATRIZ 1: Aquelas palavras soaram como mágica nos ouvidos da senhora B! O susto e o horror deram lugar a felicidade e ao orgulho! Mãos de fada! Era tudo que ela queria ouvir! Desse dia em diante e por muitas tardes a mãe da senhora B ia até a casa da filha e se transformava em pote!

 

ATOR 1: O senhor Coruja espalhou por toda cidade a sua felicidade. Vivia com uma fada que cozinhava divinamente. Mas o que aos ouvidos da senhora B soava como felicidade e orgulho aos ouvidos alheios soava como inveja e despeito! Logo todas as mulheres da cidade queriam saber como aquela mulher cozinhava tão bem! Queriam saber como temperava, como mexia e principalmente onde cozinhava!

 

(ATOR 2 VOLTA TRAZENDO UM BONECO FEMININO TAMBÉM SEM FEIÇÕES E SENTA NUM DOS MÓDULOS)

 

ATOR 1: Nesse momento surge uma pessoa que até então estava escondida... quieta em seu canto! Discreta e observadora na sua condição...

 

ATRIZ 2: A odiosa amante do senhor Coruja! Uma mulher muito invejosa!

 

ATOR 2: Vamos chamá-la de senhora Amante! Senhora C!

 

ATRIZ 1: É o nome que lhe cabe!

 

(ATRIZ 2 SENTA-SE AO LADO DE ATOR 1)

 

ATOR 1: A senhora C ficou com uma tremenda inveja daquelas supostas mãos de fada da senhora B. Ela aceitava resignada ser a amante, mas não queria elogios para outra. Fez se de amiga: (MANIPULANDO O BONECO ATOR 1 FALA COMO O PERSONAGEM) – Querida, como vai?

 

ATRIZ 2: E a senhora B, que por ingenuidade achava que não precisava se importar com aquela mulher, respondia: (COMO O PERSONAGEM) Bem, minha querida! Melhor impossível!

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM – MANIPULANDO O BONECO) É claro, querida! Ainda mais com essas mãos de fada! Sua fama corre por toda a cidade! Ah, minha querida, queria tanto provar da sua comida.... é possível?

 

ATRIZ 2: E a senhora B foi categórica: (COMO O PERSONAGEM) Não, minha filha! Impossível! A minha comida é só para o senhor Coruja! Somente ele pode comer a comida que eu faço!

 

ATOR 1: A senhora C pareceu aceitar o que a outra dizia... Mas certas mulheres não se contentam com um não...

 

ATRIZ 1: Na verdade, a maioria delas...

 

ATOR 1: A senhora C deu um jeito de se esconder na casa do senhor Coruja e viu como a senhora B preparava a comida... Principalmente aonde ela preparava... Sem pena, a senhora C começou as intrigas. Foi ao encontro do senhor Coruja e abriu o verbo: (ATOR 1 COMO O PERSONAGEM - MANIPULA O BONECO) Sei o segredo da sua “mãos de fada”!

 

ATOR 2: O senhor Coruja era observador e sentiu que aquela conversa não traria alegria, mas quis saber: (COMO O PERSONAGEM) Segredo? Existe um segredo?

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) Sempre existe um segredo!

 

ATOR 2: (COMO O PERSONAGEM) E qual é o segredo?

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) Sabe onde ela faz a comida que você tanto gosta? A comida que o senhor espalhou pela cidade que era feita por mãos de fada?

 

ATOR 2: (COMO O PERSONAGEM) Não sei! Você sabe?

 

ATOR 1: (PARA A PLATÉIA) E a senhora C disse como se cuspisse uma blasfêmia: (COMO O PERSONAGEM) Eu sei! Num lugar imundo! Ela faz sua comida dentro da própria mãe!! Nos buracos dela! Uma coisa monstruosa!! Imunda!!

 

ATOR 2: (PARA A PLATÉIA) Uma notícia dessas não pode ser recebida impunemente! E não foi diferente com o senhor Coruja!

 

ATRIZ 1: Ele teve primeiro uma estranha sensação de alegria! Sentia se pleno! Preenchido pelo afeto daquelas mulheres que queriam torná-lo o mais feliz dos homens! Mas isso durou apenas uma fração de segundos! Logo o senhor Coruja foi tomado por uma grande náusea e um horror imenso! Olhou para senhora C como se não entendesse ou não acreditasse naquelas palavras...

 

ATOR 1: A senhora C, como a maioria das mulheres, tinha o poder de perceber a incredulidade num lampejo de olhar. Fixou os olhos no senhor Coruja e com cruel doçura atiçou a sua curiosidade: (COMO O PERSONAGEM) Se não acredita vá ver! Vá ver a imundice... Ela deve estar agora cozinhando... Cozinhando dentro da própria mãe! Nos buracos dela! Vá ver! Se não acredita nas minhas palavras... vai acreditar nos seus olhos!

 

(ATOR 1 GUARDA O BONECO NA COXIA. DEPOIS ATRIZ 2 E ATOR 2 VÃO PARA A FRENTE DO PALCO)

 

ATOR 2: O senhor Coruja tomado pela curiosidade foi para casa. Ao chegar lá viu na sua cozinha perfeitamente arrumada aquela cena impressionante.

 

ATRIZ 1: Depois de tanto tempo servindo como pote a mãe da senhora B tinha a aparência de cerâmica... Parecia um grande jarro de barro cozido! Sem perceber a presença do outro a senhora B cozinhava tranquilamente como alguém que sabe que está fazendo o que é certo!

 

ATOR 2: O senhor Coruja tomado de horror aproximou-se devagar... a senhora B quando percebeu a presença do homem afastou-se em silêncio e ficou observando...

 

(ATRIZ 2 ANDA PRA TRÁS SEMPRE OLHANDO PARA ATOR 2. ELA VAI ATÉ UM MÓDULO E SENTA – UMA SONOPLASTIA DE TAMBORES TOMA CONTA DA CENA – A FALA DO ATOR 2 DEVE IR NUM CRESCENDO. OS OUTROS ATORES EM SILÊNCIO REAGEM AO QUE É DITO)

 

ATOR 2: O senhor Coruja ficou um tempo numa contemplação.... uma contemplação estranha! Entre maravilhado e enojado! Aquilo parecia tão impossível que ficava cada vez mais real e cru! Até que o senhor Coruja resolveu que deveria fazer alguma coisa. Mas parecia não ter forças. Não sabia o que fazer. Sem pensar pegou uma grande tampa e colocou no pote. Depois vedou tudo com cera. A comida dentro do pote continuava a cozinhar. Logo aquele bolo dentro do pote foi inchando e empurrando as paredes de cerâmica. O pote não resistiu. Foi uma explosão tremenda. A cerâmica se fez em pedaços...

 

(A SONOPLASTIA PARA)

 

ATRIZ 1: (QUE ESTÁ SENTADA OBSERVANDO) O que aconteceu com o senhor Coruja?

 

ATOR 2: Ele ficou com muita vergonha! Todos na pequena cidade sabiam como ele era alimentado! Decidiu ir embora dali sem deixar vestígios...

 

ATRIZ 2: E a senhora C? O que aconteceu com ela?

 

ATOR 1: Nada. Absolutamente nada! Continuou vivendo a sua vida como se não tivesse acontecido nada. De vez em quando surgiam na sua memória vagas lembranças de um homem, mas não lembrava o seu nome, nem como ele era...

 

ATOR 2: E a senhora B?

 

(ATRIZ 2 LEVANTA-SE E CAMINHA PELO PALCO)

 

ATRIZ 2: Ela precisava se reinventar. Não podia mais viver ali e saiu sem destino. Andou muito. Não queria viver com mais ninguém. Pensou em viver assim pelo resto da vida. Mas uma coisa a consumia: o desejo. Não sobreviveria sem ele. Depois de caminhar por muito tempo chegou em outra pequena cidade. Uma cidade menor ainda. Entrou no lugar sem pedir licença e encontrou um homem na rua...

 

(ATOR 1 LEVANTA-SE E VAI ATÉ ATRIZ 2)

 

ATRIZ 2: Era um homem mais velho... mas bonito! Intensamente bonito! Com a beleza que só a maturidade tem! E o homem perguntou:

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) O que a senhora deseja?

 

ATRIZ 2: E a senhora B respondeu: (COMO O PERSONAGEM) Eu sou desejo! (NORMAL PARA A PLATÉIA) Disse assim... de qualquer jeito... sem pensar na verdade que aquilo trazia...

 

ATOR 1: O homem quis saber: (COMO O PERSONAGEM) Como é o seu nome?

 

ATRIZ 2: A senhora B não podia dar os outros nomes que afinal de contas nem pertenciam a ela. Pensou em um novo nome que daria sentido ao todo e respondeu: (COMO O PERSONAGEM) Meu nome é Branca!

 

ATOR 2: A senhora B quis saber o nome do homem e perguntou:

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) E o seu nome? Qual é?

 

ATOR 1: E o homem respondeu: (COMO O PERSONAGEM) Eu sou o senhor Anjo!

 

ATRIZ 2: Pela primeira vez a senhora B sentiu-se segura. Mas isso não durou muito. Ela perguntou ao senhor Anjo como num sonho: (COMO O PERSONAGEM) Senhor Anjo? O senhor vai me proteger?

 

ATOR 1: (COMO O PERSONAGEM) Não! - (NORMAL) respondeu o senhor Anjo – (COMO O PERSONAGEM) Eu estarei sempre por perto! Não se preocupe! Estarei sempre por perto...

 

(ATOR 1 SAI DE CENA E VOLTA COM UM BONECO – UM HOMEM – COLOCA O BONECO DEITADO SOBRE OS MÓDULOS  E SAI NOVAMENTE)

 

ATRIZ 1: Mas o senhor Anjo mentiu! Não estava sempre por perto! Pelo menos não quando ela queria! A senhora B passou a viver com ele, mas os dois só se encontravam a noite quando se amavam. Eram encontros silenciosos que produziam um perfume que enchia a pequena cidade de suspiros. A senhora B passou a viver trancada na casa. Tinha medo do próprio desejo e trancava portas e janelas para se proteger. Passava as madrugadas, as manhãs e as tardes esperando saciar seu desejo noturno. Mas o destino e o desejo são cruéis e não podem ser impedidos por portas e janelas. E numa tarde de intenso calor uma brisa entrou pela casa. A senhora B com medo quis saber por onde aquele sopro de ar tinha entrado e viu que uma das janelas estava entreaberta. Correu para fechá-la, mas já era tarde. Viu pela pequena fresta um homem...

 

(ATOR 2 COLOCA EM CENA UM BONECO MASCULINO SEM FEIÇÕES. ATRIZ 2 FICA EM SILÊNCIO ESPERANDO QUE O BONECO SEJA POSICIONADO A DIREITA DO PALCO. ATOR 2 SENTA NUM DOS MÓDULOS)

 

ATRIZ 1: Um homem jovem! Jovem, mas bonito! Intensamente bonito! Com uma beleza que só a juventude tem! Uma beleza irritante! Quase imoral! E o homem ainda tinha um brilho no olhar que todos os jovens tem!

 

ATOR 2: Um brilho que a maioria acredita que nunca vai acabar! Alguns conseguem... poucos... bem poucos...

 

ATRIZ 1: O desejo tomou conta da senhora B com muita intensidade! Ela, agora como Branca, passou a receber o jovem todas as tardes!

 

ATOR 2: Como era o nome dele?

 

ATRIZ 1: Podemos chamá-lo de Jovem D! É o nome que lhe cabe! A senhora B e o Jovem D amavam-se! Eram encontros cheios de som! O jovem falava... falava... falava muito! Principalmente de si e de suas façanhas! Apesar de falar tanto nunca perguntou o nome da senhora B! Ela não se incomodou com isso. Os seus desejos estavam se completando nos encontros com o jovem D! E eram encontros cheios de som que enchiam a pequena cidade de dúvidas! A senhora B sem ter medo de mais nada abriu portas e janelas! O desejo comparecia para ela nas tardes intensas de sons e falas e nas noites de silêncios e perfumes! Mas ela não estava satisfeita! Nas madrugadas, depois do amor em silêncio ela ia para a varanda deitar na rede! Pensava que a brisa da noite poderia acalmar o desejo...

 

(ATRIZ 2 PEGA UM DOS MÓDULOS E SENTA A ESQUERDA DO PALCO)

 

ATOR 2: Mas um calor intenso não se apaga fácil...

 

ATRIZ 2: E a senhora B ardia nas madrugadas... Apesar dos dois desejos ela sentia falta de mais alguma coisa... Talvez um novo desejo... Mas quem? O que?

 

ATOR 1: (VOLTANDO) E numa noite sem luar aconteceu o inesperado...

 

ATRIZ 1: Deitada na varanda escura, ardendo de desejo, a senhora B sentiu um braço branco que  acariciava todo o seu corpo. O desejo aumentou cada vez mais e aquele braço forte se deteve nas suas partes mais íntimas. Com suavidade e firmeza ele começou a puxar. A cada puxada vigorosa a senhora B explodia por dentro. Queria saber quem era: seu nome.... queria saber seu nome... Perguntava... pedia uma voz... Mas como resposta só o silêncio. Um silêncio sem perfume...

 

ATOR 1: No dia seguinte a senhora B acordou na varanda. Foi procurar o senhor Anjo, mas ele já tinha saído.

 

(ATRIZ 2 LEVANTA E ANDA PELO PALCO ENQUANTO FALA)

 

ATRIZ 1: Pensou em dormir, mas então percebeu... de sua partes íntimas pendia uma especie de... algo estranho... parecido com um pequeno falo. Ela se encheu de prazer e medo. Sabia o que tinha causado aquilo. Mas de quem seria aquele braço?

 

ATOR 1: Curiosamente o jovem D não percebeu nada de diferente na tarde de amor. Muitos menos o senhor Anjo. A tarde continuou com muitos sons e falas, a noite de silêncios e perfumes, mas nenhuma pergunta! Nem uma mera curiosidade! Era como se aquilo não existisse.

 

ATRIZ 2: Mas podia ser uma estratégia de um dos dois. Querendo saber quem era o amante da madrugada a senhora B voltou a varanda procurando o desejo. Deitou na varanda e ficou a espera. (SENTA NO MÓDULO A ESQUERDA DO PALCO) E o desejo veio. Inicialmente começou as carícias para logo voltar a puxar com suave vigor.

 

ATOR 1: E isso aconteceu por muitos dias...

 

(ATRIZ 2 LEVANTA E PEGA DENTRO DO MÓDULO CAIXA UM GRANDE PANO BRANCO. COMO UM LENÇOL)

 

ATRIZ 2: Logo aquilo estava tão grande que a senhora B sentiu muita vergonha. (SE ENROLA NO PANO) Ela tentou esconder aquele grande falo enrolando-se em panos, mas parecia que não adiantava. Ela não sabia o que fazer...

 

(ATRIZ 1 PEGA DENTRO DO MÓDULO CAIXA O XALE DA MÃE DA SENHORA B)

 

ATOR 2: E chamou a mãe!

 

ATRIZ 2: A mãe? A mãe da senhora B? Mas ela não...

 

ATOR 2: O tempo cura tudo... e esquece de tudo! Era o terceiro milagre na vida da senhora B. Um milagre suplicado! A senhora B precisava dela! Em problemas íntimos nada melhor que um conselho de mãe... E a velha mãe da senhora B voltou. Estava muito mais velha. O corpo todo remendado com profundas rugas. A voz cada vez mais rouca e grossa.

 

(ATRIZ 1 SE ENROLA NO XALE)

 

ATRIZ 2: A senhora B chamou a mãe e contou o que estava acontecendo. Ela queria saber quem era o misterioso amante da madrugada.

 

ATRIZ 1: A velha ficou apavorada e disse: (COMO O PERSONAGEM) - Minha filha, não vê o que está acontecendo? Não percebe quem é esse amante? O desejo trouxe mais uma vez pra você a desgraça! Esse amante é um espírito! Você está amando um espírito todas as noites!

 

(DURANTE A FALA DE ATRIZ 2, A ATRIZ 1 TIRA O XALE E SEGURA NA MÃO COMO SE NÃO FOSSE O PERSONAGEM. OS ATORES PEGAM TODOS OS BONECOS UTILIZADOS NA CENA E OS COLOCAM EM PÉ, SUSPENSOS POR TRIPÉS, FORMANDO UMA RODA OU UM SEMI CÍRCULO )

 

ATRIZ 2: Aquela afirmativa que causaria horror em qualquer pessoa... se não horror, reações incrédulas... não causaram espanto na senhora B! No fundo o que a mãe dizia fazia sentido para ela. Aquelas sensações só poderiam ser causadas por espíritos...

 

ATRIZ 1: A velha mãe da senhora B estava desesperada. (COLOCA O O XALE E FALA COMO SE FOSSE O PERSONAGEM) Minha filha é amante de um espírito! Salvem minha filha!! Minha filha é amante de um espírito! Salvem minha filha!!

 

(ATRIZ 1 CONTINUA A DIZER AS FRASES ENQUANTO ATOR 1 FALA) 

 

ATOR 1: Era um hábito dela! A velha vivia em eterno desespero... Muitas vezes sem uma razão real! Era, como já disse, um hábito... E nesse desespero a velha mãe da senhora B chamou o mais sábio velho da pequena cidade e gritou o que acontecia com sua filha. E o mais sábio velho confirmou os temores da mãe da senhora B. Era mesmo um espírito o amante da madrugada.

 

(ATRIZ 1 TIRA O XALE E O GUARDA NO MÓDULO CAIXA)

 

ATRIZ 1: O mais sábio velho chamou todos os habitantes da cidade para proteger a senhora B.(TODOS ENTRAM NA RODA) Os moradores do local compareceram em peso. Não se sabe se por valentia, por medo, ou por uma especie de curiosidade mórbida... estavam todos lá esperando o amante da madrugada!

 

ATRIZ 2: A senhora B tinha sensações estranhas vivendo aquela situação. Por um lado a vergonha de ter suas intimidades expostas...

 

ATOR 1: Por outra a felicidade de se sentir protegida...

 

ATRIZ 1: E ainda a tristeza de não ter mais o seu desejo completo!

 

ATOR 2: Mas aconteceu o que ninguém esperava! O destino é cruel!

 

ATRIZ 1: Mesmo com a proteção dos habitantes da pequena cidade o amante da madrugada conseguiu se aproximar da senhora B. Quando ele ia começar as carícias o mais sábio velho da pequena cidade cortou o braço do espírito e jogou num caldeirão fervente.

 

ATOR 1: O amante da madrugada saiu correndo sem parte do braço. Logo os espíritos cercaram a pequena cidade. Queriam o braço de volta.

 

(COMEÇA UMA SONOPLASTIA SOMBRIA – UM BATUQUE ESTRANHO. AS LUZES MUDAM E ENCHEM A CENA DE SOMBRAS. A RODA É DESFEITA E OS BONECOS SÃO COLOCADOS NO FUNDO DO PALCO)

 

ATRIZ 2: A senhora B não sabia direito o que estava acontecendo. Foi até o mais sábio velho e perguntou: (COMO O PERSONAGEM) O que o senhor está fazendo? Porque esse braço está no caldeirão?

 

ATOR 1: Do alto do seu saber o mais sábio velho disse: (COMO O PERSONAGEM) Precisamos destruir esse braço! Isso é uma maldição! Os espíritos vão entrar aqui! Vão acabar com tudo!

 

ATRIZ 1: E os espíritos se aproximavam. Queriam o braço. Seriam capazes de tudo para conseguir de volta aquela parte do amante da madrugada. Os habitantes da pequena cidade estavam apavorados.

 

ATOR 1: Todos sabiam de quem era a culpa daquele desespero, mas não tinham coragem de apontar. O velho mais sábio não tinha mais pudores. Com o dedo em riste ele anunciou: (COMO O PERSONAGEM APONTA PARA M) A culpa é sua! A culpa é do seu desejo!

 

ATRIZ 2: Aquelas palavras afetaram imensamente a senhora B. Um dor intensa tomou conta de todo o seu corpo. O desejo foi embora e só ficou a dor! A visão do braço no caldeirão a atormentava mais!

 

ATOR 2: O mais sábio dos velhos sabia de onde vinha essa dor. Com o mesmo facão que cortou o braço do amante da madrugada ele decepou o falo da senhora B. Achou que se jogasse aquilo para os espíritos eles ficariam mais calmos.

 

(ATRIZ 2 DEIXA O LENÇOL CAIR NO CHÃO)

 

ATRIZ 1: De nada adiantou! Os espíritos não quiseram aquilo! O falo foi atirado num rio e virou um peixe.

 

ATOR 2: Os espíritos se aproximavam cada vez mais! O braço não desmanchava no caldeirão! Não existia salvação para os moradores da cidade! Eles já gritavam! Suplicavam por uma morte sem dor! Apontavam para senhora B como se quisessem acusá-la ou protegê-la!

 

ATOR 1: Os espíritos se aproximavam cada vez mais! A senhora B sentia que a desgraça era inevitável! Gritava:

 

ATRIZ 2: (COMO O PERSONAGEM) A morte! O fim! Meu desejo acabou!

 

ATOR 2: No último instante o mais sábio dos velhos da pequena cidade pegou aquele pedaço fervente e atirou para os espíritos! O amante da madrugada juntou aquele pedaço de braço ao seu corpo! O pedaço queimava no corpo e o espírito foi até o rio e mergulhou o braço. Desde então as águas do rio ficaram mornas! Os espíritos se acalmaram e sumiram na noite!

 

(A SONOPLASTIA PARA. AS LUZES VOLTAM AO NORMAL. DURANTE A FALA DE ATRIZ 1 OS ATORES  TIRAM TODOS OS OBJETOS DE CENA)

 

ATRIZ 1: Os habitantes do lugar tentaram fazer com que a vida voltasse ao normal naquela pequena cidade. Tentavam esquecer o que tinha acontecido. Precisavam disso para encontrar a felicidade. Mas tinha um impedimento! Algo que não permitiria a felicidade: o mais sábio dos velhos estava lá como uma lembrança viva e amarga. O dedo sempre apontando para o passado. Apontando para não esquecer...

 

ATOR 1: Pouco tempo depois o mais sábio dos velhos apareceu morto e foi se juntar aos espíritos. Não se sabe do que ele morreu... e na verdade, ninguém quer saber...

 

ATRIZ 2: Apesar do alívio muitas perguntas ficaram sem respostas...

 

ATOR 2: Quais?

 

ATRIZ 2: O que aconteceu com o senhor Anjo?

 

ATOR 1: Logo depois do incidente ele sumiu da cidade! Não podia mais viver ali.

 

ATRIZ 2: E o jovem D? O que aconteceu com ele?

 

ATRIZ 1: Nada. Absolutamente nada! Continuou vivendo a sua vida como se não tivesse vivido aquela situação. De vez em quando lembrava vagamente de uma mulher... uma mulher mais velha, mas não lembrava o seu nome, nem como ela era...

 

ATRIZ 2: E a mãe da senhora B?

 

ATOR 1: Resolveu envelhecer completamente e esquecer que um dia foi mãe!

 

ATRIZ 2: E a senhora B?

 

(OS QUATRO ATORES VÃO PARA O CENTRO FRENTE DO PALCO)

 

ATOR 1: (PARA A PLATÉIA) Alguns dizem que as histórias da digníssima senhora B são baseadas em mitos das nações indígenas brasileiras. Mas ninguém sabe ao certo...

 

ATRIZ 1: A verdade é que a senhora B vive em cada um de nós!

 

ATOR 1: Sem sossego...

 

ATOR 2: Sem descanso...

 

ATRIZ 2: Eternamente...

 

ATORES: Boa noite!

 

ATRIZES: Sejam felizes!

 

(OS QUATRO SAEM DE CENA – A LUZ BAIXA EM RESISTÊNCIA)

 

FIM

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