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Texto de Augusto Pessôa

NOTA DO AUTOR:

 

Essa peça pretende ser uma homenagem a um dos maiores dramaturgos brasileiros: Nelson Rodrigues.

O tom da peça deve ser o exagero. Como um drama encenado num velho circo.

 

PERSONAGENS:

 

DR ANTUNES: tem mais ou menos sessenta anos. É desembargador. Um homem rico. Acredita que é um bom pai de família e pensa ter o controle sobre tudo.

D.ZIZI: na verdade chama-se Zineide, mas todos (com exceção do marido) a chamam de D.Zizi. Tem mais ou menos cinquenta e cinco anos. É esposa de Antunes. Tenta ser uma perfeita mãe de família.

SILVINHA: filha mais velha dos Antunes. Tem mais ou menos vinte anos. É uma mulher bonita, mas muito mimada, principalmente pelo pai.

GRACINHA: filha mais nova dos Antunes. É um ano mais nova que Silvinha. Não é tão bonita quanto à irmã. Aparentemente é uma pessoa sensata.

VITOR: é noivo de Silvinha e depois se casa com ela. Tem mais ou menos vinte e cinco anos. É um rapaz bonito, sensível. Um sonhador.

RUDGERO: amigo de Vitor. É três anos mais velho que o amigo. É um rapaz simples, não teve muita educação.

EMPREGADA e MORDOMO: empregados da casa.

NARRADOR: voz em off.

 

CENÁRIO:

 

A sala da casa dos Antunes. O cenário deve representar uma sala ricamente decorada, mas tem o mesmo tom da cena – a farsa. Pernas cenográficas representam as paredes da sala ornamentadas com quadros. Com o andamento do espetáculo as pernas são retiradas e mostram a decadência da casa. O mesmo acontece com o sofá e o barzinho. Uma escada que levaria ao andar de cima da casa também é falsa.

 

ATO I

CENA I

 

(A SALA DA CASA DOS ANTUNES. OS EMPREGADOS ESTÃO NUM RITMO FRENÉTICO: ENTRANDO E SAINDO, SUBINDO E DESCENDO)

 

NARRADOR: (EM OFF) Boa noite, senhoras e senhores! Sejam bem vindos a casa dos Antunes. Uma grande casa no Cosme Velho. Uma casa onde mora a felicidade. Dr. Antunes é um homem rico que gosta de mostrar seu poder. Mas não é daqueles que acham que podem comprar a felicidade. A felicidade existe na sua família. O dia é de festa. A primeira filha que casa. Um cheiro de alegria no lar.

 

(MORDOMO E EMPREGADA ENCONTRAM-SE NO MEIO DA CENA. O MORDOMO LEVA UMA BANDEJA COM UM COPO D'ÁGUA)

 

MORDOMO: D.Silvinha está tão nervosa.

EMPREGADA: Também pudera. O vestido ainda nem chegou. Quem foi buscar o vestido?

MORDOMO: O Dr. Antunes. E quer que eu diga uma coisa? Quer? Eu acho que o vestido nem ficou pronto. Nem podia. Casamento às pressas. Corrido. Dá até para desconfiar.

EMPREGADA: Os dois se gostam. Querem casar logo.

MORDOMO: Hum... Comigo não, violão! A irmã não vai! Nem se arrumou.

EMPREGADA: Que história é essa que a irmã não vai?

MORDOMO: Batata, minha filha. Batata. Ela não quer ir. Aposto os tubos! Tenho certeza.

EMPREGADA: Como você pode ter tanta certeza?

MORDOMO: Eu estou te dizendo: levei o vestido passado, engomado, arrumado. Entrei no quarto, ela estava sentada na poltrona lendo um livro. De robe e cara lavada. Lavada. Perguntou: (IMITANDO) - "O que é isso?" Eu disse: - "E o seu vestido". Ela disse: - “Ponha dentro do armário. Eu não vou a esse casamento".

EMPREGADA: O que D.Gracinha quer, meu Deus?

MORDOMO: Isso não é problema nosso.

EMPREGADA: Eu acho que ela está chateada com alguma coisa. Será que é por causa do "Seu" Vitor? Ela é tão ligada a ele...

MORDOMO: Já disse que isso não é problema nosso.

EMPREGADA: (FAZ UMA CARETA - REPARA NO COPO) O que é isso?

MORDOMO: Água com açúcar para D.Silvinha.

EMPREGADA: Ela já sabe que a irmã não vai?

MORDOMO: Não sei.

EMPREGADA: (PEGANDO A BANDEJA) Deixa que eu levo. (SOBE)

MORDOMO: (ARRUMANDO A SALA) Que confusão! Eu só tenho pena de D.Zizi. Também, essas meninas nunca se deram. Nunca. Sempre assim. Desde pequenas... E o Dr. Antunes. Ih, quando ele souber dessa história vai ficar louco!

EMPREGADA: (DESCENDO COM A BADEJA NA MÃO) D. Silvinha já sabe que a irmã não vai. Está louca! Não quis nem a água com açúcar. (SAI)

MORDOMO: (CONTINUA ARRUMANDO A SALA, MAS NUM RITMO MAIS ACELERADO) Que horror, meu Deus! A primeira filha que casa. D.Zizi não merecia isso. Uma mulher fina como ela ter umas filhas assim. Se fosse filha de casa de pobre, eu não dizia nada. Pobre sempre arruma confusão. Mas aqui, nessa casa de gente fina. Gente de posses. Tem santa paciência! Mas eu sabia que isso ia acontecer. Casamento às pressas. Não podia dar certo. Ainda mais nessa família. Eu conheço as entranhas dessa família. Essa família parece coisa de Nelson Rodrigues...

 

(OUVE-SE BARULHO DE PESSOAS DESCENDO A ESCADA. O MORDOMO SAI. ENTRAM SILVINHA E D.ZIZI. SILVINHA ESTÁ MAQUIADA, PENTEADA, MAS AINDA DE ROBE. D.ZIZI ESTÁ VESTIDA COMO UMA DIGNA MÃE DE NOIVA)

 

SILVINHA: (NERVOSA) Eu sabia... eu sabia...

D. ZIZI: Calma, minha filha.

SILVINHA: Como calma, Mamãe? Como calma? Meu vestido não chega. Os convidados já devem estar indo para a igreja. (GRITANDO PARA CIMA) E essa louca que não quer ir...

D. ZIZI: Calma, minha filha. Olha a maquiagem.

SILVINHA: A Gracinha faz de propósito, Mamãe. O que as pessoas vão dizer? A irmã não quis ir ao casamento. Por quê? O que será que aconteceu? Ai, que vergonha...

D. ZIZI: Ela vai. Claro que vai.

SILVINHA: Vai nada. E a senhora está de prova: convidei para madrinha. Não quis. Convidei para ser dama. Dama de honra. Também não quis. O que ela quer? Quer ser a noiva.

D. ZIZI: Que é isso? Ela é sua irmã.

SILVINHA: E o vestido que não chega. Olha a hora, Mamãe.

D. ZIZI: Seu Pai já está chegando. Aqui no Cosme Velho. O trânsito.

SILVINHA: Ela tem inveja de mim. Ela me odeia.

D. ZIZI: Que besteira, menina.

SILVINHA: Besteira? Que outra explicação à senhora dá? Desde pequena sempre me perseguindo. Sempre. Eu sou mais velha um ano. Um ano. Eu tenho culpa de ter nascido primeiro? Parece que ela não se conforma de ser a segunda. De ter vindo depois.

D. ZIZI: Isso é história da sua cabeça, Silvinha.

SILVINHA: Não é história não. No colégio. No colégio ela não se conformava. Eu estava um ano na frente dela. Eu entrei primeiro. Ela tanto fez que conseguiu.

D. ZIZI: Mas isso não foi culpa dela.

SILVINHA: Meus cadernos sumiam. Meus livros sumiam. Eu não podia estudar. E a senhora não vai me dizer que era a empregada, que essa história eu não engulo, mamãe. Tira o cavalo da chuva que essa história eu não engulo!

D. ZIZI: E quem poderia ter feito isso?

SILVINHA: Ela. Pegava os meus livros e escondia no quarto da empregada.

D.CELlA : Minha filha, que loucura...

SILVINHA: E aquela vez que eu fui dopada?

D. ZIZI: Ai, de novo essa história?

SILVINHA: Dia de prova. Prova final. Ela botou alguma coisa no meu leite. Tenho certeza que botou. Eu nunca tive tanto sono. Não conseguia nem ler a prova. Fui reprovada. Reprovada.

D. ZIZI: Por que ela iria fazer uma coisa dessas? Sua irmã sempre quis ajudar. Preocupava-se com você. Ajudava até nos estudos.

SILVINHA: É verdade. Ela tinha prazer em dizer para as pessoas que me ajudava. Ela era a inteligente. Eu era a burra.

D. ZIZI: Eu não sei por que vocês ficam nessa briga?

SILVINHA: E o Vitor? Lembra o vexame que ela fez?

D. ZIZI: Que vexame?

SILVINHA: Primeira vez que o rapaz vem aqui. Primeira. É ela dá em cima dele descaradamente.

Aliás, ela dava em cima de todos os rapazes que se interessavam por mim!

D.ZIZI: Silvinha! Isso é jeito de falar da sua irmã?

SILVINHA: Mas é verdade! Bastava um rapaz mostrar interesse em mim que ela logo se assanhava! Que culpa eu tenho de ser bem feita de corpo? Ter um palmo de cara lindo? E ela... coitada... Não merece nem a homenagem de um olhar!

D.ZIZI: Eu acho a Gracinha bem feita de corpo.

SILVINHA: Ah... A senhora é mãe! Mãe sempre acha os filhos bonitos. E além do mais, o Vitor escolheu a mim. Apesar dela ter dado em cima dele descaradamente!

D.ZIZI: Ela não deu em cima dele. Gracinha não é disso. E se desse? Rapaz solteiro. Não tinha namorada. Não era seu namorado!

SILVINHA: Nem dela. Amigo. Amigo do tio Leopoldo. Amigo. Tio Leopoldo trouxe para me apresentar.

D. ZIZI: Um rapaz bonito, inteligente, sensível. Gosta de poesia como ela. Gracinha não podia imaginar.

SILVINHA: A senhora está querendo dizer que eu não sou sensível? Que eu sou uma bruta? Uma

bruta?

D. ZIZI: Eu não estou dizendo isso, Silvinha. Eu estou dizendo que o seu tio Leopoldo trouxe o Vítor aqui, mas não foi só para apresentar a você.

SILVINHA: Então, trouxe pra quê?

D. ZIZI: É amigo dele. Trouxe para apresentar a famí1ia.

SILVINHA: Claro que não, mamãe. Tio Leopoldo é meu padrinho. Não ia trazer um rapaz para apresentar a Gracinha. Mas ela viu que eu estava interessada, por isso atacou. Cínica.

D. ZIZI: Silvinha, olha os modos!

SILVINHA: A senhora sempre a defende. Sempre. Eu que vou casar. Que estou sem vestido. Parece que a senhora gosta mais dela.

D. ZIZI: Não diz bobagem, menina.

SILVINHA: Olha a hora, Mamãe.

 

(ENTRA DR ANTUNES COM UMA ENORME CAIXA)

 

DR ANTUNES: Olha o vestido!!

D. ZIZI: Graças a Deus!

SILVINHA: (TOMANDO A CAIXA DAS MÃOS DO PAI) Demorou, Papai.

DR ANTUNES: A modista que não terminava.

SILVINHA: Gracinha não quer ir ao casamento, Papai!

DR ANTUNES: (PARA D.ZIZI) Que história é essa, Zineide?

SILVINHA: Não quer.

D.ZIZI: Ouve, Antunes.

SILVINHA: Disse que não vai de jeito nenhum. Não vai. Já imaginou a vergonha, Papai? Todos lá na igreja me olhando e perguntando: Onde está a irmã? Cadê a irmã? Não veio? Por que? Ai, que vergonha!

DR ANTUNES: Espeto, espeto! Vai chamar a Gracinha, Zineide!

 

(D.ZIZI SOBE AS ESCADAS)

 

SILVINHA: (ABRINDO A CAIXA E TIRANDO O VESTIDO) Papai, não é lindo?

DR ANTUNES: Por que sua irmã não quer ir ao casamento? Vocês brigaram?

SILVINHA: Não. Imagina. No dia do meu casamento eu ia brigar com alguém. Eu gosto tanto da Gracinha. Não sei porque ela está fazendo isso comigo. Deve ser birra dela.

DR ANTUNES: Sua irmã tem um gênio.

SILVINHA: Eu faço tudo para agradá-la. Não sei por que ela não gosta de mim.

DR ANTUNES: Eu entendo, minha filha.

SILVINHA: O que eu faço, Papai?

DR ANTUNES: Minha primeira filha que casa. Parece um sonho. Está feliz?

SILVINHA: Estou. Se não fosse esse problema da Gracinha.

DR ANTUNES: Vamos ver isso.

 

(SILVINHA COLOCA O VESTIDO NA SUA FRENTE E RODA COM ELE. GRACINHA DESCE AS ESCADAS DE ROBE E CARA LAVADA)

 

GRACINHA: (OLHANDO A OUTRA) É esse o vestido? Não gostei.

 

(SILVINHA VAI RESPONDER, MAS O PAI INTERROMPE)

 

DR ANTUNES: Silvinha, sobe. Vai se vestir.

SILVINHA: (BAIXO PARA A OUTRA) Agora eu quero ver. (SOBE)

DR ANTUNES: Você não está pronta minha filha, por quê?

GRACINHA: Não vou ao casamento, Papai. Não estou me sentindo bem!

DR ANTUNES: O que você tem?

GRACINHA: Estou indisposta.

DR ANTUNES: É o casamento da sua irmã! No meu enterro você também não vai?

GRACINHA: Eu sei que é o casamento da Silvia, Papai. Mas eu estou indisposta. O que eu posso fazer?

DR ANTUNES: Ir ao casamento.

GRACINHA: Indisposta?

DR ANTUNES: Qual a razão dessa indisposição?

GRACINHA: Não sei. Acho que foi algo que eu comi. Um bolinho, talvez.

DR ANTUNES: O que você está sentindo?

GRACINHA: Enjôo... sei lá.

DR ANTUNES: Tem santa paciência! É o casamento da sua irmã. Minha primeira filha que casa. E nada. Está ouvindo? Nada vai atrapalhar essa festa. Eu não quero saber se você está indisposta, enjoada ou o diabo. Eu sei é que você vai a esse casamento. Eu sou seu pai e estou mandando.

 

(D.ZIZI DESCE AS ESCADAS)

 

GRACINHA: Eu não vou ao casamento.

D. ZIZI: Gracinha, seu pai está falando.

GRACINHA: Ninguém pode me obrigar.

D. ZIZI: Gracinha!

DR ANTUNES: Não se meta, Zineide! (ALTERADO) Espeto, espeto! Gracinha, eu não vou discutir. Não vou brigar. Não vou me aborrecer.

D. ZIZI: Antunes, olha o coração.

DR ANTUNES: Não se meta, Zineide! Gracinha, eu quero você pronta em quinze minutos. É uma festa importante para mim e para sua irmã. E eu quero você pronta em quinze minutos. (SUBINDO AS ESCADAS) Quinze minutos. (SAI)

GRACINHA: Eu não vou.

D.ZIZI: Minha filha, você não pode ser assim. É o casamento da sua irmã.

GRACINHA: Mas eu não quero ir.

D. ZIZI: Por quê?

GRACINHA: Não ia me sentir bem.

D.ZIZI: Eu entendo. O Vitor. Seu tio Leopoldo não devia ter trazido esse rapaz aqui.

GRACINHA: Não acho que ela deva casar com o Vitor.

D. ZIZI: Você gosta dele não é?

GRACINHA: Ele é muito sensível.

D.ZIZI: Ele vai ser seu cunhado.

GRACINHA: Ele não vai agüentar. Merecia outra coisa.

D. ZIZI: Que coisa?

GRACINHA: Será quê? (PAUSA) Mamãe, sobe.

D. ZIZI: Gracinha, eu conheço você, minha filha.

GRACINHA: Então sobe.

D.ZIZI: Você vai?

GRACINHA: Mamãe, sobe. Vai ajudar a Silvia. Eu já vou. (D.ZIZI SOBE) Eu vou ao casamento, mas não ponho os pés no altar. Eu juro que nunca mais ponho os meus pés num altar.

 

- OUVE-SE AO LONGE CRIANÇAS CANTANDO UMA MÚSICA DE RODA -

 

BLACK OUT

 

CENA II

 

(SALA DA CASA DOS ANTUNES DOIS MESES DEPOIS. GRACINHA PERMANECE NO MESMO LUGAR QUE ESTAVA NO FIM DA CENA I).

 

NARRADOR: (EM OFF) A casa da família Antunes. O Cosme Velho virou uma enorme festa. O casamento de Silvinha foi um sucesso. Comentado em todas as colunas sociais como o "casamento do ano". Gracinha foi ao casamento e comportou-se como uma perfeita irmã da noiva. Chorou a cerimônia inteira. Silvinha foi para a Europa onde passou dois meses numa doce lua de mel. Silvinha agora é uma nova mulher. Uma mulher que volta casada para o seio da família. Mas Gracinha permanece a mesma. O tempo não passou para ela.

 

(SILVINHA ENTRA PELA PORTA DO FUNDO. VESTE UM TAILLEUR VERDE. TEM ARES DE  IRRITANTE FELICIDADE.)

 

SILVINHA: (ENTRANDO) Mamãe! Papai! Sou eu. Cheguei. (VENDO A IRMÃ) Gracinha, minha irmã! (SILVINHA ABRAÇA A IRMÃ QUE RECEBE ESTÁTICA O ABRAÇO - PAUSA - SILVINHA LARGA A IRMÃ) Como vai você?

GRACINHA: (FRIA) Bem. E você?

SILVINHA: Eu estou ótima. (RODANDO) Não dá para ver?

GRACINHA: Claro.

SILVINHA: Mamãe e Papai?

GRACINHA: Estão lá em cima. E a lua-de-mel como foi?

SILVINHA: Maravilhosa. Dois meses de puro deleite. Você precisa casar, minha filha. Para ver como é bom. Ah, como eu estou feliz!! Bendito tio Leopoldo!! Ele estava certo em me apresentar o Vítor. Foi um presente. Um presentão!!

GRACINHA: Será?

SILVINHA: Claro.

GRACINHA: Onde está o "presentão"?

SILVINHA: (IRRITANTE) Meu marido? Está lá fora com as malas. Eu trouxe uma coisinha para você. Uma lembrancinha. Está na mala. Sentiu saudades do meu marido?

GRACINHA: Alguma.

SILVINHA: Ele também sentiu. O meu marido. Ele até comentou, de relance, que simpatizava com você.

GRACINHA: Que bom. Ele é tão gentil. Mas vocês não tinham coisas melhores para fazer na lua-de-mel do que ficar "comentando" sobre os outros?

SILVINHA: Nós fizemos muitas coisas, querida. Meu marido é um amor. E os beijos? Beijos de mais de meia hora contadas no relógio! Ai... o meu marido! Ele é ótimo. (OUTRO TOM) Mamãe e Papai estão lá em cima? Eu vou lá. (SOBE)

 

(ENTRA VITOR PELA PORTA DO FUNDO. ESTÁ CARREGADO DE MALAS E TEM O AR CANSADO. NÃO PARECE FELIZ)

 

VITOR: (VENDO A CUNHADA) Gracinha!

GRACINHA: Vítor!

 

(GRACINHA CORRE PARA AJUDÁ-LO)

 

VITOR: Você está bem?

GRACINHA: Tudo bem. E você?

VITOR: Estou.

GRACINHA: E a lua-de-mel?

VITOR: Foi boa.

GRACINHA: Não parece. Você não parece bem.

 

(VITOR OLHA PARA ELA - PAUSA - GRACINHA PEGA NA MÃO DO CUNHADO)

 

GRACINHA: O que foi?

VITOR: (SOLTANDO-SE) Mas eu estou bem. Estou voltando da minha lua-de-mel. Eu tenho que estar bem....

 

(UMA GARGALHADA INTERROMPE A CONVERSA. UMA GARGALHADA MONSTRUOSA. É SILVINHA QUE DESCE A ESCADA SEGUIDA PELA MÃE)

 

SILVINHA: (RINDO) Mamãe, você é ótima..(VENDO O MARIDO) Imagina, Vítor, que Mamãe não acredita que compramos dois conjuntos de malas.

VITOR: Como vai, D.Zizi?

D. ZIZI: Bem, meu filho.

VITOR: Silvinha comprava tudo o que via. Tivemos que comprar mais malas.

SILVINHA: É lógico! Na minha lua-de-mel eu ia fazer economia. Eu sou uma mulher prática. Comprei umas coisas lindas para você, Mamãe.

VITOR: E Dr. Antunes?

D. ZIZI: Já vai descer.

SILVINHA: Eu... de volta a minha casa.... Casada! Nem dá para acreditar!

GRACINHA: Vitor não parece feliz.

 

(UM SILÊNCIO CONSTRANGEDOR TOMA CONTA DA CENA. AS DUAS IRMÃS SE OLHAM, PARECE QUE VÃO EXPLODIR, SE MATAR, GRACINHA VAI ATÉ A IRMÃ, LHE DÁ UM BEIJO E FALA CARA A CARA COM ELA)

 

GRACINHA: Mas deve ser só impressão minha.

SILVINHA: (AINDA OLHANDO A IRMÃ) Claro, MEU MARIDO está ótimo! (VIRA-SE PARA O MARIDO E VOLTA AO OUTRO TOM) Não é, querido?

VITOR: Claro.

DR ANTUNES: (DESCENDO AS ESCADAS) Vitor! Seja bem vindo!

VITOR: Dr. Antunes, como vai?

DR ANTUNES: Estou bem. E vocês? Como foi a lua-de-mel?

SILVINHA: Foi ótima,papai!!!

DR ANTUNES: Já foram no apartamento?

VITOR: Silvinha quis passar aqui antes de ir para o apartamento.

SILVINHA: Eu estava com saudades da minha família.

DR ANTUNES: Essa casa também é sua, Vítor.

SILVINHA: Claro.

GRACINHA: (QUE OBSERVAVA TUDO A DISTÂNCIA) Claro que é.

SILVINHA: (OLHA PARA A  IRMÃ COM ÓDIO, MAS SORRI) Gracinha, você nem imagina a surpresa que eu e o Vitor temos para você.

GRACINHA: (OLHANDO PARA O CUNHADO) Surpresa?

VITOR: É...

SILVINHA: ...um amigo do Vitor. Ele está louco para te conhecer.

D. ZIZI: Um amigo?

SILVINHA: É, Mamãe. Um amor de pessoa. Tomamos a liberdade de convidá-lo para jantar amanhã. Não tem problema nenhum? (PARA A IRMÃ) Tem?

GRACINHA: Não.

DR ANTUNES: Amigo de vocês é nosso amigo também. Vai ser ótimo.

SILVINHA: Que bom. Vitor leve as coisas lá para cima. Ajuda ele, Papai. Vai você também, Gracinha. Quero conversar com Mamãe.

 

(VITOR E ANTUNES VÃO SUBINDO COM AS MALAS)

 

GRACINHA: Eu gosto tanto de você, Silvia. Estava MORRENDO de saudades.

SILVINHA: Eu também.

 

(GRACINHA SOBE AS ESCADAS. SILVINHA ESPERA QUE ELA SUBA)

 

SILVINHA: Cínica.

D. ZIZI: Que ê isso, minha filha?

SILVINHA: A senhora não viu o comentário dela? Parece que ela adivinha.

D. ZIZI: O que você quer dizer com isso?

SILVINHA: (ABRAÇA A MÃE) Ah, Mamãe.

D. ZIZI: O que há, minha filha?

SILVINHA: (SAINDO DO ABRAÇO) O Vitor. Ele. Não é o que eu imaginava.

D. ZIZI: Como assim?

SILVINHA: Ele ficou estranho na lua-de-mel.

D. ZIZI: Estranho? Fala direito, menina. Ele te traiu? Na lua-de-mel?

SILVINHA: Claro que não!

D.ZIZI: Graças a Deus! Minha filha, aceite tudo! Passe fome com ele! Só não aceite uma coisa: traição! No casamento o único problema da mulher é não ser traída!

SILVINHA: E o resto?

D.ZIZI: Que resto? E tem algo mais importante num casamento?

SILVINHA: Não sei, Mamãe, mas...

D.ZIZI: Fala logo, menina!

SILVINHA: Ah... Dois meses de lua-de-mel. Dois meses... e eu. Eu não vi meu marido nu.

D.ZIZI: Como? Vocês não?

SILVINHA: Claro que sim. (PAUSA) De cueca.

D. ZIZI: De cueca?

SILVINHA: Fala baixo. (PAUSA) Só de cueca. E não queria que eu ficasse nua. Trocava de roupa trancado no banheiro. Trancado. Quando vinha para a cama, pedia para eu apagar a luz e deitava de cueca. E tem mais. Pelo que eu entendi, ele casou mais virgem do que eu.

D. ZIZI: Vai ver que é isso. Ele está tímido. Dê tempo ao tempo.

SILVINHA: Mamãe, um homem de hoje, com a idade do Vitor, casar virgem. Não é estranho?

D. ZIZI: Ele disse para você que era virgem?

SILVINHA: Mais ou menos. Disse que estava se guardando para a mulher amada.

D. ZIZI: E você ainda reclama, Silvinha. Que bonito da parte dele.

SILVINHA: Bonito o quê, Mamãe? Que coisa mais ridícula.

D. ZIZI: Silvinha, ridículo seria se ele estivesse andando com uma loura por aí. Minha filha, a mulher é que segura o casamento. Ele não trai. Você preferia o quê? Que ele traísse? Você ia agüentar esse tranco? Dê graças a Deus! A mulher nasceu para ser traída, minha filha. E você ainda está sendo poupada disso. Muitas mulheres são traídas logo na lua-de-mel. Deus deu a você mais essa graça: um homem jovem, bonito, romântico e fiel! Você devia ir a igreja acender uma vela todos os dias! E quanto a esse problema de nudez, mostre a seu marido que ele pode ficar à vontade com você. Quantas mulheres não gostariam de ter um homem assim: romântico, apaixonado e fiel.

SILVINHA: E se ele tiver algum problema?

D. ZIZI: Que tipo de problema? Você percebeu ou ele falou alguma coisa?

SILVINHA: Não. Mas... homem com pudor...  não é estranho?

D. ZIZI: É lindo, minha filha. Ele deve ser tímido. Agora, abra o olho! Porque os tímidos são os piores! Se ele quiser trair, nem a graça de Deus o segura! Enquanto ele só for tímido e só for esse o seu problema, lamba os beiços!

SILVINHA: Será?

D.ZIZI: Claro. Você quer que eu fale com seu pai?

SILVINHA: De jeito nenhum. Ninguém pode saber disso. Deve ser só timidez mesmo. Com o tempo passa. (BARULHO NA ESCADA) Ninguém pode saber disso.

D. ZIZI: Pode deixar.

GRACINHA: (DESCENDO) Silvia, o Vítor está confuso com os presentes. Não sabe para quem dar.

SILVINHA: Meu marido é tão bobinho.

GRACINHA: Obrigada pela echarpe.

D. ZIZI: Uma echarpe? Onde está? É bonita?

GRACINHA: Já guardei.

SILVINHA: Por nada, querida. Foi um prazer. (VAI SUBINDO)

GRACINHA: Eles parecem tão felizes, não é Mamãe?

 

(SILVINHA PARA NO MEIO DA ESCADA E VIRA-SE PARA A IRMÃ COM FÚRIA)

 

SILVINHA: Nós estamos felizes!

GRACINHA: Foi o que eu disse.

 

(SIL VINHA SOBE AS ESCADAS)

 

D. ZIZI: Você tem que parar com isso.

GRACINHA: Com o quê, Mamãe?

D. ZIZI: Silvinha é feliz no casamento e fim.

GRACINHA: Que bom, não é?

D. ZIZI: Você precisa esquecer esse rapaz. Ele é seu cunhado. E vai ser para sempre.

GRACINHA: Será? Vamos subir, Mamãe. A senhora deve ganhar vários presentes da Silvia. (SOBEM)

 

- MÚSICA DE RODA AO FUNDO -

 

BLACK OUT

 

CENA III

 

(SALA DA CASA DOS ANTUNES NO DIA SEGUINTE. O MORDOMO ENTRA NA SALA. ELE CARREGA UMA BANDEJA DE PRATA COM VÁRIAS XÍCARAS DE CAFÉ, UM BULE E UM AÇUCAREIRO. ANDA DE UM LADO PARA O OUTRO SEM SABER DIREITO ONDE COLOCAR A BANDEJA)

 

NARRADOR: (EM OFF) A casa dos Antunes no dia seguinte. O Cosme Velho fica feliz com a união da família. Os Antunes e seu convidado ainda estão na sala de jantar. Um jantar caprichado, digno da feliz família Antunes. Os empregados se esmeraram para que tudo saísse perfeito sob as ordens de D.Zizi, que é uma excelente dona de casa. Só uma nota de tristeza: a filha caçula começou a padecer de fortes enxaquecas. Está tendo nesse exato dia uma daquelas e não pode comparecer ao jantar. Mas apesar disso, tudo parece perfeito na casa dos Antunes. Uma família que é um exemplo.

(ENTRA SILVINHA PELA ESQUERDA. VESTE UM TAILLEUR PRETO E VÊ O MORDOMO SEM SABER ONDE BOTAR A BANDEJA)

 

SILVINHA: (PARA O MORDOMO) Ali, idiota.

 

(SILVINHA APONTA PARA O BAR. O MORDOMO POUSA A BANDEJA SOBRE ELE E FICA PARADA OLHANDO PARA A MOÇA)

 

SILVINHA: (SACODE A MÃO RAPIDAMENTE) Chispa! (O MORDOMO SAI - CHAMANDO PARA FORA DA CENA) Venham! Vamos tomar café aqui!

D. ZIZI: (ENTRANDO) Seu pai está contando histórias da família.

SILVINHA: Ah, não. (PARA FORA DA CENA) Papai, essas histórias não.

D. ZIZI: Seu pai adora essas histórias.

SILVINHA: O que a senhora achou dele?

D. ZIZI: Do seu amigo? Parece um bom rapaz.

SILVINHA: Que pena que a Gracinha está com "dor de cabeça". Será que ela já melhorou? O Rudgero está tão curioso em conhecê-la. (SORRINDO) A senhora reparou?

D. ZIZI: Parece, não é? Talvez seja uma gentileza. Mas por quê a pergunta?

SILVINHA: Por nada. (PARA FORA DA CENA) Papai, vem pra cá.

 

(ENTRA DR ANTUNES SEGUIDO POR VITOR E RUDGERO. DR ANTUNES ESTÁ LEVEMENTE ALTERADO PELO VINHO, E ISSO VAI AUMENTAR NO DECORRER DA CENA. TODOS ESTÃO RINDO)

 

DR.ANTUNES : ... minhas filhas eram os anjos mais bonitos da coroação.

SILVINHA: Papai, o senhor não contou essa história da coroação?

DR ANTUNES: (SEM DAR ATENÇÃO A FILHA) Adoro essas histórias. Adoro contá-las. Sempre me lembram que eu tenho uma família. Uma família que eu amo. (VAI AO BAR E SE SERVE DE VINHO)

SILVINHA: Sim, mas vamos mudar de assunto.

DR ANTUNES: (P/ RUDGERO) Minha filha não gosta dessas histórias.

SILVINHA: Ai, Papai.

D. ZIZI: Talvez,o rapaz também não goste.

RUDGERO: Não, eu gosto. Minha família não tinha muitas histórias, por isso eu gosto de ouvir a

história dos outros.

D. ZIZI: (P/RUDGERO) Você quer café, meu filho?

RUDGERO: Não obrigado.

DR ANTUNES: Você falava de sua família,

RUDGERO: Não tenho muito que falar. As coisas sempre foram muito simples.

DR ANTUNES: Vocês trabalham...

VITOR: Eles trabalham com açougues.

RUDGERO: É. Meu pai começou com um pequeno açougue. Hoje nós temos uma rede.

D.ZIZI: Seu pai era de onde?

RUDGERO: Meu pai era português. Já morreu. Ele chegou no Brasil muito novo e montou um pequeno açougue junto com os irmãos. Os irmãos desistiram e ele continuou. Hoje eles se arrependem.

DR ANTUNES: E sua mãe?

SILVINHA: É um interrogatório, Papai?

RUDGERO: Tudo bem. Minha mãe era empregada do meu pai. Eles se casaram e eu nasci. As coisas para o meu pai sempre foram muito práticas. Era a mulher mais próxima e ele casou. Nós não temos muitas histórias, nem muitas festas por que meu pai guardava tudo para investir nos negócios. Era tudo muito simples.

SILVINHA: Coitado.

RUDGERO: Não ficava triste. Eu achava que ele estava certo. Não tive festas, nem alegrias... mas hoje eu tenho uma boa situação.

DR ANTUNES: (PARA VITOR) E vocês se conhecem há muito tempo?

VITOR: Amigos de infância. O primeiro açougue deles ficava na minha rua.

RUDGERO: Um grande amigo que eu perturbei bastante.

SILVINHA: Por que?

VITOR: Isso é bobagem dele.

RUDGERO: Minha mãe não tinha com quem me deixar e eu ia para casa do Vítor. Antes de conhecê-lo eu ficava no açougue. Eu praticamente fui criado no açougue.

VITOR: (RINDO) Entre as carnes.

RUDGERO: É verdade.

SILVINHA: Que horror!

D. ZIZI: Silvinha!

DR. ANTUNES : Não se meta, Zineide!

SILVINHA: Ai, Rudgero, você me desculpe. Mas realmente é um horror.

RUDGERO: Falando assim, parece realmente horrível. E na verdade era. Eu era uma espécie de animalzinho.

VITOR: Ele não sabia comer de talher.

RUDGERO: Aprendi muito na casa do Vitor.

VITOR: É. E hoje ele tem uma rede de açougues e eu dou aula de literatura.

DR ANTUNES: Vocês já viram as fotos das meninas?

SILVINHA: Isso, Papai. Vamos ver os álbuns.

D. ZIZI: Estão lá dentro.

 

(TODOS SE LEVANTAM E SEGUEM D.ZIZI. QUANDO ESTÃO SAINDO PELA ESQUERDA, SILVINHA PÁRA E ESPERA TODOS SAÍREM. GRACINHA APARECE NO ALTO DA ESCADA. ESTÁ DE ROBE E CARA LAVADA).

 

SILVINHA: (PARA A IRMÃ) Você está melhor?

GRACINHA: Não.

SILVINHA: Foi todo mundo ver os álbuns. Você não quer ir? Talvez melhore a "dor de cabeça".

GRACINHA: (DESCENDO AS ESCADAS) Já vi muito todos esses álbuns.

SILVINHA: Você viu o amigo do Vítor?

GRACINHA: Quem?

SILVINHA: (NUM SORRISO) O Rudgero.

GRACINHA: Não vi.

SILVINHA:. Claro que viu. Eu reparei que você estava olhando pela janela. Ele é um bom rapaz. Daria um bom marido, minha filha. Ele tem cara de que vai trair, mas é assim mesmo! Como a mamãe diz “a mulher nasceu para ser traída”! Você vai ter que agüentar o tranco!

GRACINHA: O que você está falando? Você quer que eu case com ele? Você está com medo, Silvia?

SILVINHA: Não sei do quê eu deveria ter medo. Estou feliz, bem casada e o meu marido me ama. E não me trai. Tio Leopoldo estava certo. Um tipão como o Vítor só podia ser meu marido. Eu estou feliz. Não tenho razão para ter medo.

GRACINHA: Mas você está com medo. Medo de perder.

SILVINHA: Querida, EU me casei com o Vítor. Acho que eu não perdi. Mas sou boa... ofereço o Rudgero para você não ficar "tristinha" e não ter mais "dor de cabeça"... Você só vai ter problema com as louras. Mas... o que vai se fazer? Pelo menos você vai estar casada. Casada com um homem! Com um açougueiro!

 

(RUDGERO ENTRA PELA ESQUERDA)

RUDGERO: Dr. Antunes pediu para chamá-la.

SILVINHA: Rudgero! Estávamos falando de você. Conhece minha irmã Gracinha? Eu dizia para ela que você é açougueiro e ela ficou entusiasmada! Mas, mesmo assim, não quer ver os álbuns. Convença ela. (SAI)

RUDGERO: (PARA GRACINHA) Como vai? Estavam falando de mim?

GRACINHA: Não ligue para o quê a Silvia diz. Ela fala sem pensar.

RUDGERO: Mas você não, né? (GALANTEADOR) Pode ser ou está difícil?

GRACINHA: Como?

RUDGERO: Desculpe. É que eu gostei de te conhecer.

GRACINHA: Você é muito apressado. Nós acabamos de ser apresentados.

RUDGERO: Mas deu para. Talvez eu seja como meu pai. Ele era muito prático. Escuta, talvez eu esteja sendo meio precipitado mesmo, mas deu para perceber você. E deu vontade.

GRACINHA: Você é muito gentil, mas muito rápido. Poderemos conversar outro dia. Mas...

 

(ANTUNES ENTRA)

 

DR ANTUNES: Como é Gracinha? Melhorou? Nós estamos esperando.

GRACINHA: Rudgero, faça um favor: vá lá dentro senão Papai não vai me dar sossego. Vai me criar outra dor de cabeça. Eu já irei.

 

(RUDGERO SAI)

 

DR ANTUNES: Vamos minha filha.

GRACINHA: (SECA) Eu não quero ver álbuns, Papai.

DR ANTUNES: O quê há com você? A dor de cabeça não melhorou?

GRACINHA: Não há nada. Tomei uma decisão na minha vida. É isso.

DR ANTUNES: Posso saber qual foi?

GRACINHA: Vou me casar com esse rapaz.

DR ANTUNES: Quem?

GRACINHA: O Rudgero.

DR ANTUNES: Espeto, espeto! Que história é essa? Você mal conheceu o rapaz.

GRACINHA: É o que a Silvia quer. E é o que vai ser.

DR. ANTUNES: Não diga bobagens. Tudo você culpa a Silvinha. Vamos ver os álbuns.

GRACINHA: (VIOLENTA) Já disse que não quero ver nada.

DR ANTUNES: Mas eu quero que você veja.

GRACINHA: Eu estou farta de fazer favores para você.

DR.ANTUNES: Como é?

GRACINHA: Você está bêbado. E eu não suporto isso.

DR ANTUNES: O quê há com você?

GRACINHA: (RASGADA) Eu queria estar só. Entende? Sozinha nessa casa. Eu não quero mais vocês aqui.

DR ANTUNES: Eu já sei o quê é: cínica! Quer ficar sozinha com o rapaz. Com o açougueiro! Ficou toda feliz em conhecer o açougueiro!

GRACINHA: Você não sabe de nada.

DR ANTUNES: (NERVOSO, MAS EM VOZ BAIXA) Está nervosa por que viu o rapaz. Um açougueiro! Eu sei o quê são essas dores de cabeça. Vá tomar um banho frio que isso passa. Um banho frio cura mulher fogosa.

GRACINHA: Cala a boca, velho bêbado.

 

(ANTUNES AVANÇA PARA A FILHA, MAS TROPEÇA E CAI)

 

GRACINHA: (COM MUITA CALMA. ARTICULANDO CADA PALAVRA) Eu quero estar só. Só nessa casa. Mas isso não vai demorar muito para acontecer. Vocês estão velhos e vão morrer logo. E só eu ter paciência e esperar. Vocês estão velhos e eu sou jovem. Vocês vão morrer e eu vou ficar em paz. Livre de você, velho bêbado! (GRACINHA TENTA LEVANTAR O PAI) Papai? Papai! (GRITANDO) Socorro!! Papai está morto!!

 

(OS OUTROS PERSONAGENS ENTRAM NA CENA. D.ZIZI SE ADIANTA E AO VER A CENA TEM UM DESMAIO. SILVINHA TENTA ACUDIR A MÃE)

 

SILVINHA: Mamãe? Mamãe! (GRITANDO) Oh, mamãe também está morta!!

 

- MÚSICA DE RODA AO FUNDO -

 

BLACK OUT

 

CENA IV

 

(SALA DA CASA DOS ANTUNES. A SALA ESTÁ EM PENUMBRA).

 

NARRADOR: A sala da casa dos Antunes. Os mesmos móveis dispostos como antes. Os mesmos enfeites, mas a sala já não tem o brilho, a força de antes. O Cosme Velho ficou de luto. Sinais de uma tragédia. O destino estava marcado para o casal Antunes. O coração do feliz casal não foi forte. Uma desgraça. Mas, há males que vem para o bem: a desamparada Gracinha encontrou um ombro para confortar a dor da perda dos pais. Casou-se e é a dona da casa. As dores de cabeça cessaram completamente. Mas a saudade. A saudade reina na mansão. As duas órfãs sofrem pela perda dos pais. Um exemplo para os jovens de hoje.

 

(MORDOMO ENTRA COM UMA FLANELA NA MÃO - VEM DA COZINHA ACENDE A LUZ E PASSA A FLANELA COM DISPLICÊNCIA PELOS MÓVEIS)

 

EMPREGADA: (ENTRANDO NA SALA) O Dr. LUDIGIRO já chegou?

MORDOMO : Não é Ludgiro, é Rudgero. E ele não é doutor e não chegou.

EMPREGADA: O nome dele é muito complicado... (PEQUENA PAUSA) Ai, eu sinto saudades de D. Zizi.

MORDOMO: Eu também. Essa casa não é mais a mesma. (VENDO A EMPREGADA LIMPANDO UMA PRATA) Limpa isso direito, menina.

EMPREGADA: Que morte horrível. Eles não mereciam isso.

MORDOMO: Pelo menos morreram juntos.

EMPREGADA: Credo. Isso é coisa que se diga?

MORDOMO: Claro. Pelo menos ninguém chora por ninguém.

EMPREGADA: Mas as meninas ficaram sozinhas.

MORDOMO: Limpa isso direito. (PAUSA) Sozinhas. Não estão nem ligando. Uma já era casada e a outra casou correndo. Não deixou nem os pais esfriarem e já estava casando. E logo com um açougueiro.

EMPREGADA: Você é terrível!

MORDOMO: Terrível por quê? Nem chorar no enterro. Nem no enterro, nem no velório. Todo mundo lá, fazendo quarto e elas com o olho sequinho. Desconfio muito de gente que não chora em velório.

EMPREGADA: Tem gente que é assim. Que não demonstra os sentimentos.

MORDOMO: Que não demonstra os sentimentos? Não tem é sentimento para demonstrar! E o marido de D. Gracinha?

EMPREGADA: Que tem ele?

MORDOMO: Arrota. Cospe no chão. Aliás, joga tudo no chão.

EMPREGADA: Mas fala com a gente direito.

MORDOMO: Fala com a boca cheia de comida. D.Zizi deve estar se rebolando na tumba. Uma

filha minha não casava com um homem desses. Um açougueiro. D. Gracinha se livrou dos pais.

Tanto fez que conseguiu.

EMPREGADA: Parece até que a culpa foi dela. Os dois sofriam do coração. Ninguém sabia disso. Que culpa tem ela?

MORDOMO: Ah... comigo não violão! Essa família parece coisa de Nelson Rodrigues.

EMPREGADA: Quem é esse homem que você fala tanto?

MORDOMO: Ai, meu Deus. Tenha santíssima paciência, minha filha. Seja empregada, mas não seja ignorante.

EMPREGADA: Eu sei lá quem é esse homem.

MORDOMO: Nelson Rodrigues!

EMPREGADA: É parente?

MORDOMO: Aquele escritor que só escrevia safadeza.

 

(BARULHO NA ESCADA. GRACINHA DESCE - ESTÁ DE ROBE E CARA LAVADA. OS EMPREGADOS PARAM O QUE ESTAVAM FAZENDO).

 

GRACINHA: Meu marido já chegou?

MORDOMO: Não senhora.

GRACINHA: Terminem logo com isso. Vou para biblioteca e quando voltar não quero ninguém aqui.

MORDOMO: Sim, senhora.

 

(GRACINHA SAI)

 

EMPREGADA: Será que ela ouviu?

MORDOMO: Ouviu nada. Ela é mal humorada assim mesmo.

EMPREGADA: Você fica falando que a família dela é de safadeza.

MORDOMO: E é mesmo.

EMPREGADA: A D..Gracinha não saiu de manhã?

MORDOMO: Acho que foi a Igreja. Não sei pra quê.

EMPREGADA: Que implicância. Ela pode ter ido rezar. Pelos pais.

MORDOMO: Não quis nem casar na Igreja.

EMPREGADA: Engraçado isso, né? Por que será?

MORDOMO: Nessa família nada me espanta...

EMPREGADA: Já sei. O tal do Nelson Rodrigues!

MORDO MO: Depois não diga que eu não avisei.

 

(BARULHO NA PORTA DO FUNDO. OS EMPREGADOS SAEM. ENTRA RUDGERO - CALÇA SOCIAL, CAMISA MEIO ABERTA E MALETA NA MÃO. ESTÁ VINDO DO TRABALHO)

 

RUDGERO : (CHAMANDO) Gracinha! Gracinha! (GRACINHA ENTRA EM CENA. ENCONTRA O MARIDO E DEIXA-O BEIJAR SUA TESTA) Tudo bem aqui? Onde você estava?

GRACINHA: Está tudo bem aqui. Eu estava na biblioteca.

RUDGERO: Fazendo o quê?

GRACINHA: Lendo.

RUDGERO: O jantar já está pronto?

GRACINHA: Eu vou ver.

RUDGERO: Agora não. Silvinha ligou para cá?

GRACINHA: Não.

RUDGERO: Eles vêm hoje aqui. Vem para jantar.

GRACINHA: (CONTRARIADA) Você convidou?

RUDGERO: O cunhadinho me ligou.

GRACINHA: Quem?

RUDGERO: O cunhadinho!

GRACINHA: O Vítor?

RUDGERO: É. Ele disse que tem uma coisa para falar com a gente.

GRACINHA: Por que você não me avisou?

RUDGERO: Eu pedi para eles avisarem você. Você não quer que eles venham?

GRACINHA: Não queria trocar de roupa.

RUDGERO: Receba eles de robe. Eles não vão nem notar. Aliás, você só anda de robe.

GRACINHA: (SECA) Eu vou a cozinha ver o que pode ser feito.

RUDGERO: Você parece irritada. O que aconteceu hoje?

GRACINHA: Não aconteceu nada. Eu fui a Igreja...

RUDGERO: Na Igreja? Rezar por seus pais?

GRACINHA: Não.

RUDGERO: Foi a Igreja fazer o quê? (DIVERTIDO) Foi de robe ?

GRACINHA: Só fui a Igreja.

RUDGERO: Que coisa estranha.

GRACINHA: Não sei porquê é estranho. Minha mãe era presidente da Arqui-Confraria da Beata Virgem, não vejo problema em ir a Igreja.

RUDGERO: Você tem saudades dos seus pais?

GRACINHA: Não sei. É estranho, parece que eu os sinto o tempo todo. Como se eles estivessem por aqui. Vejo mamãe como uma dama antiga. Como se ela tivesse morado aqui há muito tempo atrás...

 

(ENTRA D.ZIZI VESTIDA COMO UMA DAMA ANTIGA. TEM UM ENORME LEQUE DE PLUMAS NA MÃO. GRACINHA OLHA PARA A MÃE)

 

RUDGERO:E seu pai?

GRACINHA: Papai usa um pijama. Um pijama sujo de macarrão. Sujo de macarrão.

 

(ENTRA ANTUNES VESTIDO COM UM PIJAMA RIDíCULO)

 

RUDGERO: Que coisa estranha. É só isso?

GRACINHA: Eles discutem, mas eu não consigo ouvir. Só sei que mamãe gargalha. Uma gargalhada monstruosa. Eu já ouvi essa gargalhada antes... Mas não foi da mamãe...

DR. ANTUNES: Zineide, que roupas são essas? Olha os modos?

D.ZIZI: (GARGALHANDO PARA ANTUNES)  Zineide? Zineide, nada! Meu nome é Madame Zizi... seu contínuo bêbado!!

DR. ANTUNES: Não se meta, Zineide! Eu não sou contínuo! Nunca fui. Eu tenho honra.

D.ZIZI: Vai beber, safado.

DR. ANTUNES: Espeto, espeto!!

 

(D.ZIZI DÁ UMA GARGALHADA E VAI SENTAR NUMA POLTRONA. ANTUNES VAI PARA O BAR E SERVE-SE DE UMA BEBIDA. GRACINHA PARECE VER TODA A CENA)

 

RUDGERO : Que coisa estranha, minha filha. É por isso que você está nervosa?

GRACINHA: (ALTERADA) Eu não estou nervosa, Rudgero. Não estou nem de leve aborrecida. Se você quiser que eu fique nervosa me avise que eu fico. (SAI)

 

(RUDGERO VAI PARA O BAR. ANTUNES PREPARA UM DRINQUE E DEIXA SOBRE O  BAR. RUDGERO APANHA O DRINQUE. OUVE-SE UMA ENORME GARGALHADA. UMA GARGALHADA MONSTRUOSA QUE VEM DA RUA. É SILVINHA QUE ENTRA PELA PORTA DO FUNDO SEGUIDA POR VlTOR. ELA ESTÁ DE TAILLEUR VERMELHO E VITOR DE ROUPA ESPORTE. D.ZIZI SE ABANA COM VIOLÊNCIA.)

SILVINHA: (CUMPRIMENTANDO) Rudgero, querido!

RUDGERO: (VAI À DIREÇÃO DOS DOIS) Silvinha! Cunhadinho!

VITOR: Tudo bem, Rudgero?

RUDGERO: O que é tão engraçado?

SILVINHA: O Vítor..

VITOR: Não é nada.

SILVINHA: Imagina que ele acha um absurdo eu ir entrando direto. Eu tenho a chave. Posso entrar. Não posso?

RUDGERO: Claro.

VITOR: Eu só disse que nós deveríamos nos anunciar antes.

SILVINHA: Besteira. O Vítor tem umas frescuras. Onde está a Gracinha?

RUDGERO: Está na cozinha.

SILVINHA: Estou doida para contar a novidade para ela.

VITOR: Calma, Silvinha.

SILVINHA: Ai, que coisa. Eu só quero encontrar a minha irmã. Contar para ela...

D.ZIZI: Contar o quê?

DR. ANTUNES: Não se meta, Zineide!

VITOR: Pára com isso...

SILVINHA: (SÉRIA PARA VITOR) Contar para minha irmã...

GRACINHA: (ENTRANDO) Contar o quê?

SILVINHA: Gracinha!

VITOR: Tudo bem, Gracinha?

GRACINHA: Tudo ótimo. Mas vocês estavam falando de quê?

VITOR: É...

SILVINHA: Eu falo. Vamos sentar... não. Vou preparar uns drinques. Vem me ajudar, Gracinha. O que a gente toma?

GRACINHA: Eu não quero...

DR. ANTUNES: Champanhe!

SILVINHA: Champanhe! Para fazer uma comemoração!

VITOR: Que champanhe, meu Deus!

D. ZIZI: Cala a boca, contínuo.

DR. ANTUNES: Eu não sou contínuo!

GRACINHA: Mas o que é?..

SILVINHA: Ai, Vítor, você é chato. Então está bem: Vinho! Abre uma garrafa para mim, Rudgero?

RUDGERO: Com todo o prazer. (VAI PARA O BAR E PEGA UMA GARRAFA DE VINHO)

GRACINHA: Mas o que está acontecendo?

SILVINHA: Você já vai saber. Senta. Deixa abrir o vinho. Eu vou sentar também. Não. Vou ficar de pé.

VITOR: Calma, Silvinha.

SILVINHA: Eu estou calma.

GRACINHA: (ACHANDO GRAÇA) Mas o que é, meu Deus?

SILVINHA: Calma. É uma idéia ótima. (PARA RUDGERO) Abre logo esse vinho.

RUDGERO: Já está saindo... Pronto.

SILVINHA: As taças. (PEGA AS TAÇAS E RUDGERO SERVE O VINHO) Pronto. Sua taça Vítor (ENTREGA) A sua, Gracinha. (ENTREGA) Essa é minha. Rudgero já está bebendo.

GRACINHA: Mas meu Deus, que suspense.

SILVINHA: Pronto. A idéia é a seguinte: eu e o Vítor pensamos e chegamos a seguinte conclusão. Nós moramos no apartamento e vocês aqui. A casa é muito grande e dá muita despesa. Por que não moramos todos juntos? Nós quatro morando aqui, nessa casa.

 

(OUVE-SE MÚSICA DE RODA AO FUNDO - O TEXTO É ACELERADO)

 

GRACINHA: Os quatro?

VITOR: Morando...

RUDGERO: Nessa casa.

SILVINHA: Aqui.

DR.ANTUNES: Os quatro morando aqui?

VITOR: Nessa casa.

GRACINHA: Os quatro?

RUDGERO: Morando.

SILVINHA: Aqui.

D. ZIZI: Os quatro morando aqui? (PAUSA - SILÊNCIO)

GRACINHA: Os quatro.

 

(D.ZIZI GARGALHA - MÚSICA DE RODA CESSA - TEXTO NORMAL)

 

DR. ANTUNES: Espeto, espeto!

GRACINHA: Que gargalhada é essa?

RUDGERO: Gargalhada? Ninguém riu aqui.

GRACINHA: Uma gargalhada despudorada!

SILVINHA: (MUDANDO DE ASSUNTO) Ai... então, o que você acha, Gracinha? Tio Leopoldo vai adorar. O Rudgero já topou. Achou a idéia ótima. Não é, Rudgero?

GRACINHA: Você já sabia disso, Rudgero?

RUDGERO: Era uma surpresa para você.

SILVINHA: (PARA A IRMÃ) Você não gostou?

VITOR: Você não quer, Gracinha?

 

(GRACINHA PARECE QUE VAI EXPLODIR, MAS TENTA SE ACALMAR)

 

GRACINHA : (FALA LENTAMENTE) Não é isso... Imagina... Fui pega de surpresa. A casa também é sua, Silvia. E realmente, a casa é muito grande. Vai ser ótimo...

SILVINHA: Você continua no quarto da mamãe. Eu e o Vítor ficamos no meu antigo quarto. Vamos dividir as despesas. Vai dar tudo certo. Se você topar. Você topa?

GRACINHA: Por mim... tudo bem... se o Rudgero...

SILVINHA: Ele já topou!

RUDGERO: Claro. Vai ser bom. Vamos ser uma grande família. (PARA GRACINHA) E você vai ter companhia para ir a Igreja.

SILVINHA: Igreja? Você vai a Igreja?

GRACINHA: (TONTA) É. Mamãe era da Arqui-Confraria da Beata Virgem.

SILVINHA: Hein?

DR. ANTUNES : Ela foi batizada.

D.ZIZI: Mas é fogosa!

SILVINHA: É verdade, a Arqui-Confraria... Bom... Você continua mandando na casa.

GRACINHA: Tudo bem.

SILVINHA: Então, amanhã já fazemos a mudança.

VITOR: Amanhã é muito cedo, Silvinha.

SILVINHA: Tem que ser amanhã. Por que mais tarde? Só se houver algum problema. Há?

GRACINHA: Nenhum.

RUDGERO: Então, está ótimo. Vamos jantar.

SILVINHA: Para comemorar.

DR. ANTUNES: Champanhe!!

D. ZIZI: Cala a boca, velho bêbado.

 

(SILVINHA E RUDGERO VÃO PARA A SALA DE JANTAR SEGUIDOS POR D.ZIZI)

 

DR. ANTUNES: Zineide, aonde você vai? Sossega, leoa! (VAI P/SALA DE JANTAR)

VITOR : (P/ CUNHADA) Está ótimo?

GRACINHA: Claro. Vai dar tudo certo.

VITOR: Você está com medo, não é?

GRACINHA: Não, Vitor. Que idéia.

VITOR: Vai ser bom para Silvinha. Ela queria tanto voltar para casa.

GRACINHA: Claro. Eu conheço a minha irmã. Eu sinto que ela mudou. Ela está mais...

 

(GARGALHADA DE SILVINHA VINDA DA SALA DE JANTAR INTERROMPE GRACINHA)

 

BLACK OUT

 

ATO II

 

CENA I

 

(SALA DA CASA DOS ANTUNES TEMPOS DEPOIS. A SALA É MODIFICADA. AS PERNAS CENOGRÁFICAS E PARTE DAS BEBIDAS DO BAR SÃO RETIRADAS DURANTE A FALA DO NARRADOR)

 

NARRADOR: (EM OFF) Sala da casa dos Antunes. É noite. A sala está às escuras, mas podemos reparar a decadência do lugar. Algum tempo passou desde o retorno de Silvinha a casa. Muitas coisas mudaram. Silvinha sai agora todas as noites. Sozinha. Uma mulher sozinha andando pelo Cosme Velho. Que perigo.

 

(SILVINHA ENTRA NA CENA SEGUIDA POR D.ZIZI. VESTE UM TAILLER VINHO EXTREMAMENTE DECOTADO. ESTÁ BEBADA E CAMBALEANTE, MAS TENTA NÃO FAZER BARULHO. DERRUBA UM VASO QUE SE ESPATIFA NO CHÃO. ELA FAZ SINAL PARA O VASO NÃO FAZER BARULHO. D.ZIZI SENTA E PARECE SE DIVERTIR OBSERVANDO A FILHA. VlTOR DESCE AS ESCADAS E ACENDE AS LUZES. ESTA DE ROBE)

 

SILVINHA: (TAPANDO OS OLHOS) Apaga essa luz!

VITOR: Onde você estava?

SILVINHA: (TIRANDO AS MÃOS DOS OLHOS) Você quer mesmo saber?

VITOR: Claro.

(D.ZIZI GARGALHA)

SILVINHA: Não seja ridículo.

VITOR: Silvinha, o que está acontecendo?

SILVINHA: Nada. Nunca acontece nada entre a gente. Esse é o problema. .

D.ZIZI: Não fica nem nu. Nem nu pra mulher. (LEVANTA-SE E FICA AO LADO DA FILHA)

VITOR : Vamos tentar conversar?

SILVINHA: Conversar o quê?

VITOR: Sei lá. Tentar resolver alguma coisa.

SILVINHA: Vítor, não me cansa.

VITOR: Você acha que eu gosto dessa situação?

SILVINHA: E você acha que eu gosto? Ora, Vítor, você realmente é muito ridículo.

VITOR: Onde você foi?

SILVINHA: Não é da sua conta. Ou melhor, eu fui me divertir. Algum problema?

VITOR: Por que você não me chamou?

SILVINHA: Porque eu não queria estragar a minha noite. Você não me diverte, Vítor. Você é chato.

D. ZIZI: Chama ele de contínuo.

VITOR: Você não sabe o que diz. Está bêbada.

SILVINHA: Sei muito bem. Você é um entojo. Sempre falando em alunos, aulas, poesias. Ninguém agüenta esse seu papo.

VITOR: É o meu trabalho, é o que eu faço. Sobre o que você queria que eu falasse?

SILVINHA: Sei lá.

VITOR: Vamos conversar com calma?

SILVINHA: Conversar o quê?

VITOR: Toda noite você sai e volta assim. Para onde você vai? O que você faz? Eu tenho direito de saber?

SILVINHA: Direito? Que direito você tem sobre mim? Parece maluco. (VAI PARA O BAR PREPARAR UM DRINQUE)

VITOR: Eu sou seu marido... Eu tenho direito... Já vai beber de novo?

SILVINHA: Se tiver alguma coisa para beber.

D. ZIZI: O contínuo velho acabou com tudo. Aquele bêbado safado.

SILVINHA: Esse bar não é mais o mesmo. O Rudgero... o Rudgero não, isso tem cara de Gracinha. É a cara dela esconder bebida para eu não beber.... Achei. Isso serve.

VITOR: Pára com isso, Silvinha.

SILVINHA: Parar com o quê?

D. ZIZI: Pára não!! Pára não!! Agora vai até o fim.

VITOR: Eu queria ser feliz. Muito feliz, sabia?

SILVINHA: Eu também, mas não deu. E agora? Eu me mato ou mato você?

VITOR: Eu gosto de você.

SILVINHA: E daí?

VITOR: Você não acredita em mim?

SILVINHA: Acreditar? Não tem nada que acreditar ou deixar de acreditar. As coisas são e pronto. Se você diz que gosta de mim... deve gostar. De algum jeito você deve gostar.

VITOR: E você? Gosta de mim?

 

(SILVINHA E D.ZIZI DÃO UMA ENORME GARGALHADA)

 

SILVINHA: Não seja ridículo, Vítor!

VITOR: Por que você não diz?

SILVINHA: Porque certas coisas não precisam ser ditas. Estão claras.

VITOR: Então, você não gosta de mim?

SILVINHA: Você é que está dizendo.

VITOR: Por que a gente não se separa. Você vai viver sua vida, eu vou viver a minha...

D.ZIZI E SILVINHA: De jeito nenhum...

SILVINHA: Nós casamos. Olha pra mim: Eu sou uma mulher digna. Minha família é digna! A minha mãe era da Arqui-Confraria da Beata Virgem. Era a presidente. Você quer que a beata fique falada? Eu acredito em casamento. Vamos viver juntos na mesma casa, até que um de nós morra. Mesmo vivendo vidas diferentes vamos ficar juntos. Até que a morte nos separe.

VITOR : Isso é uma loucura.

SILVINHA: Se você não está satisfeito, porque não vai embora? (VIRA O COPO, BEBENDO TODO O DRINQUE) Ou por outra, porque você não me trai? (RINDO) Você não é homem suficiente para isso. Nem para isso você é homem.

D. ZIZI: É um contínuo mesmo.

 

(SILVlNHA VAI A DIREÇÃO DO BAR PREPARAR OUTRO DRINQUE)

 

VITOR : Você não vai beber mais. (SEGURA SILVINHA PELO BRAÇO)

SILVINHA: (SOLTANDO-SE) Larga. Não quero que você me toque mais.

 

(SILVINHA DÁ UM TAPA NO MARIDO. OS DOIS SE OLHAM, E VITOR ABAIXA A CABEÇA. D. ZIZI PÕE A MÃO NO QUEIXO DE VlTOR E LEVANTA SUA CABEÇA)

 

SILVINHA: Eu dei um tapa na sua cara e você não reage. Você não faz nada.

GRACINHA : (ENTRANDO - ELA ESTÁ DE ROBE) O que está acontecendo aqui?

SILVINHA: Chegou ela... a senhora... a grande dama...

D. ZIZI: Fogosa!

GRACINHA: O que houve?

VITOR : Nada, Gracinha. Nós estávamos...

SILVINHA: Não é dá sua conta. Ou melhor, eu digo. Acabei de dar na cara do meu marido. Bati. Dei um tapa. Assim. Um tapa.

 

(GRACINHA OLHA PARA VITOR. D.ZIZI PEGA NA MÃO DE VITOR E OS DOIS SAEM EM SILÊNCIO)

 

GRACINHA : (P/ A IRMÃ) Por que você fez isso?

SILVINHA: Você sabe. Devia estar escutando tudo. Entrou para salvar o queridinho.

GRACINHA: Você está bêbada.

SILVINHA: Já me disseram isso hoje. Você não está sendo original. (SILVINHA GARGALHA)

GRACINHA: Essa sua gargalhada...  é horrível! Gargalhada de mulher é quase um impudor!

SILVINHA: O quê? Você está louca! Não diz coisa com coisa... Agora, o que eu não entendo... apesar de você estar louca... como pode gostar de um sujeito desses?

GRACINHA: Do que você está falando?

SILVINHA: Não seja cínica. Estou falando do Vítor. Ele não é homem.

GRACINHA: Você é que está louca!

SILVINHA: O casamento... O casamento é uma coisa assim: Estranha! Você só percebe quando está dentro dele... Maldito tio Leopoldo!!

GRACINHA: Tio Leopoldo não tem culpa. Você se arrependeu, Silvia?

SILVINHA: Deve ter sido praga de padrinho... Praga de padrinho... É a pior que tem! Você quer saber de uma coisa? Eu nunca vi meu marido nu.

GRACINHA: Isso não me interessa, Silvia.

SILVINHA: Claro que interessa... Pudor. Pudor em homem... Que coisa ridícula. O homem tem que ser despudorado. Tarado. Sempre. Não respeitar nada!

GRACINHA: Eu não quero falar sobre isso.

SILVINHA: Será que você ficou tão beata que não quer mais saber de homem?

GRACINHA: Eu não sou beata.

SILVINHA: Vive na Igreja é beata. Vai ser a nova presidente das beatas virgens.

GRACINHA: Isso não é brincadeira.

SILVINHA: Pode ser considerado homem, um sujeito que leva na cara? Leva um tapa da mulher. Da mulher. E não reage? A partir de hoje eu vou dar na cara dele todo dia!

GRACINHA: Você está doente. É isso, Silvia. Doente.

SILVINHA: E você? Você pensa que eu não percebo? Na minha cara. Os olhares, as atenções que você tem com ele. Você acha mesmo que eu não percebo?

GRACINHA: Imaginação sua. Pura imaginação. Eu não tenho nenhuma atenção especial com o Vítor.

SILVINHA: A gente não tem mais intimidades. Intimidades de marido e mulher. Sabia? Aliás, acho que a gente nunca teve. E o Rudgero?

GRACINHA: O que tem ele?

SILVINHA: E bom com ele? Ele bate em você?

GRACINHA: Você é muito ridícula.

SILVINHA: Ele tem cara de homem que bate. Eu precisava de um homem assim. Sem pudor. Que cospe no chão. É engraçado, não é? Eu apresentei o Rudgero para você querendo gozar de sua cara. Um açougueiro. No final, eu fui a palhaça. Você sempre ganha.

GRACINHA: Desde criança.

SILVINHA: Um homem sem charme. Nem bonito ele é.

GRACINHA: Eu acho que o Rudgero tem sua beleza.

SILVINHA: É bruto! Mas tem mulher que gosta! Gosta da pegada. O charme dos brutos! Se é que isso pode ser chamado de charme. O Vítor não. É charmoso, é bonito.

GRACINHA: É, mas ele não tem intimidades com você. Novamente eu ganhei.

SILVINHA: Os dois gostam de você. O Vítor diz que gosta de mim, mas eu não acredito. Eu precisava de um homem como o Rudgero. Que me pegasse direito.

GRACINHA: Por que você não arruma um?

SILVINHA: Eu não traio meu marido. Você não acredita?

GRACINHA: Acredito.

SILVINHA: Acredita nada. Também, pouco importa. Eu sei que não traio. Eu devia trair Ele bem merecia. Mas não traio. Não entendo porquê, mas não traio. Simplesmente. Ele também não me trai. Tenho certeza... aposto os tubos! Nem pra isso ele serve. Um sujeito que não trai não é homem. Pra ser homem mesmo tem que ser infiel pelo menos uma vez.  O homem que não trai é uma besta quadrada!

GRACINHA: Vai dormir, Silvia.

SILVINHA: (SEGURANDO A IRMÃ PELO BRAÇO) Eu só vou dormir se você me falar: é bom com o açougueiro, não é? Ele te trata como vagabunda. O açougueiro cospe quando tem intimidades. Ele te respeita? Ele te pega... Ele tem cara de quem não respeita nem poste!

GRACINHA: Silvia, me larga. Você está me machucando.

SILVINHA: Antes me fala. É bom com ele? Diz. É bom com açougueiro, não é? Ele cospe!

GRACINHA: Silvia, me solta.

SILVINHA: Você precisa me dizer! Diz. Eu escuto vocês. Eu escuto. Vocês fazem sem lençol. Em cima do colchão. Do colchão puro. E é bom, não é? É bom?

GRACINHA: (IRADA - COMO SE ESTIVESSE POSSUíDA) É bom. É muito bom. Só que você nunca vai ter isso. Nunca vai sentir isso. Você tem que usar lençol. Tem que usar colcha.(EMPURRA A IRMÃ QUE CAI)

SILVINHA: Ele cospe. O açougueiro cospe sempre.

GRACINHA: Cospe! Cospe! Ele cospe!!

SILVINHA: Eu sabia. Eu escuto e sinto isso. Então porque você prefere o outro...

GRACINHA: Eu prefiro que você não sinta nada. Eu prefiro que você escute e imagine sem sentir.

SILVINHA: Sem lençol. Em cima do colchão puro. Toda cuspida. Eu estou cansada... eu não consigo entender mais nada... (DORME VENCIDA PELA BEBIDA)

 

- AO FUNDO TOCA UMA MÚSICA DE RODA -

 

BLACK OUT

 

CENA II

 

(SALA DA CASA DOS ANTUNES. A COBERTURA DO SOFÁ E A TOALHA DO BAR SÃO RETIRADOS. A SALA DEVE PARECER TOTALMENTE DECADENTE).

 

NARRADOR : A sala da casa dos Antunes. A decadência é total. O Cosme Velho não é mais o mesmo. Estão longe os tempos áureos de D.Zizi. Os vários objetos de arte, relíquias da família, sumiram, quebraram ou foram vendidos. Os chás de caridade, a louça branca, o exemplo da família de moral. Os tempos são outros...

 

(ENTRA GRACINHA SEGUIDA PELA EMPREGADA QUE ESTÁ COM O UNIFORME SUJO. GRACINHA ESTÁ DE ROBE E PARECE BASTANTE CONTRARIADA)

 

EMPREGADA: A senhora desculpe, viu D.Gracinha, mas faz um tempão que eu estou trabalhando sozinha nessa casa. Foi todo mundo embora.

GRACINHA: Eu sei.

EMPREGADA: E eu não posso fazer almoço e jantar para quatro pessoas com essa quantidade de comida que "Seu" RUDIGIRO compra.

GRACINHA: O nome dele é Rudgero.

EMPREGADA: Ele compra pouca comida. Não sobra nem pra mim. Eu vim pra cá pra ser arrumadeira. Eu não sou cozinheira. Eu até faço, mas só sei fazer o feijão com arroz. Eu falo com o "Seu" RUDIGIRO que ele tem que comprar mais comida, mas ele fala que eu tenho que pedir para o "Seu" Vitor. Eu nem peço porque eu sei que ele não tem dinheiro mesmo. Nem adianta pedir.

GRACINHA: Que história é essa?

EMPREGADA: Ah, D.Gracinha, a gente sabe das coisas. A gente é empregada, mas não é surda nem cega. Todo mundo sabe que o "Seu" RUDIGIRO tem dinheiro. Ele tem um monte de açougues. E tem mais uma coisa: o mês passou e ninguém me pagou. Fica só no jogo de empurra. Do "Seu" Rudigiro pra "Seu" Vítor, do "Seu" Vítor pra "Seu" Rudigiro. E eu que me arrebente, né? Olha, eu vou ser franca com a senhora: eu gosto da senhora porque a senhora é uma mulher fina. Filha de uma mulher mais fina ainda que era D.Zizi, que Deus a tenha, mas eu não vou trabalhar mais aqui. Ah, não. Essa família parece coisa de Nelson Rodrigues...

GRACINHA: Como é que é?

EMPREGADA: Nelson Rodrigues. A senhora não conhece? Bom, se a senhora não conhece, eu é que não vou lhe contar. Com licença.

 

(GRACINHA FICA PARADA NO MEIO DA SALA. PARECE QUE VAI EXPLODIR POR DENTRO. ENTRA RUDGERO, TRAZ UM JORNAL NA MÃO)

 

RUDGERO: Bom dia!

GRACINHA: Onde você foi?

RUDGERO: Comprar jornal. (MOSTRA O JORNAL)

GRACINHA: A empregada pediu demissão.

RUDGERO: (TRANQUILO) E?

GRACINHA: É. Você não paga a empregada, ela tem que ir embora.

RUDGERO: Nem eu, nem o cunhadinho.

GRACINHA: Você tem muito mais dinheiro. Não seja mesquinho.

RUDGERO: Mesquinho? Você acha que eu tenho que pagar tudo, e o maridinho da sua irmã nada? Eu tenho dinheiro porque trabalho. Meu pai trabalhou muito para chegar aonde chegou. Eu não tenho culpa que o "professorzinho" gaste o salário dele com as loucuras da sua irmã. O quê você quer? Quer que eu os sustente? Quer que eu sustente o cunhadinho?

GRACINHA: Eu não estou dizendo isso.

RUDGERO: Está falando o quê?

GRACINHA: Você aceitou que eles viessem para cá.

RUDGERO: Uma coisa é: eles morarem aqui, outra coisa é: sustentá-los. Sustentar o cunhadinho.

GRACINHA: Ah, eu não sei, Rudgero. Faça como achar melhor.

RUDGERO: Mexeu com o queridinho, você fica logo tonta.

GRACINHA: Pára com isso. Eu não quero discutir com você. Tenho que me arrumar para ir a Igreja.

RUDGERO: Que raio de Igreja é essa? Agora é todo dia! Você vai a Igreja mesmo?

GRACINHA: Claro que vou. Você está pensando o quê?

RUDGERO: É muito estranho isso. Todo dia. Deve ter coisa aí.

GRACINHA: Não vejo nada de estranho. Minha mãe era da Arqui...

RUDGERO: Já sei. Arqui-Confraria da Beata Virgem. Só que você não é mais virgem. Que diabo!!

GRACINHA: Minha mãe também não era virgem. Virgindade não é pré-requisito.

RUDGERO: Mas devia ser. Você não quis nem casar na Igreja. Eu pedi. Insisti. E você nada. Dizia que não gostava. Que não era religiosa. E agora não sai de dentro.

GRACINHA: As pessoas mudam. Eu não vejo problema nisso.

RUDGERO: Gracinha, o quê está havendo? O quê você quer? Quer que eu pague as contas? Eu pago. Contrato vinte empregadas. Sustento o Cunhadinho. A Silvinha. É isso que você quer?

GRACINHA: Eu não estou pedindo isso. Eu só não gostaria de continuar ouvindo fofoca de empregada. Eu não preciso disso. Talvez algum dia você entenda.

RUDGERO: Eu sou muito bronco para entender, não é?

GRACINHA: Eu não disse isso.

RUDGERO: Eu te amo, Gracinha. (GRACINHA APENAS OLHA PARA O MARIDO. D.ZIZI APARECE NA ESCADA) Você não diz nada?

GRACINHA: Eu nunca menti pra você. Não vou mentir agora. (SOBE AS ESCADAS)

(RUDGERO FICA ARRASADO. VAI ATÉ O BAR E PROCURA UMA BEBIDA. ENCONTRA UMA GARRAFA JÁ PELA METADE. ENCHE O COPO. ANTUNES APARECE VINDO DA SALA DE JANT AR. TEM UM COPO NA MÃO.)

 

DR.ANTUNES: Espeto, espeto!!

 

(VAI ATÉ O BAR E SE SERVE DA MESMA BEBIDA DE RUDGERO. SILVINHA DESCE AS ESCADAS E É SEGUIDA POR D.ZIZI)

 

SILVINHA: Bom dia!

RUDGERO: (SECO) Bom dia.

SILVINHA: Nossa que mau humor. Bebendo há essa hora? Depois eu é que sou a bêbada. O quê houve?

RUDGERO: Nada.

SILVINHA: Brigou com a Gracinha?

RUDGERO: Não. O maridinho saiu?

SILVINHA: Sei lá. Acho que foi visitar o Tio Leopoldo.

D.ZIZI: O Leopoldo é pederasta.

DR.ANTUNES: Meu irmão é pederasta?

RUDGERO: Você nem quer saber, não é?

SILVINHA: Por mim. (DÁ DE OMBROS)

RUDGERO: Você gosta do poetinha?

SILVINHA: Engraçado, você não fala mais o nome do Vitor. Porque?

RUDGERO: Não muda de assunto... Você gosta do maridinho?

SILVINHA: O quê você chama de gostar?

RUDGERO: Gostar. Amar. Sentir alguma coisa por ele. Você sente?

SILVINHA: Acho que sim... Talvez...

RUDGERO : E por mim?

SILVINHA: Por você o quê?

RUDGERO: Você sente alguma coisa? (GALANTEADOR) Pode ser ou está difícil?

SILVINHA: O quê é isso, Rudgero?

 

(RUDGERO LARGA O COPO E VAI ATÉ A CUNHADA. SEGURA ELA PELA CINTURA NUM ABRAÇO FORTE)

 

DR.ANTUNES: Espeto, espeto!!.

RUDGERO: Você sabe.

SILVINHA: Ai, Rudgero, vai com calma. A Beata Virgem está lá em cima.

RUDGERO: Vamos para outro lugar.

SILVINHA: E quem disse que eu quero me encontrar com você?

RUDGERO: Eu sei que quer.

SILVINHA: Eu não sei. Depende... Aonde você quer me levar? Para o açougue?

RUDGERO: Passa lá no escritório. De tarde. Tipo três horas.

SILVINHA: (SOLTANDO-SE DELE) Não sei.

RUDGERO: Você não quer?

SILVINHA: E a Gracinha?

RUDGERO: Ela nem vai ligar.

SILVINHA: Não?

RUDGERO: Ela gosta do professorzinho. E você também, não é?

D.ZIZI: Não. Ela não gosta do contínuo.

RUDGERO: Eu queria entender isso. Como duas mulheres podem gostar de um homem. E um homem estranho. Sempre com aquele ar de quem lavou o rosto há dez minutos. O que ele tem? Eu queria saber. Descobrir.

D.ZIZI: Ih... esquisito.

SILVINHA: Você quer me usar para se vingar do Vítor?

RUDGERO: E por quê não? Vai ser bom para nós dois.

SILVINHA: Você acha?

RUDGERO: Eu sei que você não tem intimidades com o maridinho. E é uma pena isso acontecer com uma mulher como você. Tão...

SILVINHA: Tão vagabunda?

D.ZIZI: Vagabunda!

DR.ANTUNES: Vagabunda!

RUDGERO: É... Vagabunda. Eu sei lidar com vagabundas.

SILVINHA: Será? A vagabunda e o açougueiro. O açougueiro sempre cospe. Faz sem lençol. No colchão puro.

RUDGERO: No colchão puro. Puro. Até no estrado. Sê você quiser, eu te cuspo. Na hora eu te cuspo. Banho de saliva. Passa lá no escritório. Às três horas eu te cuspo.

SILVINHA : Não sei.

RUDGERO: Você vai?

SILVINHA: Quem sabe? Talvez...

 

(SILVINHA PEGA O COPO DE RUDGERO E SOBE LENTAMENTE AS ESCADAS)

 

- MÚSICA DE RODA AO FUNDO -

 

BLACK OUT

 

CENA III

 

(SALA DA CASA DOS ANTUNES. GRACINHA ESTÁ SENTADA NO SOFÁ LENDO UM LIVRO, MAS PARECE NÃO CONSEGUIR SE CONCENTRAR).

 

NARRADOR: (EM OFF) A sala da casa dos Antunes. Não há nem uma leve sombra dos tempos de D.Zizi. As beatas virgens viram o rosto ao passar pela casa. Mas o pior está por vir. O Cosme Velho vai tremer. A ruína. A destruição. A lama. O fim está próximo.

 

(GRACINHA FECHA O LIVRO E CONSULTA O RELÓGIO. PARECE ANSIOSA. LEVANTA E VAI ATÉ O BAR. ABRE UMA GAVETINHA E PEGA UM REVÓLVER. ELA OLHA PARA A ARMA, DEPOIS PARA A SALA. PARECE TER NOJO. ANTUNES APARECE)

 

DR.ANTUNES: Espeto, espeto!

 

(DR ANTUNES VAI ATÉ O BAR PROCURAR BEBIDA. GRACINHA CONSULTA O RELÓGIO MAIS UMA VEZ. GUARDA A ARMA NA GAVETA E VOLTA PARA O SOFÁ. TENTA LER, MAS NÃO CONSEGUE. BARULHO NA ESCADA - É SILVINHA SEGUIDA POR D.ZIZI)

 

SILVINHA: (DESCENDO) Bom dia.

GRACINHA: (SECA) Bom dia. Acordou cedo. Vai sair?

SILVINHA: Vou terminar de me arrumar e sair. Você viu a linha branca?

GRACINHA: (DRAMÁTICA) Não tem mais linha branca! Não há mais nada branco nessa casa!

SILVINHA: Credo. Você não anda bem, minha filha.

GRACINHA: Eu sei para onde você vai.

SILVINHA: E para onde eu vou?

GRACINHA: Você vai encontrar com o Rudgero. Vocês têm se encontrados quase todos os dias.

(AS DUAS SE OLHAM EM SILÊNCIO)

 

DR.ANTUNES: Desavergonhadas. As duas. Cínicas.

GRACINHA: Brincadeira. Não tenho a menor idéia para onde você vai.

SILVINHA: Você acha que eu seria capaz de fazer isso?

GRACINHA: Talvez.

SILVINHA: Esse negócio de ir a Igreja todo dia não está te fazendo bem. Está ficando louca. Uma beata virgem e louca.

GRACINHA: Eu não sou beata.

SILVINHA: O que você tanto faz nessa Igreja? Vai rezar?

GRACINHA: De certa forma.

SILVINHA: Então está bem. Reza por mim. (VAI SUBIR)

GRACINHA: (CHAMANDO) Silvia!

SILVINHA: O que é?

GRACINHA: Eu sonho com mamãe e papai.

SILVINHA: Já sei. Mamãe é a presidente das beatas virgens.

D.ZIZI: Das beatas safadas!!

GRACINHA: Não, Silvia. Eu sonho diferente. Todo dia. Eu sinto. Mamãe é uma dama antiga que morou aqui há muitos anos.

SILVINHA: A mamãe é uma dama antiga?

 

(AS DUAS OLHAM PARA D.ZIZI QUE SE ABANA LENTAMENTE)

 

GRACINHA: Uma dama antiga com um enorme leque.

DR.ANTUNES: Tua mãe é uma fogosa. Fogosa.

D.ZIZI: (DELIRANTE) Fogosa! Eu sou fogosa!! (GARGALHA)

SILVINHA: Daqui a pouco você vai dizer que papai era Dom Pedro...

D.ZIZI: Contínuo. Contínuo bêbado com irmão pederasta.

SILVINHA: ... e que a casa era um prostíbulo.

(SILVINHA E D.ZIZI GARGALHAM)

GRACINHA: Silvia, não esqueça: você sempre perde.

SILVINHA: É o que você pensa.

GRACINHA: Eu estou te avisando.

SILVINHA: Gracinha vai rezar que é melhor.

 

(SILVINHA SOBE ACOMPANHADA POR. D.ZIZI. GRACINHA CONSULTA O RELÓGIO. TOCA O TELEFONE)

 

GRACINHA: Alô... A Silvia não está, Vitor... Não tenho a menor idéia. Ela saiu faz tempo... Um tempão...O Rudgero deve estar trabalhando... Mas eu não sei, Vitor.. Ela tem saído sempre há essa hora... Todo dia... Eu acho melhor você vir para cá... É... Temos muito que conversar... Eu espero. Tchau.

 

(GRACINHA DESLIGA. CONSULTA O RELÓGIO. VOLTA PARA SUA LEITURA SEM MUITO SUCESSO. ANTUNES CONTINUA NO BAR A PROCURAR BEBIDAS.)

 

DR.ANTUNES: Espeto, espeto!!

 

(ENTRA RUDGERO E SE ESPANTA QUANDO VÊ A MULHER)

 

RUDGERO: Gracinha? Você está aí?

GRACINHA: Claro. Chegando há essa hora em casa? Aconteceu alguma coisa?

RUDGERO: Nada.

GRACINHA: Você parece nervoso. O que foi?

RUDGERO: Já disse que não aconteceu nada.

GRACINHA: Ela está lá em cima. Atrás de uma linha branca.... Linha branca... Não há mais nada branco nessa casa.

RUDGERO: Do que você esta falando?

GRACINHA: Rudgero, eu não sou idiota. Você recebeu o recado? O recado da Silvia: que eu tinha saído, que ia demorar e ela precisava falar com você aqui. A secretária deu o recado direitinho.

RUDGERO: Foi você que mandou o recado?

GRACINHA: As pessoas sempre confundem a minha voz com a dela. Desde pequenas.

RUDGERO: Por que você fez isso?

GRACINHA: Rudgero, eu não amo você. Eu não sinto nada por você. Eu sei que você gosta de mim, mas também sei que você precisa de uma... (DÁ DE OMBROS) de uma mulher.

DR.ANTUNES: Fogosa. Uma mulher fogosa.

GRACINHA: Por isso entendo que você tenha uma amante. Mas a minha irmã, não. Qualquer outra, menos a minha irmã.

RUDGERO: Gracinha eu...

GRACINHA: Eu não fico chateada que você arrume uma amante. Mas a minha irmã, não. É demais. Se você quiser pode trazer uma vagabunda qualquer para vir morar aqui.

RUDGERO: (COM MEDO) Mais uma mulher? Você aceitaria isso?

GRACINHA: Ia ser um favor que você me faria.

RUDGERO: Você tem nojo de mim.

GRACINHA: Não. Eu não sinto nada por você. Eu já disse isso. Eu não minto para você.

DR.ANTUNES: Ela foi batizada.

RUDGERO: Então, por que você casou comigo?

GRACINHA: Você estava por ai, e eu estava precisando. Talvez eu seja como seu pai. Uma pessoa prática.

RUDGERO: Se você é tão prática assim: qual é o problema com a Silvinha?

GRACINHA: Não é por você. É por ela. Eu não quero que ela traia o Vitor. Ainda por cima com o cunhado.

RUDGERO: Agora eu entendi. O problema é o cunhadinho.

GRACINHA: Eu não vou explicar. É assim e acabou.

RUDGERO: Um poetinha.

GRACINHA: Você não fala mais o nome dele. Não diz mais o nome do Vitor. Por que?

RUDGERO: Eu queria sentir. Saber como duas mulheres podem amar um homem.

DR.ANTUNES: Ih... esquisito.

GRACINHA: Você tem ciúme? É isso?

DR.ANTUNES: Será?

RUDGERO: (COM DESPREZO) Um poetinha delicado. Você ama o poetinha?

GRACINHA: Talvez. Quem sabe?

RUDGERO: (VIOLENTO) Eu devia quebrar a sua cara!

GRACINHA: Mas você não vai fazer isso.

RUDGERO: Por causa desse professorzinho. Desse delicadinho. Você sabia que ele apanha dela? Que ela dá na cara do poetinha?

GRACINHA: Eu escuto.

RUDGERO: Eu queria sentir.

GRACINHA: O que?

RUDGERO: E mesmo assim... Ele é frágil. Cheio de pudores. Está sempre com aquela cara de quem lavou o rosto há dez minutos. Eles não fazem mais. Não tem mais intimidades. Se é que você me entende?

GRACINHA: Eu gosto de pudores. Pudor em homem é bonito. Mas isso te incomoda, não é?

RUDGERO: Eu queria saber. Eu quero ser feliz. A gente pode ser feliz...

GRACINHA: Se você quer me ver feliz, largue a Silvia.

RUDGERO: Você nunca sentiu nada comigo?

GRACINHA: Você me cospe.

RUDGERO: Eu pensei que você gostasse.

GRACINHA: Fico toda cuspida. Cheirando a saliva. Mas eu não sinto nada. Nem nojo. Fico cuspida, mas sem nojo. Mas você sente, não é? Prazer. Aliás, você deve sentir prazer com qualquer uma. Até com um poste.

RUDGERO: Você não merece nem apanhar. Eu vou continuar com a Silvinha. Ela tem... tem sangue. Ela faz até no estrado.

GRACINHA: Eu imagino. A Silvia tem as costas boas. Sempre teve. A pele grossa. Desde pequena. Eu via no banho. Eu via o banho da irmã. A água batendo. Era imoral.

DR.ANTUNES: Espeto, espeto!!

GRACINHA: Você precisa disso. É um açougueiro. Mas quando você está com ela, é em mim que você pensa.

RUDGERO: Não é.

GRACINHA: Se não pensa em mim, será que pensa em outra pessoa?

RUDGERO: (EXPLODINDO) Você é doente!

DR.ANTUNES: Ih... esquisito.

(SIL VINHA DESCE AS ESCADAS ACOMPANHADA POR D.ZIZI)

SILVINHA: O que está acontecendo?

GRACINHA: Ela está aí, Rudgero. Vocês querem ficar a vontade? Querem que eu saia?

SILVINHA: Não sei do que você está falando.

 

(RUDGERO PARECE PERDIDO)

 

GRACINHA: (DRAMÁTICA) Eu sou uma esposa humilhada. A própria humilhada. A humilhação está marcada na minha cara. É a máscara que vocês me deram. Mas eu não admito. Essa máscara não me cabe. Ficou grande demais.

RUDGERO: (VAI PARA A ESPOSA) Gracinha, eu te amo.

SILVINHA: Você ama?

GRACINHA: Não me toque, Rudgero! (ALUCINADA PARA A IRMÃ) Onde está o seu marido? Onde ele foi? Você sabe?

 

(SILVINHA ESTÁ LÍVIDA. PARECE UMA MORTA EM PÉ. RESPONDE LENTAMENTE)

 

SILVINHA: Não sei.

GRACINHA: Está na casa do tio Leopoldo.

D.ZIZI: O pederasta!!.

DR.ANTUNES: (LEVANTANDO O COPO COMO SE ESTIVESSE BÊBADO) O pederasta !!

GRACINHA: Mas ele está vindo pra cá. Ele vem pra cá. Vamos resolver tudo hoje.

 

(ENTRA VITOR)

 

GRACINHA: Vítor!

D.ZIZI: Ih, a baixaria está completa!!

VITOR: A preocupação me trouxe em seus braços céleres. (REPARA NA ESPOSA E NO CUNHADO) Silvinha? Rudgero?

GRACINHA: Eles são amantes, Vitor!

 

(VITOR ABAIXA A CABEÇA. PARECE SENTIR UMA DOR PROFUNDA)

 

SILVINHA: Vítor, eu explico.

VITOR: Eu não sei por quê me casei com você. Eu acho que eu gosto de você. Eu gosto. Eu não sei mais nada.

GRACINHA: (FINGINDO PENA) Calma, Vitor.

VITOR: (PARA A ESPOSA) Sabe porque eu nunca fiquei nu para você? Sabe porquê?

SILVINHA: Não sei se quero saber.

GRACINHA: Não diga! Não diga!

RUDGERO: Ele precisa. Precisa falar.

GRACINHA: Não quero saber.

VITOR: Vocês precisam ouvir. Eu tenho que dizer.

SILVINHA: É uma coisa nossa. Ninguém tem que ouvir.

RUDGERO: Diga. Eu quero saber. Eu preciso saber.

GRACINHA: Não diga.

VITOR: Eu vou falar.

SILVINHA: Não.

RUDGERO: Sim.

D.ZIZI: Fala logo!

VITOR: Eu tenho.

GRACINHA: (RASGADA) Então, fala. Diz. Diz de uma vez.

VITOR: Eu não fico nu para minha mulher.

D.ZIZI: Isso o Cosme Velho todo já sabe.

VITOR: (RASGADO) Eu amo a Silvinha, mas ela não é o amor da minha vida. Descobri isso na primeira noite. Era só carne. Eu amo o corpo dela. Nunca fiquei nu para ela. Eu não poderia. Um homem só deve ficar nu para o amor da sua vida. Nenhum outro. Somente o amor da sua vida é sublime. O resto é desejo. Desde pequeno. Criança. Em criança, eu já pensava assim. Sempre pensei assim.

D.ZIZI: Era só isso? Que bobagem!! Sujeito maluco!

RUDGERO: (EXULTANTE) Eu sabia. Eu sabia.

VITOR: (P/RUDGERO) Você era meu amigo. Açougueiro. Não diz mais o meu nome. Só me trata por diminutivos. Por diminutivos. Você tem desejo. Vive entre as carnes. Você precisa de sangue. Eu tenho medo de sangue. Eu não poderia. Eu não sei o que aconteceu. (DELIRANTE) Eu vou tirar a roupa! Tirar a roupa agora! Ficar nu! Vou ficar nu para o resto da vida!!

GRACINHA: (AGARRA-SE AO CUNHADO) Não, Vitor. Eu acho tão bonito o pudor. Pudor em homem é lindo.

SILVINHA: Deixa. Eu quero ver pelo menos uma vez.

GRACINHA: (DESESPERADA) Não, Vitor. Não faça isso.

RUDGERO: (COM UM SOFRIMENTO DELIRANTE) Tira! Tira tudo!! Eu quero ver. Eu preciso ver o cunhado nu.

DR.ANTUNES: Tira! Tira! Tira!

D.ZIZI: Velho tarado. Pederasta.

GRACINHA: Não, Vitor. É isso que eles querem. Eles são amantes. Eu vi.

SILVINHA: É mentira.

GRACINHA: O Rudgero disse que gostava mais da Silvia. Eles se encontram no escritório. Eu fui ver. Eles têm intimidades com a luz acesa. O pecado com luz elétrica é asqueroso! Ela ainda disse que via o banho dela. O banho da cunhada. Eles fazem sem lençol, sem colchão. No estrado. No estrado puro.

RUDGERO: Mentira. Eu não disse.

VITOR: (SEM OUVIR RUDGERO - HORRORIZADO) No estrado? No estrado puro? Com a luz acesa?

RUDGERO: (CRUEL) No estrado.

GRACINHA: Silvia sempre teve boas costas. A pele grossa.

SILVINHA: Sempre tive. As costas duras. Eu agüento. Eu agüento qualquer coisa. Na brasa quente. Com areia.

GRACINHA: E ele disse que eu não era mulher. Não era mulher para ele. Que eu não tenho as costas boas. Ele cospe nela.

VITOR: (INCRÉDULO) Cospe?

RUDGERO: (CRUEL) Cuspo.

GRACINHA: O amor deles tem cheiro de saliva. Cheiro de saliva cuspida. Ele não quer uma mulher. Quer uma escarradeira.

VITOR: (P/RUDGERO - DRAMÁTICO) Você cospe nela. Cospe sem lençol, sem colchão e com a luz acesa. Eu devia cuspir na sua cara.

RUDGERO: (DESCONTROLADO) Cospe!! Cospe que eu quero sentir.

(SILVINHA SE ATIRA SOBRE O MARIDO)

SILVINHA: (SUPLICANTE) Nele não. Em mim. Cospe em mim.

 

(VITOR EMPURRA A ESPOSA, QUE CAI. GRACINHA OBSERVA A CENA COM ENORME PRAZER. VITOR AVANÇA LENTAMENTE PARA RUDGERO)

 

RUDGERO: Eu sempre esperei por isso. Eu sempre quis.

 

(UM MINUTO DE TENSÃO. VITOR PÁRA)

 

VITOR: (LENTAMENTE, SABOREANDO AS PALAVRAS) Eu não quero. Não quero cuspir. Não agüentaria que ninguém cuspisse.

RUDGERO: (SUPLICANTE) Eu preciso. Nem que seja um perdigoto. Por favor.

D.ZIZI: (COM MALDOSA PIEDADE) Cospe nele.

VITOR: (CRUEL) Não. Não vou cuspir.

(RUDGERO ABAIXA A CABEÇA. ESTA ARRASADO)

DR.ANTUNES: Espeto, espeto!!

SILVINHA: (SOFREGA) Vitor.

VITOR: Desgraçados. Os dois. Dois desgraçados que fazem sem lençol. Cheios de saliva na boca.

GRACINHA: (DESESPERADA) Eu não agüento... penso em fazer uma loucura. Vou jogar fora todos os lençóis da casa. (VAI ATÉ O CONSOLE E PEGA O REVÓLVER NA GAVETA)

VITOR: Gracinha, o que você vai fazer?

GRACINHA: (FINGINDO FRAQUEZA) Eu quero, mas não consigo.

VITOR: (INDO ATÉ A CUNHADA E PEGANDO O REVÓLVER) O grande erro da minha vida foi ter casado com sua irmã. Ela nunca quis comprar um colchão, um lençol. Agora, eu entendo porquê. Ela é igual ao açougueiro. O açougueiro que eu. (P/RUDGERO) Olha pra mim, desgraçado.

 

(APONTA A ARMA PARA RUDGERO. D.ZIZI COLOCA A MÃO NO QUEIXO DE RUDGERO E LEVANTA SUA CABEÇA)

 

SILVINHA: Não, Vítor!!

VITOR: (DESESPERADO) Diz meu nome, canalha!

RUDGERO: (NUM GRITO LANCINANTE) Vítor !!

 

(VITOR ATIRA E ACERTA RUDGERO EM CHEIO. DEPOIS APONTA PARA A PRÓPRIA CABEÇA E ATIRA. OS DOIS CAEM NO CHÃO. GRACINHA VAI ATÉ O BAR E PREPARA DOIS DR1NQUES. ESTÁ TRANQÜILA.)

 

GRACINHA: (P/A IRMÃ) Veja se estão mortos.

(SILVINHA OBEDECE. D.ZIZI ABANASSE LENTAMENTE. ANTUNES PERMANECE NO BAR)

GRACINHA: Eles estão mortos? (SILVINHA NÃO RESPONDE. ANDA LENTAMENTE ATÉ O SOFÁ E SENTA. PARECE ANESTESIADA) Uma cena de ciúme. O marido humilhado mata o amante da mulher, que era seu cunhado. Devia ter mais coisa por trás, mas ninguém precisa saber disso. Os colchões e lençóis dessa casa vão ficar em paz agora. (DÁ UM COPO PARA A IRMÃ) Você sabe porquê eu vou a Igreja todo dia? (A IRMÃ NÃO RESPONDE) Eu não sou da Arqui-Confraria da Beata Virgem. Nem poderia. A virgindade é pré-requisito.Virgindade de alma. Eu fico do lado de fora esperando acabar a missa. Vejo todo mundo sair. E quando não tem mais ninguém na Igreja, eu entro vou até o altar e cuspo. Cuspo no altar. Faço isso todos os dias. Religiosamente.

SILVINHA : (SOFRIDA) Você também cospe?

GRACINHA: Cuspo. Com vontade. Nós não tínhamos que casar. Eu não casei na Igreja. Não quis.

SILVINHA: (NUM ESFORÇO) Eu perdi...

GRACINHA: Eu disse que você sempre perdia. Eu ganhei mais uma vez, mas aceito disputar de novo. Você quer? Silvinha, compreenda, nos estamos agora como sempre desejamos ficar. Sozinhas. Sozinhas e disputando. Só eu e você, mais ninguém.

 

(GRACINHA BATE COM SEU COPO NO COPO DA IRMÃ COMO SE BRINDASSE - D.ZIZI GARGALHA - MÚSICA DE RODA AO FUNDO)

 

FIM

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