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RELATOS BANAIS.jpg

CENA: O cenário não define um lugar específico. Parece um lugar sujo, abandonado e com lixo em toda volta. Os atores (ATOR 1, ATOR 2 e ATRIZ) vestem trajes esfarrapados. No palco apenas três cadeiras, uma pequena mesa. Em cima da mesa um caixote de madeira. Em cima do caixote um boneco articulado de madeira. A música começa em OFF. Deve ser uma música triste. Como uma cantilena de um velório. A luz sobe em resistência. Três focos nos atores que estão em pé atrás das cadeiras.

 

MÚSICA: NA PARTE VELHA DA CIDADE

 

                        Na parte velha da cidade...

                        Um lugar da eternidade!

                        Nas calçadas, no asfalto,

                        A mentira brinca com a verdade.

                        É o lugar do cheio e do vazio.

                        Do inteiro e da metade.

 

                        Na parte velha da cidade...

                        Onde mora a brutalidade!

                        Nos sujos botequins

                        A canção é sempre saudade.

                        Nos prédios... Nas valas...

                        Uma estranha realidade!

 

                        Na parte velha da cidade...

                        Onde vive a mediocridade!

                        Pelas ruas, pelas vielas,

                        Assim caminha a humanidade.

                        A procura do impossível...

                        A procura da felicidade.

 

                        Na parte velha da cidade...

                        Na parte velha da cidade...

                        Na parte velha da cidade...

                        Na parte velha da cidade...

 

(A MÚSICA TERMINA – MUDANÇA DE LUZ E CLIMA – OS ATORES SE POSICIONAM)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Primeiro relato!

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Odete!

 

(OS TRÊS CAMINHAM PELO PALCO COMO SE ESTIVESSEM NA RUA ANDANDO DE LÁ PRA CÁ – EM OFF TOCA UMA MÚSICA DE FUNDO)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Estamos na parte velha da cidade e vemos Salvador (APONTA PARA SI MESMO) Ele acaba de sair do trabalho e está com o colega de sempre. (PERGUNTA PARA ATOR 2 – COMO SALVADOR) Que é o...?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Artur!

ATRIZ: (NARRADOR) Armando?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Artur!

ATRIZ: (NARRADOR) Agenor!

ATOR 2: (PERSONAGEM) Artur!

 

(ATOR 1 E 2 ANDAM LADO A LADO)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Os dois estão caminhando quando Salvador tem a visão da beleza!

ATOR 1: (A MÚSICA PARA – COMO PERSONAGEM ELE OLHA PARA O BONECO EM CIMA DA CAIXA E FALA) Olha que mulherão!

ATOR 2: (COMO ARTUR) Onde?

ATOR 1: (PERSONAGEM , O ATOR APONTA PARA O BONECO) Ali! Não tá vendo?

ATOR 2: (COMO ARTUR) Ali? Não é mulher não.  Não é mulher mesmo! Você não está vendo, Salvador?

ATOR 1: (PERSONAGEM) Claro! Só estou mexendo com você. Claro que eu estou vendo!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Não via.  Ele não conseguia ver.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Pensou: É impressionante! Como não é mulher? Tem o porte, o andar. Um pouco alta, talvez. Mas isso não é motivo. Para Salvador é uma mulher.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ele é bancário. Trabalha na parte velha da cidade. Voltava para casa com o colega de sempre quando teve a visão da beleza.

 

(OS ATORES FALAM OLHANDO PARA O BONECO – ENQUANTO UM FALA OS OUTROS IMITAM SEUS MOVIMENTOS QUE DESCREVEM O PERSONAGEM)

 

ATOR 1: Já tinha tido a visão outras vezes. Sempre o mesmo porte. A mesma elegância. E os vestidos?  Curiosamente ela só usa vestidos longos e extremamente justos.

ATOR 2: (NARRAÇÃO ) Os seios explodindo no decote generoso.

ATRIZ: (NARRAÇÃO ) O cabelo preso num coque maravilhoso.

ATOR 1: (NARRAÇÃO ) É linda demais para não ser mulher.

ATOR 2: (NARRAÇÃO ) Para onde iria aquela deusa?

ATRIZ: (NARRAÇÃO ) Por que está ali na parte velha da cidade?

JUNTOS: Ela não parece em nada com aquilo.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Salvador se lembra da noiva. A Graça...

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Não é Margareth?

ATOR 1: (PERSONAGEM) Não! É Graciete! Ela é que não parece uma mulher. Até buço tem.

 

(ATRIZ TIRA O BONECO DE CIMA DA MESA E GUARDA NA CAIXA - A MÚSICA DE FUNDO PARA)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Enquanto pensa na noiva ele perde a visão da deusa. Fica com ódio da Georgete.

ATRIZ: (PERSONAGEM - VOLTANDO) Não é Graciete?

ATOR 2: (COMO A NOIVA) Meu nome é Deusdete!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Quando chega em casa encontra a noiva. (APONTA PARA ATOR 2)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Aliás, ela não sai de lá. Ela e o buço.

ATOR 2: (DESCREVENDO) Estou de calça comprida, tênis e camiseta. Um arquinho feio prende o meu cabelo sem graça.

ATRIZ: Ela e o buço se aproximam para beijá-lo.

 

(ATOR 2 FAZ UM BIQUINHO PREPARANDO O BEIJO - ATOR 1 E ATRIZ FAZEM CARA DE NOJO)

 

ATOR 1: Salvador tem nojo. Resolve terminar o noivado.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A noiva chora.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Salvador fica com pena, mas depois da deusa nada mais existe.

 

(MUDANÇA DE CLIMA – OS TRÊS CAMINHAM PELO PALCO)

 

ATRIZ: (TIRA O BONECO DA CAIXA E O COLOCA EM CIMA DA MESA) Uma semana depois, numa sexta-feira, ele voltava pra casa com o colega de sempre quando... (ATOR 1 E 2 OLHAM PARA O BONECO) teve novamente a visão.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ele vê a deusa. Ela está com um vestido preto e longo. Com o decote generoso. Mas tem um detalhe a mais...

ATOR 2: (NARRAÇÃO) E que detalhe: duas enormes fendas nas laterais do vestido mostram as pernas.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Que pernas! É demais. Ele não suporta. Inventa uma desculpa qualquer para o colega (PARA ATOR 2 – COMO SALVADOR) Ih! Esqueci um negócio! (NARRAÇÃO) E vai atrás da deusa.

 

(A ATRIZ PEGA O BONECO E ANDA PELO PALCO. ATOR 1 A SEGUE E ATOR 2 OBSERVA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Eles andam dois quarteirões, e ela entra num sobrado.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) E Salvador espantado diz:

ATOR 1: (COMO SALVADOR) Será que ela mora aqui? Impossível. Ela só pode morar no céu!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Tem um bar ao lado do sobrado. Ele decide esperar. Vai ao bar e pede:

 

(ATOR 2 PEGA UMA PEQUENA BANDEJA. ATOR 1 SENTA NA CADEIRA E ATOR 2 O SERVE COMO UM GARÇOM – EM OFF PERSUSSÃO DE TEMPO PASSANDO)

 

ATOR 1: (PERSONAGEM) Um refrigerante... (PAUSA) Um sanduíche... (PAUSA) Um café... (PAUSA) Um chope... (PAUSA) Outro chope...

 

(A PERCUSSÃO PARA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A deusa volta. Ele paga a conta correndo. (A ATRIZ PEGA OUTRO BONECO NA CAIXA E VAI PARA FRENTE DO PALCO) Ela esta acompanhada de um homem. Será que estão juntos?

ATOR 1: (PERSONAGEM) Impossível. O sujeito é muito afetado.

 

(A ATRIZ CAMINHA COM OS BONECOS E O ATOR 1 ANDA ATRÁS DELA)

 

ATOR 2: (NARRAÇÃO OBSERVANDO) Andam mais dois quarteirões. Quando passam todos viram. Dizem coisas. Reverências à deusa. Ela nem liga.  O homem ri e fala sem parar. E ela calada, ao lado. Chegam numa rua cheia de sobrados. Na esquina tem uma espécie de botequim com mesinhas de armar. O sobrado ao lado parece ser uma boate com luzes piscando na porta. A deusa e o homem vão direto para esse sobrado e Salvador vai atrás.

 

(A ATRIZ VAI EM DIREÇÃO A MESA E PASSA POR ELA. ATOR 1 A SEGUE E PARA EM FRENTE A MESA. ATOR 2 SENTA NA CADEIRA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Uma escada enorme leva ao segundo andar onde uma figura gorda, sentada atrás de uma mesa espera o dinheiro da entrada.

ATOR 2: (OLHA PARA ATOR 1 E COBRA) Salvador paga e entra. É um ambiente escuro, apesar das luzes piscando. (AS LUZES PISCAM) A música esta alta, mas não demais. Algumas pessoas dançam, outras bebem encostadas nas paredes e sentadas nas mesas. Em sua maioria homens. A deusa está no meio da pista cercada por vários deles.

 

(ATRIZ VAI PARA O MEIO DO PALCO COM OS BONECOS – FAZ MÍMICA COMO SE CONVERSASSEM)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Salvador pensa em ir até lá. Conversar ou agarrar sua deusa. Sei lá. Vai andando lentamente. Seu corpo todo treme. Ele sente um estranho perfume de rosas. Quando chega bem perto uma mulher passa na sua frente e fala com a deusa. É uma mulher com bochechas muito saltadas. Ela diz:

ATOR 2: (FAZENDO A PERSONAGEM) Arrasou, Odete?

 

(AS LUZES PARAM DE PISCAR)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A deusa olha para ela de cima a baixo e vira a cabeça para o outro lado num jogo rápido do pescoço. Dá uma gargalhada. Odete. A deusa tem nome.

 

(OS TRÊS COMEÇAM A MURMURAR: ODETE. DE VEZ EM QUANDO UM FALA ALTO. A ATRIZ GUARDA OS BONECOS NA CAIXA. OS TRÊS OLHAM PARA A PLATÉIA COMO SE PROCURASSEM ODETE)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Odete.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A partir daquele momento...

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Odete.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Todas as mulheres...

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Odete.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Todo mundo se chama Odete!

 

(MÚSICA EM OFF COMEÇA – O RECITATIVO É DITO COM PAIXÃO E FORÇA)

 

RECITATIVO: ODETE

 

ATOR 1:    Vai sair na maior manchete!

                  Se espalhar como confete.

                  Como um corte feito a gilete.

                  Homem, mulher ou grumete!

TODOS:   Todo mundo a partir de hoje

                 Todo mundo vai ser Odete.

                 Todo mundo a partir de hoje

                 Todo mundo vai ser Odete.

ATRIZ:    Faz de mim sua omelete.

                Me mastiga como chiclete.

                Abre meu peito a canivete.

                Se espalha como confete!

TODOS:   Todo mundo a partir de hoje

                 Todo mundo vai ser Odete.

                 Todo mundo a partir de hoje

                 Todo mundo vai ser Odete.

                                  

ATOR 2:    Eu sou sua marionete!

                  Ela é minha doença. Minha diabete.

                  Sou um moleque... Um pivete!

                  O meu coração se derrete!

TODOS:    Todo mundo a partir de hoje

                  Todo mundo vai ser Odete.

                  Todo mundo a partir de hoje

                  Todo mundo vai ser Odete.

ATOR 1:   Me devora como um croquete!

                  Me compra numa lanchonete!

                  Nem Paula, nem Luís, nem Ivete.

                  Eu quero que um rei decrete:

TODOS:    Todo mundo a partir de hoje

                   Todo mundo vai ser Odete!

                   Todo mundo a partir de hoje

                   Todo mundo só pode ser Odete!

(A MÚSICA PARA - FOCOS DE LUZ ILUMINAM OS ATORES – OS TRÊS ATORES SÃO SALVADOR AGORA – ELES OLHAM PARA A PLATÉIA COMO SE OLHASSEM PARA ODETE)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A deusa Odete.

ATOR 1: (PERSONAGEM) Eu fico parado. Odete olha pra mim como se tentasse entender. ATRIZ: (PERSONAGEM) Fico gelado e vou andando para um canto do salão...

ATOR 2: (PERSONAGEM) Como menino arteiro que é pego de surpresa.

(A LUZ MUDA)

CONVERSA DE BAR I

(OS ATORES FALAM DE FORMA ALEGRE)

ATOR 1: Mas, não é?

ATRIZ: Claro que é!

ATOR 2: (APONTA PARA A MESA) Aqui tá bom?

ATOR 1 E ATRIZ: Tá ótimo!

(ELES SENTAM NAS CADEIRAS E FALAM DE FORMA ANIMADA COMO SE JOGASSEM CONVERSA FORA NUMA MESA DE BAR)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Nem te conto, mas o Salvador vai a boate todos os dias para observar Odete. Ele não tem coragem de se aproximar. Tu acredita nisso? Somente fica lá, parado, olhando fixamente para ela.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Mas eu sei que a Odete, que sempre está cercada de amigos, percebe esse olhar e ela se diverte. Pelamordedeus!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Quando fecha a boate ela vai embora cercada daqueles amigos dela. E Salvador volta para casa sonhando com a Odete.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Já conhece todas as suas roupas, seus brincos, seus colares, seu jeito. Cada vez que ela aparece com um vestido novo é uma festa para ele. Um novo motivo para sonhar.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Que absurdo!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) E nessa... o tempo passa...

(OS TRÊS SE LEVANTAM - O RECITATIVO DEVE SER ACOMPANHADO DE MÚSICA)

RECITATIVO: TEMPO I

ATOR 1:  O tempo que passa

                 É o cão encarnado.

                 Um flagelado.

                 O mal abençoado.

ATRIZ:    O tempo que passa

                 É um eterno abusado.

                 Ri de tudo. É indelicado.

                 Um famigerado.

ATOR 2:   O tempo que passa

                  É um alienado.

                  É um sabor inusitado.

                 Um velho mimado.

JUNTOS:   O tempo que passa.

                   O tempo que passa.

                   O tempo que passa.

                   O tempo que passa.

(O RECITATIVO PARA - QUEBRA DE CLIMA – A ATRIZ PEGA O BONECO DE MADEIRA ENQUANTO FALA E SE DIRIGE PARA O CENTRO DO PALCO)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Um dia Odete está só. Fuma e toma cerveja em copo de geleia.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Segura o copo de geleia como se pegasse uma taça de cristal.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela está só.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Nenhum amigo.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela está só.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) E o melhor detalhe: está com o vestido preto. O vestido com as fendas.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela está só.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela percebe o olhar de Salvador, mas não se aproxima.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) E ele fica distante como sempre. Quando termina a boate, ele arrasado desce as escadas.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela estava só.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Podia ter falado com ela...

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela estava só.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Mas a perdera de vista.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela estava só.

 

(ATRIZ GUARDA O BONECO. OS TRÊS ATORES VÃO PARA FRENTE DO PALCO)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Quando chega à rua, Salvador vê Odete parada.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ao vê-lo ela estende a mão em sua direção...

(OS TRÊS OLHAM PARA A PLATÉIA E ESTENDEM AS MÃOS – ELES SÃO SALVADOR E ODETE AO MESMO TEMPO)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela pergunta com uma voz estranha qual é o nome dele.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Tremendo ele diz.

JUNTOS: (PERSONAGEM) Salvador...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela ri e continua:

JUNTOS: (PERSONAGEM) Pois, você vai ser o meu Salvador. Dá para você me levar até o ponto de ônibus?

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Sem esperar resposta ela pega na mão dele e sai puxando por ele.

 

(OS ATORES DÃO AS MÃOS E CAMINHAM DE MÃOS DADAS PELO PALCO)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Salvador não acredita que aquilo esta acontecendo. Pensa que poderia morrer segurando aquela mão.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Não consegue falar; não consegue respirar.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) E num instante ele vê pétalas de flores voando no ar... Mas só ele vê...

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Parecem borboletas...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ao chegar ao ponto de ônibus, ele tem vontade de voltar e ficar a vida inteira fazendo aquele caminho da boate para o ponto e do ponto para a boate...

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Da boate para o ponto e do ponto para a boate...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Da boate para o ponto e do ponto para a boate...

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Da boate para o ponto e do ponto para a boate...

ATOR 1: (NARRAÇÃO) O ônibus chega e a deusa se despede com pequeno aceno de mão.

 

(OS TRÊS ACENAM – MUDANÇA DE CLIMA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Tudo volta ao normal.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Salvador sempre à distância a observar Odete.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) E ela sempre cercada de amigos.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Mas, a partir desse dia, nas raras vezes em que Odete está só...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Muito raras!

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O ritual acontece. E ele fica feliz com isso.

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Salvador agora é um homem feliz!

 

(OS ATORES OLHAM PARA A PLATÉIA COM UM SORRISO PATÉTICO NOS LÁBIOS – EM OFF A MÚSICA É CANTADA DE FORMA BEM ALEGRE POR UM CORAL)

 

MÚSICA: O QUE É A FELICIDADE?

 

EM OFF:  O que é a felicidade?

                  Quem pode saber?

                  Quem vai procurar?

                  O que é a felicidade?

                        É uma grande ingenuidade!

                        É saber da inutilidade!

                        É viver na mediocridade!

                        É mentira que é verdade!

                        É conhecer sua frivolidade!

                        Não se incomodar com a futilidade!

                        É a delícia da ociosidade!

                        É a irresponsabilidade!

                       

                    O que é a felicidade?

                    Quem pode saber

                    Quando vai encontrar?

                    O que é a felicidade?

(A MÚSICA TERMINA – ATORES SE POSICIONAM)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Segundo relato!

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Mamãe!

 

(EM OFF TOCA UMA MÚSICA SUAVE – COMO UMA CAIXINHA DE MÚSICA – O ATOR 2 PEGA UMA COLHER DE PAU, UM PACOTE DE PRESENTE E SE POSICIONA – ELE SEGURA A COLHER DE PAU COMO SE SEGURASSE UMA PASTA DE EXECUTIVO - OS ATORES NARRAM E REALIZAM AS AÇÕES)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) É sempre a mesma coisa. Lá está ele parado na porta com uma pasta de executivo numa mão e um embrulho de presente na outra. Ela já conhece o ritual.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ele entra.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela fecha a porta e dá início ao jogo.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela fala com ele como se estivesse falando com uma criança. Com uma voz tola e tatibitate:

ATRIZ: (PERSONAGEM – FALA PARA ATOR 2) Já viu o presente que Mamãe comprou para o neném?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Eu quero ver, Mamãe! Eu quero ver!

 

(A ATRIZ FAZ A NARRAÇÃO E O ATOR FAZ O QUE É DITO)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ele coloca a pasta no chão e mexe no pacote fingindo curiosidade. Ela pensa no que pode ser dessa vez. Ele mostra o pacote. Mostra e, como sempre, faz cara emburrada:

ATOR 2: (PERSONAGEM) Não gostei, Mamãe.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ele tenta destruir o presente. Como não consegue joga no chão.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela fala, fingindo zanga:

ATRIZ: (PERSONAGEM) Menino malvado!  Pode se preparar para apanhar.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela senta na cama.

 

(ATRIZ SENTA NA CADEIRA - A MUSICA DE FUNDO PARA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ele pega na pasta uma colher de pau. (O ATOR FAZ O MOVIMENTO COM MÍMICA) Entrega a colher para ela e deita no seu colo de bunda para cima.

 

(O ATOR 2 DEITA DE BRUÇOS NA FRENTE DA ATRIZ)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela bate nele com a colher de pau.

ATRIZ: (FICA COM A MÃO ERGUIDA COM A COLHER ENQUANTO FALA) Menino malvado! Menino malvado! Menino malvado! Menino malvado!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela repete, freneticamente, até ele gozar.

ATRIZ: (PERSONAGEM BATENDO NO BONECO) Menino malvado! Menino malvado! Menino malvado! Menino malvado!

 

(ATOR 2 GRITA)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Quando ele goza, ela para. Ele se levanta e se limpa.

 

(O ATOR 2 LEVANTA E PEGA A COLHER DE PAU)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ele pega a colher de pau, paga e sai sem dizer uma palavra.

 

(A ATRIZ OBSERVA EM SILÊNCIO O ATOR 2 GUARDAR O PRESENTE – A COLHER DE PAU ELE DEIXA EM CIMA DA MESA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela já está acostumada.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Toda segunda-feira o ritual acontece.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Toda segunda.

ATOR 2: (VOLTANDO - NARRAÇÃO) Pode ser feriado, dia santo ou do diabo. Não importa.

 

(OS ATORES NARRAM E INTERPRETAM A CENA USANDO AS CADEIRAS COMO CARRO)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela se lembra da primeira vez: parada na rua esperando os clientes.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) De repente aquele carro na sua frente.

ATOR 2: (NARRAÇÃO/PERSONAGEM) Ele chama.

ATRIZ: (NARRAÇÃO/PERSONAGEM) Ela vai e entra no carro.

ATOR 2: (NARRAÇÃO/PERSONAGEM) Ele diz que não quer transar e lhe propõe o ritual.

ATRIZ: (NARRAÇÃO/PERSONAGEM) Ela acha graça, mas aceita. Ele vai pagar bem. Isso é o que importa.

 

(MUDANÇA DE CLIMA)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Foi a única vez que conversaram direito fora das personagens.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Às primeiras vezes, depois que ele saia, ela caia na gargalhada.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Depois um sentimento estranho começou a tomar conta dela.

 

(ATRIZ SE LEVANTA E VAI PARA A FRENTE DO PALCO – OS ATORES A SEGUEM)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Não é idiota. Sabe que não é mulher. Apesar dos seios, das formas, do cabelo, ela não é mulher. Queria ser, mas não é.  Tem uma amiga que se operou, mas ela achava que isso é uma ilusão. Nunca ia deixar de ser o que é. Gostaria de ser mãe, mas também não podia. Mas de certa forma ela é mãe. Toda segunda-feira ela é mãe.

 

(MÚSICA EM OFF)

 

RECITATIVO: O AMOR I

 

ATRIZ:  O amor é falso. É conivente.

              Conspira, sussurra e mente.

              É um santo errante e delinquente.

              É uma prostituta louca e decente.

              O amor é um lugar diferente,

              Belo, luminoso e deprimente.

              É trazer cura ao doente.

              É um perfume envolvente.

(A MÚSICA PARA - A LUZ MUDA)

CONVERSA DE BAR II

 

(OS ATORES FALAM DE FORMA IRRITADA)

 

ATOR 1: Mas, não é?

ATRIZ: Claro que é!

ATOR 2: (APONTA PARA A MESA) Aqui tá bom?

ATOR 1 E ATRIZ: Tá ótimo!

 

(ELES SENTAM NAS CADEIRAS E FALAM DE FORMA IRRITADA COMO SE JOGASSEM CONVERSA FORA NUMA MESA DE BAR)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) O nome dela é Dolores. Foi o nome que ela escolheu.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Mas as amigas a chamam Mamãe, por causa da história do cliente e ela aceitou o apelido. Diz que é uma forma de ser um pouco mais mãe.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Eu sei que ela já pensou em parar. Acabar com essa brincadeira estranha. Deixar de ser motivo de zombaria das outras. Não que ela se incomode com a opinião dos outros. Mas tem algo... Errado. Errado? Não sei se é essa palavra. Mas tem alguma coisa que a incomoda. Como um presságio. Um mau presságio.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Claro que o pagamento certo toda segunda-feira é um incentivo para manter a brincadeira. Já não é mais moça. Sabe disso. Muitas vezes, em tempos mais difíceis, esse é o único dinheiro que ela consegue.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Por isso é importante manter aquela brinquedo. Ela tem que acreditar que é só por isso que precisava manter o ritual.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Um ritual?

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Sim. Um ritual. O ritual de ser mãe.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela vive dessa forma. É assim que sabe viver. E como sempre o tempo passa...

 

(OS TRÊS SE LEVANTAM. O RECITATIVO DEVE SER ACOMPANHADO DE MÚSICA)

 

RECITATIVO: O TEMPO II

 

ATOR 1:  O tempo que passa...

                 É alegre e carrancudo.

                 É o diabo chifrudo.

                Uma batalha sem escudo.

                       

ATRIZ:    O tempo que passa...

                 É um anjo desnudo

                 Com o lábio quente e carnudo.

                 É um ignorante que sabe tudo.

ATOR 1:  O tempo que passa...

                É um gato peludo,

                Sujo e parrudo.

                É um grito rouco e agudo

JUNTOS:  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

(O RECITATIVO PARA – OS ATORES SE POSICIONAM NA FRENTE DO PALCO)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Um dia, um domingo, duas amigas decidiram fazer a vida na zona sul e a convidaram.  Ela mora na parte velha da cidade e não gosta de ir à zona sul. Mas foi.  Ficaram numa esquina de uma rua movimentada.  De repente uma das amigas, que é conhecida por ser a mais nova, falou zombeteira apontando para um casal:

ATOR 1: (PERSONAGEM APONTANDO PARA A PLATÉIA) Aquele ali não é teu filho, Mamãe?

ATRIZ: (NARRAÇÃO) É ele mesmo. Acompanhava uma mulher mais velha. Os dois saem de um restaurante. A mais nova continua:

ATOR 1: (PERSONAGEM) Aquela velha deve ser a mulher dele.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A outra amiga, que estranhamente só usa vestido longo, esclarece numa gargalhada:

ATOR 2: (PERSONAGEM - GARGALHANDO) Que nada!  A velha deve ser a mãe dele.  A mãe verdadeira!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Mamãe sente que a outra está certa. Um arrepio forte diz que a outra está certa.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Um sentimento estranho toma conta dela.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela não sabe o que foi, mas parece que alguma coisa quebrou dentro dela. Ela não quer estar ali.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) E Mamãe vai para casa.

 

(EM OFF COMEÇA A TOCAR UMA MÚSICA SUAVE – COMO UMA CAIXINHA DE MÚSICA – A ATRIZ PEGA A COLHER DE PAU – O ATOR 2 PEGA NOVAMENTE O EMBRULHO DE PRESENTE)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO/PERSONAGEM) Ela abre um armário onde estão todos os brinquedos do filho. Alguns quebrados, outros ainda inteiros. Pétalas de flores voam ao seu redor. Parecem borboletas. Ela olha para aquele armário como uma mãe que vela o quarto do filho.

ATOR 2: (VOLTANDO - NARRAÇÃO) No dia seguinte, uma segunda-feira, quando abre a porta lá está ele parado com o embrulho na mão. Ele entra e Mamãe vai dizendo com uma voz um tanto sombria:

ATRIZ: (PERSONAGEM) Hoje eu tenho uma surpresa diferente para o neném.

(OS TRÊS OLHAM PARA A PLATÉIA - A ATRIZ MOSTRA A COLHER DE PAU – SEGURA A COLHER COMO SE SEGURASSE UMA FACA)

 

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela puxa um facão de cozinha e lhe dá doze facadas.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ao terminar fica olhando para o filho caído no chão. Não tem mais nenhuma reação.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela pode ser traída como mulher...

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Como homem!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Mas como mãe nunca!

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Nunca!

 

(O SOM DE CAIXINHA DE MÚSICA SE FUNDE COM A PRÓXIMA MÚSICA)

 

RECITATIVO: MAMÃE

ATOR 1:   Quero ver nascer de novo.

                 Quero me aproximar...

                 Bater em você! Agarrar!

                 Quero morder e dilacerar!

                 Lamber e lambuzar!

                 Quero o seu ar para respirar!

                 Ver nascer para matar!

ATOR 2:  Quero ver morrer de novo.

                Quero me aproximar...

                Quero me amarrar e soltar!

                Quero perder! Para procurar!

                Quero cortar! Ver sangrar!

                Quero usar e gastar!

                Quero não dormir para sonhar!

ATRIZ:    Quero ver ressuscitar de novo.

                Quero me aproximar...

                A sua cruz quero arrancar!

               Quero ver queimar!

               As suas cinzas vou espalhar!

               Por sua imagem num altar!

               Fazer novena e chorar!

(A MÚSICA PARA – O ATOR 2 GUARDA A COLHER DE PAU E COLOCA O EMBRULHO DE PRESENTE EM CIMA DA MESA – OS ATORES SE POSICIONAM NO CENTRO DA CENA)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Terceiro relato!

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Banana!

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Seu nome é Dulce. E é uma mulher difícil. Muito difícil.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) O marido tenta agradá-la, mas não tem jeito. O infeliz trabalha numa tabacaria e ganha pouco. Depois de muitos anos no trabalho conseguiu chegar à gerência do estabelecimento.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) O que para Dulce não quer dizer absolutamente nada. Inútil é o mais leve adjetivo que ela usa para se referir a ele.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O casal mora num apartamento que a avó deixou para ele na parte velha da cidade. E isso é o motivo das maiores reclamações de Dulce.

ATOR 1: (PERSONAGEM ) Como eu posso viver aqui cercada de pervertidos. Uma cambada de bandidos. O vizinho de porta, o maior de todos os pervertidos, fazia prostituição. Fazia. Não faz mais porque matou um cliente com doze facadas. Está agora na cadeia. Como eu posso morar aqui?

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Dulce fica desesperada com essa situação e atormenta o marido.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Apesar disso ele a ama. Talvez, até por isso mesmo.

(MÚSICA EM OFF)

RECITATIVO: O AMOR II

ATOR 2:  O amor é uma alma penada

                Que vaga sem rumo, descontrolada.

                É sentir a dor de uma paulada.

                É levar na cara a cusparada.

                O amor é uma casa arrumada

                Que precisa ser bagunçada.

                É uma coisa toda embolada.

                É uma alegria desvairada.

(A MÚSICA PARA – OS ATORES SE POSICIONAM)

ATRIZ: (NARRAÇÃO – ELA PEGA O EMBRULHO DE PRESENTE EM CIMA DA MESA E OFERECE PARA ATOR 1) O marido tenta dobrar a mulher comprando presentes, ao que Dulce responde sempre revoltada.

ATOR 1: (PERSONAGEM) É um absurdo gastar dinheiro com bobagens, quando o mais lógico é economizar para sair daqui.

ATOR 2: (NARRAÇÃO – PEGA O EMBRULHO DE PRESENTE E OFERECE PARA ATOR 1) Ele compra flores e a mulher pergunta:

ATOR 1: (PERSONAGEM) Você foi ao cemitério para roubar essas coisas tão feias e murchas.

ATRIZ: (NARRAÇÃO – PEGA O EMBRULHO DE PRESENTE E OFERECE PARA ATOR 1) Ele a convida para ir ao cinema e Dulce o chama de egoísta:

ATOR 1: (PERSONAGEM) Você sabe que eu não posso perder a novela. A única alegria que eu tenho na vida.

ATOR 2: (NARRAÇÃO – PEGA O EMBRULHO DE PRESENTE E OFERECE PARA ATOR 1) Ele compra bombons e ela reclama:

ATOR 1: (PERSONAGEM) Mas você sabe que eu estou de dieta. O quê você quer é me ver gorda e cheia de varizes.

(ATOR 2 GUARDA O EMBRULHO DE PRESENTE)

CONVERSA DE BAR III

(OS ATORES FALAM DE FORMA DESCONTRAÍDA)

ATOR 1: Mas, não é?

ATRIZ: Claro que é!

ATOR 2: (APONTA PARA A MESA) Aqui tá bom?

ATOR 1 E ATRIZ: Tá ótimo!

(ELES SENTAM NAS CADEIRAS E FALAM DE FORMA DESCONTRAÍDA COMO SE JOGASSEM CONVERSA FORA NUMA MESA DE BAR)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Eu sei que os vizinhos reparam. Sabem bem quem manda naquela casa. E ficam com pena do pobre homem. E a Dulce xinga!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Eu já vi! A doida xinga! Maior boca de esgoto! Sai sapecando palavrão! É vai tomar no cú! Buceta! Porra!

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela nunca foi mulher de levar desaforo para casa. Algumas vezes caiu na porrada com vizinhos mais arrogantes. Mas uma coisa é certa: apesar de difícil, Dulce tenta ajudar na casa.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela fala assim: (IMITANDO) Já que o "inútil" não melhora a situação, eu tenho que fazer alguma coisa! (NORMAL) E faz biscates para melhorar o orçamento da casa. É. Biscate mesmo!

ATOR 2: (NARRAÇÃO) E, é claro, isso é motivo de maiores humilhações para o pobre homem.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Certa vez uma amiga...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Que não é da parte velha da cidade, pois ela não tem amigos ali.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Essa amiga chamou para um trabalho fácil e que renderia um bom dinheiro.  Ela se interessou logo e foi com a amiga ver do que se tratava. E o trabalho é realmente fácil: na inauguração de um supermercado ela tem que usar uma fantasia e animar a festa.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Dulce aceitou, apesar de não ser muito animada, e foi com amiga experimentar a tal fantasia. Ao chegar ao lugar marcado, uma moça entrega pra ela uma fantasia de banana.

ATRIZ: Sua amiga será um tomate.  Ao receber a fantasia Dulce sente um arrepio forte. Tenta trocar a fantasia:

(MUDANÇA DE CLIMA – OS ATORES LEVANTAM E FAZEM A CENA)

ATOR 1: (PERSONAGEM PARA O ATOR 2) Será que não dá para trocar? Não tem outra?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Dá não! Só tem essa! É banana ou nada!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Dulce ainda tenta trocar a fantasia com a amiga, mas ela diz que prefere ser um tomate.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Dulce quase desiste, mas o pagamento é bom e ela aceita.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela vai para casa esperar o dia seguinte...

JUNTOS: (NARRAÇÃO) E o tempo passa...

(O RECITATIVO DEVE SER ACOMPANHADO DE MÚSICA)

RECITATIVO: TEMPO III

ATOR 2:  O tempo que passa

                Está sempre atrasado.

                É um anjo malvado.

                Um andarilho aleijado.

ATRIZ:   O tempo que passa

                Tem mau-olhado.

                É um príncipe encantado

               Que foi enforcado.

ATOR 1:  O tempo que passa

                Passa arrastado.

                É um ingênuo depravado

                Que vive encabulado

JUNTOS:  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

(O RECITATIVO PARA – OS ATORES SE POSICIONAM)

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Naquela noite Dulce não consegue dormir. Só pensa no dia seguinte, o dia da inauguração do supermercado, quando ela seria uma banana. Uma mulher banana.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Quando o marido acorda Dulce já está pronta para sair. Ela explica para ele o que vai acontecer e o marido nada fala. Dulce sai sentindo arrepios fortes.  Nem percebe as pétalas de flores que voam a sua volta. Ela vai ser a banana. A mulher banana.

(O ATOR 2 PEGA UMA CAIXA DE PAPELÃO COMPRIDA QUE VAI REPRESENTAR A FANTASIA – A CAIXA É COLOCADA NO CENTRO DO PALCO – O ATOR 1 VESTE A CAIXA COMO SE VESTISSE A “FANTASIA”)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ao chegar ao supermercado se veste em silêncio. A amiga já é um tomate. Outras frutas e legumes já estão por ali. E vão todos animar a festa.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) O povo, ao ver os fantasiados, fica entusiasmado. Mas grita feliz e aponta para uma em especial: é a banana!

ATOR 2: (PERSONAGEM) A banana!

ATRIZ: (PERSONAGEM) A banana!

ATOR 2: (PERSONAGEM) A banana!

ATRIZ: (PERSONAGEM) A banana!

JUNTOS: (PERSONAGEM) A banana!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) E Dulce dentro daquela roupa sente arrepios fortes. Ela é a banana.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Quando termina a festa, Dulce se troca depressa.

(O ATOR 2 AJUDA O ATOR 1 A “TIRAR A FANTASIA” E COLOCA A CAIXA NO CHÃO)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela vai correndo para casa e nem pega seu pagamento. Ao chegar a casa o marido a encontra desesperada. Ela suplica:

ATOR 1: (COMO A PERSONAGEM) Não tem banana em casa!  Vai comprar banana!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ele vai.  Ao voltar para casa entrega um cacho de bananas para a mulher.

ATOR 2: (ENTREGA UM BOLO DE PAPEL QUE VAI REPRESENTAR AS BANANAS – O ATOR 1 FAZ A CENA) Dulce abraça o cacho sobre o peito e chora. As bananas amassam misturadas as suas lágrimas.

 

(O ATOR 1 LARGA O BOLO DE PAPEL – OS TRÊS OLHAM PARA A PLATÉIA)

 

JUNTOS: (NARRAÇÃO) A partir desse dia tudo passa a ser diferente naquela casa.

 

(A MÚSICA COMEÇA EM OFF)

 

RECITATIVO: NÓS DOIS

 

ATOR 2:   Nós dois somos sombra sem sol.

                 Somos um desenho sem traço.

                 Uma brisa que não refresca.

                 Como um adeus sem abraço.

ATRIZ:    Nós dois somos mel sem açúcar.

                Somos conta que nunca foi paga.

                Como uma flor sem perfume.

                Uma luz que sempre se apaga.

                                  

ATOR 1:  Nós dois somos despedida.

               O fim da caminhada.

               Uma faca sem corte.

               O fim da estrada.

(A MÚSICA PARA – OS ATORES SE POSICIONAM)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Quarto relato!

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Russo!

(A ATRIZ ARRUMA COM O PAPELÃO A BANCA DE DOCES)

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ele tem uma banca de doces. É conhecido como Russo. Apesar de não ser louro. Todos o chamam assim, talvez pelos olhos azuis. Impressionantes de tão claros. Olhos bondosos, quase piedosos.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Sua banca fica na parte velha da cidade. Mora num apartamento pequeno que fica por ali. É querido e respeitado no lugar. Talvez pela forma que trata as crianças.  Principalmente as mais pobres. Distribui balas e arruma emprego para todas. Ele é o Russo. Ele é amado.

(A ATRIZ PEGA UM BONECO PEQUENO NA CAIXA DE MADEIRA E COLOCA EM CIMA DA BANCA. DEPOIS SE AFASTA DA BANCA E OLHA PARA ELA COMO SE ESTIVESSE VENDO A MOVIMENTAÇÃO DO RUSSO)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Na sua banca sempre tem um menino trabalhando. Meninos de rua que ele gosta de ajudar. Mas esses meninos não ficam muito tempo com ele. De uma hora para outra somem.  (ELA TIRA O BONECO) Isso o entristece muito. Os amigos dizem para ele não ligar. É assim mesmo.

JUNTOS: Essa gente é muito ingrata.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) E ele vai seguindo sua vida. O último menino que o ajudara já tinha sumido há duas semanas.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Os amigos o aconselham a não ajudar mais esses meninos. Mas ele, que já não é mais moço, diz que precisa realmente dos meninos. Eles fazem o trabalho mais pesado e muitas vezes tomam conta da banca sozinhos. Ele só fica triste porque os meninos vão embora sem dar satisfação. E todo mundo fica triste também.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Afinal, ele é o Russo. O nosso amado!

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Essa gente é muito ingrata!

(DURANTE A FALA DO ATOR 2 A ATRIZ DESMONTA A BANCA. - A LUZ MUDA)

CONVERSA DE BAR IV

(OS ATORES FALAM DE FORMA DESCONTRAÍDA)

ATOR 1: Mas, não é?

ATRIZ: Claro que é!

ATOR 2: (APONTA PARA A MESA) Aqui tá bom?

ATOR 1 E ATRIZ: Tá ótimo!

(ELES SENTAM NAS CADEIRAS E FALAM DE FORMA DESCONTRAÍDA COMO SE JOGASSEM CONVERSA FORA NUMA MESA DE BAR)

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Uma noite ele está num bar. O bar da Gorda. Todo mundo sabe que a Gorda tem um bar e uma boate num sobrado. Mas o Russo não frequenta a boate. Ele não tem nada contra, né?

ATRIZ: (PERSONAGEM) Não tenho mesmo! Só que não sou mais moço e me sinto estranho num lugar muito barulhento onde as pessoas ficam se sacudindo e pulando. No bar não tem isso. As pessoas ficam sentadas, ou até em pé, mas ninguém se sacode ou pula. Apenas jogam conversa fora... Contam suas histórias...

(O ATOR 1 PEGA UM BONECO QUE VAI REPRESENTAR O MENINO E O COLOCA EM CIMA DA MESA)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) E ele fica ai... Tomando a sua cerveja de todas as noites. Mas nessa noite, aparece um menino. É louro, branco e magro. Ele sim pode ser chamado de Russo. O nosso Russo não conhece aquele menino. Parece ser novo nas redondezas.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O Russo, o amado Russo, chama o menino e começam a conversar. A galera já percebe e já comenta: Vai ser mais um para entristecer o nosso amigo.

ATRIZ: Mas ele nem se incomoda. Os dois conversam muito e acertam. O menino vai trabalhar para o Russo.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ele é assim. É o Russo.

JUNTOS: (NARRAÇÃO) O nosso amado Russo.

(OS ATORES LEVANTAM - A ATRIZ MONTA A BANCA DE DOCES ENQUANTO FALA – O ATOR 2 AJUDA COMO O OUTRO PERSONAGEM)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) No dia seguinte começa o trabalho. O menino tem um nome:

ATOR 2: (PERSONAGEM) Walmir.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Mas o Russo só o chama de Louro. E o apelido pega fácil. No início o Louro se atrapalha um pouco com o serviço, (ATRIZ ABRAÇA O ATOR 2) mas logo aprende e parece que será um dos melhores ajudantes do Russo.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O Louro dá a impressão que não vai ser mais um ingrato. Está lá firme. (ELES SAEM DO ABRAÇO) Os amigos comentam que o Russo finalmente tinha encontrado um bom parceiro. Os dois parecem satisfeitos.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) E o tempo passa...

 

(O RECITATIVO DEVE SER ACOMPANHADO DE MÚSICA)

 

RECITATIVO: O TEMPO IV

 

ATOR 2:  O tempo que passa...

                 É um velho sujo e barbudo

                 Com um sorriso de veludo.

                 Parece um pássaro bicudo.

ATOR 1:  O tempo que passa...

                 É um tapete felpudo.

                 Um sábio sem estudo.

                 É um santo carrancudo.

                       

ATRIZ:    O tempo que passa...

                 É teimoso. É cabeçudo.

                 O anjo mais sisudo.

                 Um diabo galhudo.

JUNTOS: O tempo que passa...

                 O tempo que passa...

                 O tempo que passa...

                 O tempo que passa...

(O RECITATIVO PARA – OS ATORES SE POSICIONAM COMO SE ASSISTISSEM A CENA)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) O Louro continua firme e forte. Não é um ingrato.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Quando termina o trabalho, vai para casa todos os dias.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A sua casa não é bem uma casa. Ele mora por ali, pela rua, aliás, como todos que o Russo ajudava. Todos dormiam entre papelões nas calçadas.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Mas uma noite foi diferente...

(ATOR 2 PEGA O BONECO DO MENINO E A ATRIZ COMEÇA A DESMONTAR A BARRACA. O ATOR 2 COLÇOCA O BONECO EM CIMA DA MESA)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) A noite já vai alta. Já não tem quase ninguém na rua, o Louro vai se arrumando para fechar a banca e ir para casa quando o Russo fica com pena. E fala para o menino:

ATRIZ: (PERSONAGEM) É um absurdo você ficar pela rua quando eu tenho um apartamento que dá perfeitamente para nós dois morarmos. Além do mais eu já estou cansado de viver sozinho naquele apartamento. Está combinado, você vai morar comigo.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O Louro fica satisfeito. Quer avisar os amigos da rua que tinha conseguido um canto!

ATOR 1: (NARRAÇÃO)  Mas o Russo acha melhor ele avisar só no dia seguinte. Já está tarde e ele está cansado.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O Louro aceita e os dois vão para o apartamento.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) O prédio é antigo e parece deserto. Ao chegar ao pequeno apartamento o Louro percebe que não é tão pequeno assim.  Pelo menos para ele. É um apartamento de dois quartos, com uma sala muito boa. Um dos quartos será só dele.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) O Russo mostra onde ele pode ficar e o menino vai tomar um banho.  O melhor banho da sua vida.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ao terminar o banho, ele se enxuga e repara em duas peças de roupa que estão junto as suas coisas: uma bermuda e uma camiseta. Ele veste e vai procurar o Russo. Encontra o benfeitor na cozinha preparando o jantar.

ATRIZ: (NARRAÇÃO – FAZ A MIMICA COMO SE DESSE UM COPO PARA ATOR 2) O Russo dá um copo de suco para o menino beber.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O Louro toma de uma golada aquele delicioso suco enquanto ouve o benfeitor falar. É uma maravilha estar ali. O menino olha para o teto e vê pétalas de flores voando.

(A MÚSICA TOCA EM OFF)

RECITATIVO: O AMOR III

ATRIZ:  O amor é uma alma aleijada

              Que pede esmolas de madrugada.

              É a azeitona da empada.

              É uma lambida, depois uma dentada.

              O amor é um imenso continente.

              É um menino alegre e desobediente.

              É um olhar de lado, meio displicente.

             Um viciado independente.

(A MÚSICA EMENDA COM UMA MÚSICA DE FUNDO – COMO UMA CAIXINHA DE MÚSICA)

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O Louro começa a sentir uma sensação estranha. O Russo continua a falar, mas suas palavras estão distantes e o menino fica um pouco tonto. Talvez, seja sono.  Mas não importa, tudo é tão bom.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) O Russo continua falando e o Louro já não entende mais nada. Os olhos pesam e um sono forte toma conta dele.

(A ATRIZ PEGA O BONECO E VAI PARA FRENTE DO PALCO – OS ATORES A SEGUEM)

ATOR 2: (NARRAÇÃO ) Num abrir e fechar de olhos vê o benfeitor com uma faca de cozinha na sua frente. Sente a faca entrando em sua barriga, mas não consegue gritar. É como se estivesse com uma barreira na garganta.

ATRIZ: (NARRAÇÃO ) O Russo esfaqueia o Louro até o menino não sentir mais nada. Ele limpa a faca e corta um pedaço do cabelo louro. Vai até o quarto de empregada e abre um pequeno baú com vários pedaços de cabelo dentro. Cabelos de todas as cores. Tudo misturado. Joga o pedaço louro dentro e fecha o baú. Volta para a cozinha e com uma machadinha esquarteja o Louro. Coloca todos os pedaços num saco de plástico preto. ( TIRA UM SACO DO BOLSO DA CALÇA, COLOCA O BONECO DENTRO E TIRA O BONECO DE CENA)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Russo lava a cozinha e vai enterrar o lixo num terreno baldio perto de sua casa.

 

(A MÚSICA PARA – MUDANÇA DE CLIMA – A ATRIZ VOLTA E MONTA A BARRACA)

 

ATOR 2: (NARRAÇÃO) No dia seguinte, bem cedo, o Russo vai para o lugar de sempre armar a sua banca de balas.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Espera o Louro, mas ele não aparece.  Os amigos comentam a tristeza do Russo.

ATOR 1: (NARRAÇÃO ) Coitado.

ATOR 2: (NARRAÇÃO ) Tão bom.

ATRIZ: (NARRAÇÃO ) Tão amado.

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Essa gente é muito ingrata.

 

(MUDANÇA DE CLIMA - A MÚSICA EM OFF COMEÇA)

 

RECITATIVO: ESFINGE

 

ATOR 1:  Eu sou a esfinge que não se pode decifrar!

                Eu sou a armadilha que não se pode armar!

                Eu sou o pesadelo que não se pode sonhar!

                Eu sou o mistério que ninguém vai solucionar!

ATRIZ:    Eu sou a esfinge e não sei me decifrar!

                Eu sou a armadilha e não sei como armar!

                Eu sou o pesadelo que não quero mais sonhar!

                Eu sou o mistério que não sei solucionar!

ATOR 2: Eu sou a esfinge e você vai me decifrar!

               Eu sou a armadilha que você vai armar!

               Eu sou o pesadelo que você vai sonhar!

               Eu sou o mistério que você vai solucionar!

 

(DURANTE O RECITATIVO OS ATORES ARRUMAM A CENA – UM DELES PEGA UM BONECO E O POSICONA EM CIMA DA MESA - A MÚSICA PARA – OS ATORES SENTAM EM VOLTA DA MESA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Quinto relato!

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Vênus! Na parte velha da cidade!

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Quando Vênus descobre a morte!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Uma noite. Esquina de uma rua. A esquina é mal iluminada... suja, sabe? Um sobrado com ar nobre, mas decadente, fica exatamente nessa esquina. Não existe nada no sobrado. Apenas a casca do que ele já foi. A pintura está gasta, praticamente já não existe cor. Só as pichações dão certa vida ao lugar.

 

(OS TRÊS OLHAM PARA O BONECO)

 

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Uma figura encostada em uma das paredes parece ter saído do sobrado. Eu juro que parece que saiu de lá. Tem o mesmo ar nobre e decadente. Altivo e cansado. Parece ser uma mulher.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Usa uma micro blusa, aberta na frente, mostrando os seios. Perfeitos, quase irreais. Está de minissaia. Justa e curta. Muito curta. Tá com botas de cano alto, acima dos joelhos, e braceletes nos pulsos.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Parece uma nobre guerreira. Seus cabelos estão enrolados num coque estranho. Dá alguns passos até o meio fio e volta para o mesmo lugar. Parece que espera por alguém que não vem. É tarde. Eu acho que ela já fez tudo que tinha para fazer.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Um carro. Luz. Ela se espicha e passa a mão pelo corpo como se tivesse sido despertada pela luz. O carro passa direto.

 

(OS TRÊS OLHAM PARA A PLATÉIA COMO SE ACOMPANHASSEM O CARRO QUE PASSA DIRETO – MUDANÇA DE CLIMA - OS TRÊS LEVANTAM)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Outra figura se aproxima. Também parece ser uma mulher. Só que disforme. Tem uma voz estranha e grave.

ATOR 1: (PERSONAGEM PARA ATOR 2) E aí, Vênus? Deu alguma coisa?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Quatro clientes. Já ganhei minha merreca de hoje.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Vênus. Afrodite. Deusa da beleza. Do amor. Ela não lembra a primeira vez que ouviu esse nome, mas lembra de que achou lindo. Antes mesmo de saber que era nome de deusa. Queria esse nome. É seu. O nome verdadeiro? Ela prefere não dizer. É Vênus. Rainha da noite.

 

(OS TRÊS CAMINHAM PELO PALCO)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela fecha a blusa e começa a caminhar lentamente para casa. Está cansada. A sua rua é escura com luzes sujas que não iluminam muito. Já está quase chegando em casa quando vê um rapaz correndo na sua direção.

 

(OS TRÊS PARAM E OLHAM COMO VENDO A CENA)

 

ATRIZ: (NARRAÇÃO) É belo. Muito belo. Os cabelos compridos e negros batem com força nas costas nuas. O corpo é atlético e corre com passadas largas.

ATOR 2: (PERSONAGEM) É um príncipe!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela pensa.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Podia ser meu!

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela sonha. (PAUSA) Um carro entra disparado na rua. Um tiro. O rapaz cai. Ela corre para o seu príncipe e o carro para bruscamente a certa distância. Ela chega perto do príncipe e vê a perna sangrando.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Dois homens saltam do carro com armas em punho. O príncipe saca uma arma e atira várias vezes acertando os dois homens. Um deles consegue voltar para o carro que sai em disparada. Vênus apenas olha para o seu príncipe. Ele manda:

ATRIZ: (PERSONAGEM) Vai ver se ele tá morto!

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela vai. Sente uma coisa estranha. Medo. O homem está morto. Pelo menos parece estar. Não gosta da morte e não quer saber dela. O homem está com os olhos arregalados e parados. Ela tem medo de pensar na sua morte. Será que vai morrer de olhos abertos? Para morrer tem que ser de olhos fechados. Lembra o cliente de Mamãe. Ele teria morrido de olhos abertos ou fechados?

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Vênus quer morrer de olhos fechados. A morte dela tem que ser assim. De olhos fechados. Sonhando com o mundo.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela volta ao príncipe e confirma a morte. Ele olha para ela. Seus olhos também estão arregalados, mas vivos e com medo. E por isso, ficam mais bonitos ainda. Ele pede:

ATRIZ: (PERSONAGEM): Me ajuda.

 

(ATOR 2 E ATRIZ FAZEM O QUE É DESCRITO PELO ATOR 1)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Cai uma chuva de verão. A arma ainda está nas mãos dele, mas não a ameaça. Ele pede. Parece um menino medroso. Ela o ajuda a levantar-se. Ele apoia o braço nos ombros dela. Vênus abraça a cintura do príncipe e sente seu corpo. Os corpos estão molhados. Caminham com dificuldade para casa dela. A perna sangra muito. Ele não aguenta caminhar. Num movimento rápido, ela coloca o príncipe nas costas e o carrega. Agora sente todo o seu corpo pesando nas suas costas. Uma mistura de medo e prazer toma conta de Vênus.

 

(MUDANÇA DE CLIMA – OS TRÊS SE POSICIONAM)

 

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Quando Vênus descobre o amor.

 

(A MÚSICA TOCA EM OFF)

 

RECITATIVO: O AMOR IV

 

ATOR 1:  O amor é uma velha tarada

                Que tem uma conduta ilibada.

                É ter no pescoço uma corda atada.

                É uma vida da pá virada.

 

                O amor é uma chuva dourada

                Que deixa a estrada alagada.

                É ter a visão embaçada. 

                É uma risada debochada.

 

(A MÚSICA PARA – ATOR 2 GUARDA O BONECO)

 

CONVERSA DE BAR V

(OS ATORES FALAM COMO SE CONTASSEM UM SEGREDO ESPANTOSO)

 

ATOR 1: Mas, não é?

ATRIZ: Claro que é!

ATOR 2: (APONTA PARA A MESA) Aqui tá bom?

ATOR 1 E ATRIZ: Tá ótimo!

 

(OS ATORES SENTAM NAS CADEIRAS EM VOLTA DA MESA. FALAM COMO SE ESTIVESSEM INCRÉDULOS NUMA MESA DE BAR)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Não sei como, mas ninguém viu os dois entrarem no apartamento. Ela mora num apartamento pequeno que tinha sido de uma amiga que se matou. Pensa na amiga. Será que ela morreu de olhos abertos? Não pensa mais naquilo.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Depois que deixou o príncipe na sua cama ela pegou um pano e um balde com água para limpar o sangue dele que ficou na escada e na rua. Alguma coisa diz que isso é o certo a fazer.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Mas o estranho são os vizinhos, né? Tanto barulho e ninguém apareceu. Ninguém veio ver o que aconteceu? É esquisito. Parece um sonho.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela voltou ao apartamento e encontrou o príncipe meio desmaiado.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Pegou uma tesoura e cortou a calça dele. O ferimento é enorme. A bala atravessou a coxa. Ela não sabia mais o que fazer. Pensou em chamar alguém para ajudar. Mas quem? Desistiu da ideia. Não confia em ninguém.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) O príncipe gemeu muito. Os lençóis ficaram vermelhos. Ela pegou coisas para fazer um curativo. É boa nisso, mas nunca tinha feito um daquele tamanho.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Conseguiu estancar o sangue e fez o curativo. Ela não sabia se ia dar certo, mas não podia fazer mais nada. O príncipe parou de gemer. Parecia que estava dormindo. E mais uma vez ela viu como ele é belo.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Um príncipe mesmo!

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Vênus estava cansada. Ela até pensou em trocar de roupa e tomar um banho. E só então reparou que está toda suja de sangue. E dormiu daquele jeito. Sentada numa cadeira com o sangue do seu príncipe no corpo. Romântico, não?

 

(ATRIZ E ATOR 1 FAZEM CARA DE NOJO)

 

(MUDANÇA DE CLIMA – OS ATORES SE LEVANTAM - ATRIZ COLOCA DUAS CADEIRAS UMA DE FRENTE PARA OUTRA – ATOR 2 E A ATRIZ SENTAM NAS CADEIRAS E FAZEM O QUE É DESCRITO)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Já é tarde quando acordou. O príncipe está sentado na cama apontando a arma para ela. (ATRIZ APONTA A MÃO PARA ATOR 2) Ela vai levantando lentamente

ATRIZ: (PERSONAGEM) Senta aí, porra!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Vênus só quer sair da frente daquele cano.

ATRIZ: (PERSONAGEM – APONTA PARA O CURATIVO) Tu fez isso aqui? Tá doendo pra caralho!

ATOR 2: (PERSONAGEM) Não posso fazer nada. É melhor ir para um hospital.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Num dá! Nem pensar!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela tenta levantar de novo.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Senta aí, porra! Já falei!

ATOR 2: (PERSONAGEM) Só quero passar um café...

ATRIZ: (PERSONAGEM) Tá!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela levanta e faz um café.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Tu é homem ou mulher?

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela não responde. Ele toma o café.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Como é teu nome?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Vênus.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Como a deusa?

ATOR 2: (PERSONAGEM) É.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) A arma ainda está apontada para ela. Isso incomoda. Vênus pede para ele parar com isso. O príncipe cuspe de lado e ri.

ATOR 2: (PERSONAGEM) E o teu nome?

ATRIZ: (PERSONAGEM) O meu nome é “Não é da tua conta”.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Por que aqueles homens atiraram em você?

ATRIZ: (PERSONAGEM) Não é da tua conta, caralho!

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ficam assim durante muito tempo. Ela sentada na cadeira e ele na cama com a arma em punho. Até que ela fala:

ATOR 2: (PERSONAGEM) Eu preciso fazer um curativo novo.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Por quê?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Pode infeccionar.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Como é que tu sabe?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Minha mãe era enfermeira.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ele deixa. Ela refaz o curativo. Por um milagre a perna parece estar melhor. Talvez, por agradecimento, o príncipe guarda a arma. (ATRIZ ABAIXA A MÃO) Ele olha para ela. Vênus acende um cigarro e senta na cadeira. Ele pede um cigarro e ela dá.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Tu é puta?

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela não responde. O dia vai virando noite. E o tempo vai passando.

 

(OS TRÊS ATORES VÃO PARA FRENTE DO PALCO - COMEÇA O RECITATIVO QUE DEVE SER ACOMPANHADO DE MÚSICA)

 

RECITATIVO: O TEMPO V

 

ATOR 1:   O tempo que passa

                 Anda cansado,

                 Mas continua assanhado.

                 É um eterno abusado.

ATRIZ:    O tempo que passa

                Tem amor e tem pecado.

                Vive sempre apaixonado

                Um eterno namorado.

ATOR 2:   O tempo que passa

                 É um sóbrio viciado.

                 É um segredo sussurrado.

                 O segredo mais sagrado.

JUNTOS:  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

                  O tempo que passa...

(O RECITATIVO PARA – ATRIZ E ATOR 2 VOLTAM PARA AS CADEIRAS)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela precisa sair. Sai toda noite. Seja dia santo ou do diabo, mas ele não quer deixar.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Se eu não sair vão desconfiar.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Então vai, mas se tu me entregar eu ti mato.

 

(ATOR 2 LEVANTA)

 

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela vai se trocar. Ainda está com a roupa do outro dia. Vem com um vestido curto. Está linda.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Se tu me trai eu ti mato.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ele a olha nos olhos. Sabe que ela não vai trair. Alguma coisa lhe diz isso, mas precisa falar mesmo assim. Ela pega a bolsa e já vai sair.

ATRIZ: (PERSONAGEM) É Leo.

ATOR 2: (PERSONAGEM) O quê?

ATRIZ: (PERSONAGEM) Meu nome é Leo. Pra tu não esquecer.

 

(A ATOR 2 VAI PARA FRENTE DO PALCO – OS OUTROS ATORES O SEGUEM, MAS FICAM UM POUCO ATRÁS)

 

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela caminha na rua pensando.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Tem vontade de chorar.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo. Apenas Leo.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Não sabe o motivo de aquilo tudo ter acontecido. Está com medo, mas não dele. Não sabe do quê. Um homem, que chamam de Russo, passa por ela junto com seu ajudante. Parece que vão para casa dele. Vênus não gosta desse homem. Todo mundo gosta, mas ela não. Também não sabe o motivo.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Chega na esquina de sempre. Pega um cliente. Enquanto transam pensa em Leo. Não queria que fosse ele, mas gostaria de transar com Leo. Livra-se rápido do cliente. Volta a esquina. Pensa em ir para casa. Uma amiga, que todo mundo chama de Mais Nova, a chama para irem ao bar da Gorda.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Só peguei um cliente. Não posso ir.

ATOR 1: (PERSONAGEM) Só um? Tá mal.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Não enche.

ATOR 1: (PERSONAGEM) Acharam um cara morto na tua rua.

ATOR 2: (PERSONAGEM – COM VIOLÊNCIA) Não enche.

ATOR 1: (PERSONAGEM) Desculpe. Eu sei que você não gosta de falar de morte.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Tem vontade de espancar a Mais Nova. Volta para casa. Enquanto caminha tem medo de chegar e não encontrar Leo. Ou pensa que tudo pode ser um sonho. Pelo menos parecia ser.

 

(ATRIZ E ATOR 2 SENTAM NAS CADEIRAS)

 

ATOR 1: Começa a correr para chegar mais rápido. Se for um sonho, ela não quer acordar. Quando chega em casa abre a porta lentamente. Leo não está na cama. Acha que ele foi embora. Tem medo. Vontade de chorar. De repente sente uma coisa gelada nas suas costas. É o cano do revólver.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Tu tá sozinha?

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Leo sabe que ela está só. Alguma coisa diz isso. Sabe que ela não vai trair, mas tem que perguntar.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ele manda Vênus tomar banho.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ao voltar ela o encontra na cama. Nu. Ele a chama e os dois se amam. Leo tem um cheiro cru. É bom.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ao terminar, ele sente muita dor na perna. Leo fecha os olhos e só então, Vênus pode ver as pétalas de flores voando pelo quarto.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Por um minuto parece que o tempo para. Mas não é verdade. O tempo só passa...

 

(OS ATORES LEVANTAM - COMEÇA O RECITATIVO QUE DEVE SER ACOMPANHADO DE MÚSICA)

 

RECITATIVO: O TEMPO VI

 

ATOR 2:  O tempo que passa

                Traz de volta o exilado.

                Faz dele abençoado.

                Um eterno condenado.

ATRIZ:    O tempo que passa

                 É um sátiro recatado.

                 Um eunuco barbado.

                 O último a ser executado.

ATOR 1:    O tempo que passa

                  Anda atrasado.

                  É um coitado.

                  Um pau-mandado.

JUNTOS:   O tempo que passa.

                   O tempo que passa.

                   O tempo que passa.

                   O tempo que passa.

(O RECITATIVO PARA – OS ATORES SE POSICIONAM)

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Quando Vênus tem ódio.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Os dias passam. Vênus ama. Ama Muito.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Alguns dias ela deixa de ir a rua. As pessoas estranham, mas ela não aguenta ficar muito tempo longe de Leo. Ela não sabe se é amada. Ele também não sabe. É uma sensação nova para os dois.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Vênus não é mulher. E isso é confuso para Leo. Mas não conversam sobre isso. Eles estão juntos por causa da perna. É esse o motivo. Apesar de já estar quase boa, a perna é o motivo. Tem que ser. Algumas vezes eles brigam, chegam aos bofetões. Mas sempre se amam.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Leo confessa o motivo dos acontecimentos daquela noite. Está envolvido com traficantes. Ele próprio é traficante. Fez besteira e está sendo perseguido. Não sabe como ainda não tinha sido descoberto. Talvez, não tivessem visto Vênus e não imaginavam que ele estaria ali. O lugar é um bom esconderijo e uma desculpa a mais para ficar junto com ela.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela tem que sair. Precisa sair para não levantar suspeitas. Não quer trabalhar, então vai ao bar da Gorda. Vênus gosta de ir ao bar. Gosta de beber e falar bobagem com as amigas. E elas estão todas lá. Todas. Amigas e inimigas. A Mais Nova, Mamãe...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Que saiu da prisão. Bom comportamento.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Também está lá a Lana e muitas outras. E Odete. Odete está lá. Vênus não gosta de Odete. Não gosta mesmo.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A Mais Nova quando vê Vênus vai em sua direção.

ATOR 1: (PERSONAGEM – FALA PARA ATOR 2) Finalmente saiu da toca.

ATOR 2: (PERSONAGEM) É.

ATOR 1: (PERSONAGEM) Odete está aí.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Já vi.

ATRIZ (NARRAÇÃO) Vênus olha para Odete. Odete está brigando com Lana porque ela joga moedas para uma aleijada apanhar. Diz que acha aquilo um absurdo. É mentira. Ela se diverte com a situação tanto ou até mais que Lana. As duas se parecem muito. Não valem nada. Elas têm um prazer enorme em humilhar as pessoas.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Mas pelo menos Lana assume. Diz mesmo que gosta disso. Odete finge uma bondade irritante.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Vênus odeia isso. E não faz a menor questão de esconder o seu ódio. Pensa em ir embora, mas se aproxima.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) A Mais Nova está eufórica. Aliás, é uma característica dela. Vive numa euforia eterna.

ATOR 1: (PERSONAGEM) A Vênus saiu da toca. (NARRAÇÃO) Lana e Odete não dão muita importância. As outras riem e fazem especulações sobre o sumiço de Vênus, mas Mamãe é reveladora:

ATRIZ: (PERSONAGEM) Ela sumiu por causa do namorado.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Que besteira é essa. Não tenho namorado nenhum.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Ora, Vênus, eu moro no teu prédio. Você pensa que eu não escuto. Até a minha vizinha, aquela maluca da banana, outro dia reclamou do barulho. E olha que ela não reclama de mais nada...

ATOR 2: (PERSONAGEM) Já disse para não falar besteira, Mamãe.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Gente, eles brigam que é uma coisa. Depois fica aquele silêncio...

ATOR 2: (PERSONAGEM) Cala a boca.

(ATOR 2 BATE UMA PALMA – A ATRIZ FAZ COMO SE TIVESSE LEVADO UM TAPA – UMA MÚSICA DE FUNDO, COMO UMA PERCUSSÃO, COMEÇA LENTAMENTE – ESSA MÚSICA VAI ACELARANDO DURANTE A CENA ATÉ O FINAL)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Um tapa. Todas se assustam.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Vênus se arrepende, mas já é tarde. Bateu em Mamãe. Ela gosta da outra. Não queria bater, mas Mamãe fala demais.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Tá maluca?

ATOR 2: (PERSONAGEM) Eu mandei você parar.

ATRIZ: (PERSONAGEM) Você não manda em mim. Tem um homem na tua casa. Eu não sei o que ele é teu. Mas que tem homem na tua casa. Isso tem.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Vênus vai para cima de Mamãe. Odete se mete na frente. Ela está querendo briga. Não faz isso para defender Mamãe. Faz para afrontar Vênus.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) A Mais Nova, que sabe o que é uma briga entre as duas, se mete no meio tentando acalmar os ânimos.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela tem mania de fazer isso. Detesta brigas.

ATOR 1: (PERSONAGEM) Vamos deixar disso. Que importância tem se a Vênus tá namorando ou não? A Odete tá namorando e ninguém fala nada.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Mas a coisa está esquentando.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Um carro para perto do grupo e um homem salta. Tem um enorme curativo no braço e chama Odete. Vênus vira e vê. O carro. O homem. É ele. O homem que perseguia Leo. O mesmo carro.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Odete desiste da briga. O seu namorado chegou. Tem coisas mais importantes pra fazer.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Vênus está tonta. O namorado de Odete. Ela não acredita. Ele está muito próximo. Fica com medo que o homem a reconheça. Ela não sabe o que fazer. Fica com raiva. Ela não devia ter saído. Odete se aproxima do namorado. Ele olha para Vênus como se tentasse lembrar. Ele e Odete entram no carro e vão embora cantando pneu.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) A Mais Nova puxa conversa com Vênus, mas ela sai correndo. Precisa ver Leo. Tem raiva. Muita raiva.

(MUDANÇA DE CLIMA – A MÚSICA DE FUNDO ACELERA)

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Quando Vênus vê a morte pela segunda vez

(ATRIZ SENTA NA CADEIRA)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Vênus entra no apartamento e encontra Leo dormindo. Ele está tão tranquilo que nem percebe a chegada dela.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Um medo enorme toma conta de Vênus. Medo de perder o seu amor. Medo que ele morra de olhos abertos. Ela está tão desesperada que se atira sobre o rapaz. Leo toma um susto.

(O ATOR 2 SE APROXIMA DA ATRIZ. ELA SE LEVANTA NUM SUSTO – OS DOIS SE AFASTAM, MAS FICAM SE OLHANDO)

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Os dois se afastam. Ficam calados se olhando com os olhos arregalados. A respiração acelerada. As mãos crispadas. O medo.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela não precisa falar. Os seus olhos dizem tudo.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Ela não quer que seja assim. Ela quer viver com ele para sempre. É só o que ela quer.

(ATRIZ VAI PARA FRENTE DO PALCO – O ATOR 2 A SEGUE – ATOR 1 FICA NO FUNDO DO PALCO ATRÁS DA MESA – A MÚSICA DE FUNDO ACELERA MAIS)

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Leo abre a porta e vai embora correndo.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) A arma. Ele esqueceu a arma. Vênus pega a arma e corre atrás dele. A rua está deserta. Ela corre e grita chamando por Leo. Ele parece não ouvir.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Na esquina. O carro. Freada brusca. O homem sai do carro e atira em Leo. Ele cai.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Vênus grita e atira. O homem não tem tempo de se virar. A bala acerta em cheio. Ela não sabe como conseguiu isso. Nunca tinha usado uma arma, mas atirou e matou. Matou um homem.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Odete, desesperada, sai do carro. As duas se olham. Nos olhos. Vênus não entende nada. Uma confusão na sua cabeça. Tudo é tão rápido.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Medo... dor... ódio...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Tudo ao mesmo tempo. Odete. A culpada é Odete. Vênus atira mais uma vez.

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Odete morre com os olhos abertos.

(A MÚSICA DE FUNDO PARA – OS TRÊS ATORES ANDAM PELO PALCO)

 

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo está morto.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Vênus volta para o apartamento.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Uma dor profunda toma conta dela. Não sabe o que fazer.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo está morto.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela não chora. Só sente a dor. Uma dor física. Um buraco aberto no meio do peito. A respiração ofegante.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Quando respira ela solta um gemido fino. Tem que ir embora. Sumir.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo está morto.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela arruma uma bolsa com roupas, pega dinheiro e sai. Na esquina as pessoas estão em volta dos corpos. Agora é verdade. O sonho acabou.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) A polícia chega. Vênus vai para o lado oposto. Tem vontade de correr. De morrer. Mas caminha lentamente como se não fosse com ela. Tenta controlar a respiração.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo está morto.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) O seu amor está morto.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Ela pega um táxi.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Não sabe para onde ir, mas não pode ficar ali. Não pode mais viver ali.

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo está morto.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) O táxi roda. Sai da parte velha da cidade.

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Ela tem a sensação que tudo desmoronou. Olha para trás e vê tudo no lugar.

(OS ATORES PARAM E OLHAM PARA A PLATÉIA)

ATOR 2: (PERSONAGEM) Leo está morto.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Leo morreu com os olhos fechados...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) E o coração de Vênus desmoronou.

ATOR 2: (NARRAÇÃO) Mas ninguém viu. Ninguém. Na rua. Nas casas. Nos sobrados. Ninguém viu.

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Salvador não viu... Nem vai ver mais sua amada deusa...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Mamãe não viu...

ATOR 1: (NARRAÇÃO) Dulce não viu...

ATRIZ: (NARRAÇÃO) Nem o Russo viu...

JUNTOS: (NARRAÇÃO) Mas Vênus sentiu. Sentiu fundo.

(A MÚSICA COMEÇA – A LUZ VAI BAIXANDO EM RESISTÊNCIA – PEDAÇOS DE PAPEL CAEM DE CIMA DO PALCO COMO PÉTALAS DE FLORES – OS ATORES CANTAM JUNTOS)

MÚSICA: O AMOR FINAL

            O amor é um fraco comovente.

            Um rio que não segue a corrente.

            É uma mentira convincente

            Uma verdade indecente.

            O amor é perder o fio da meada

            É quando a noite não significa mais nada.

            É uma joia fina e delicada.

            É sentir uma dor iluminada.

           O amor é o pior confidente.

           Espalha segredos. É inconsequente.

           É piada que deixa o bobo contente.

           É palavra que faz do sábio um demente.

           O amor é a saída da encruzilhada.

           É o início e o fim da jornada.

           É sair pela porta errada.

           Nem tudo... Nem nada...

            O amor...

FIM

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