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CONTOS DE
ESPERTEZA

A HISTÓRIA MAIS LONGA DO MUNDO

 

Era uma vez, em um reino distante, um rei que adorava ouvir histórias, mas achava as narrativas curtas demais. Por mais que o contador de histórias do reino se esforçasse, o rei continuava insatisfeito.

Até que um dia, furioso, mandou o seu pobre contador para a prisão e lançou um desafio: daria quinhentas moedas de ouro a quem lhe contasse uma história tão comprida, tão comprida, que o fizesse se cansar. Mas, coitado de quem não conseguisse. Em vez de quinhentas moedas, ganharia quinhentas chibatadas.

Várias pessoas se candidataram a contar histórias para o rei.

Alguns passaram horas, outros chegaram a atravessar dias contando as suas histórias e sempre que acabavam o rei dizia:

 

-Mas já acabou? Essa história é muito curta. Não me cansou. Vai levar quinhentas chibatadas.

 

Até que veio um esperto contador de histórias que disse assim:

 

- Eu vou ganhar essas moedas de ouro.

 

Ele foi até o castelo e disse ao rei:

 

-Quero contar uma história para o senhor, meu rei!

 

O rei olhou para aquele moço e não acreditou muito nele, mas disse:

 

- Então comece a história! Mas já sabe: se não cumprir a tarefa vai levar quinhentas chibatadas.

 

O jovem contador ficou bem no meio do salão real e começou:

 

- Era uma vez uma fazenda que tinha um grande celeiro. Um celeiro imenso lotado de grãos. Era muito grão, muito grão, muito grão, muito grão. Nesse celeiro tinha um buraquinho. Um buraquinho bem pequeno por onde... ZZZZZZZZZZ... Passou um mosquito. O mosquitinho pegou um grão e... ZZZZZZZZZZ... Passou pelo buraquinho e levou o grão para outro lado. Depois voltou e... ZZZZZZZZ... Passou pelo buraquinho, pegou um grão e... ZZZZZ... Levou para o outro lado. Depois voltou e... ZZZZZZZZ... Passou pelo buraquinho, pegou um grão e... ZZZZZ... Levou para o outro lado. Depois voltou e... ZZZZZZZZ... Passou pelo buraquinho, pegou um grão e... ZZZZZ... Levou para o outro lado. Depois voltou e... ZZZZZZZZ... Passou pelo buraquinho, pegou um grão e... ZZZZZ... Levou para o outro lado. Depois voltou e... ZZZZZZZZ... Passou pelo buraquinho, pegou um grão e... ZZZZZ... Levou para o outro lado...

 

O rei ficou impaciente:

 

- Mas continue a história! Já entendi essa parte!

 

E o rapaz, tranquilo, respondeu:

 

-Não, Majestade. Enquanto não saírem todos os grãos, eu não posso continuar a história.

 

O rei, não aguentando mais, se deu por vencido. O rapaz esperto ganhou suas moedas de ouro e foi embora.

O monarca, com saudades de ouvir histórias, mandou soltar seu antigo contador e continuou a se deliciar com as narrativas. Mesmo que curtas.

E essa história acabou!

Adaptação de Augusto Pessôa

 

 

 

 

A FORÇA DE MALASARTES

 

Depois de criar mais uma grande confusão,

Malasartes ia fugindo da fúria de um capitão.

Que botou atrás do malandro sua tropa na perseguição.

E foi grande o problema do nosso herói espertalhão.

 

Vendo a tropa se aproximando e sem saber como escapar,

Malasartes teve uma ideia das boas, pois ficou a pensar.

Era uma ideia daquelas. Boa pra danar!

Pra acabar a perseguição e a tropa toda enganar.

 

Com braços e olhos pra cima, ele ficou num descampado.

Andando de um jeito engraçado. Andando de lado a lado.

Como se aguardasse, o pobre coitado,

Algo que viesse do céu! Do céu fosse enviado!

 

A tropa deu com aquele amarelo ao chegar ao descampado.

O camarada com os braços para cima. Andando de lado a lado.

Que coisa mais maluca! E ainda com o ar preocupado.

Parece coisa de doido! Coisa de abilolado!

 

O chefe da tropa, sem entender nada, na frente de todos se colocou.

Vendo o Malasartes olhando pro céu, o homem logo perguntou:

- Que diacho é isso, amarelo? Será que você endoidou?

Não adianta mais fugir que a nossa perseguição acabou!

 

Respondendo ao chefe da tropa, disse o Pedro sem sorrir:

- Um boi, do céu, vai cair! Um boi, do céu, vai cair!

Dizia o amarelo sem parecer que queria fugir.

Com ar muito amuado. Não parecia fingir.

 

O chefe da tropa também ficou preocupado

O amarelo parecia sério e com jeito enfezado.

- O que você está falando? – perguntou o chefe pasmado.

A resposta foi logo dada, mas não do jeito esperado:

 

- Encontrei um boi parado, quando fugia de sua perseguição.

E o boi estava pastando. Comendo sua refeição.

No meio do descampado, o que fiz não tem perdão!

Joguei o boi para alto como se fosse um balão!

 

Uma coisa sem igual essa força que usei,

E lá pro alto, para o céu, o pobre boi eu joguei!

Esqueço dessa força, que do meu pai herdei.

Ele tinha tanta força que eu nem sei!

 

O Malasartes continuava andando de lado a lado.

Os dois olhos no céu e com o braço esticado,

Mas estava muito sério. De um jeito jamais pensado.

Falando sem parar, mas muito compenetrado.

 

- Esquecendo a força que tenho, joguei o boi para o ar!

Agora tenho que apanha-lo. Quero a queda aparar!

Para o pobre do bichinho não se machucar!

Por causa de minha força ele pode se estrepar!

 

O chefe da tropa para o profundo azul do céu olhou.

Não viu do boi nem a sombra. E assim logo pensou:

- Se ele tem tamanha força que pro céu um boi jogou,

Vai derrotar a tropa toda! É só um soco e acabou!

 

Eu devo sair de fininho pra não sofrer tal humilhação.

Será melhor, com certeza, enfrentar a bronca do capitão.

Não quero levar uma surra desse amarelo fortão!

É melhor fugir depressa do que apanhar como um cão!

 

Com cautela, o chefe da tropa para trás foi andando.

E toda a tropa foi, como o chefe, bem devagar recuando.

Todos com muito medo. Logo a tropa foi dispersando.

Quando Malasartes deu por si, estava sozinho falando.

 

O Pedro baixou os braços e parou de falar.

Foi embora contente! Sua viajem tinha que continuar!

Fazer mais estripulias. Outras artes aprontar!

Pra viver mais aventuras e novas terras encontrar.

 

Essa história acabou.

Mas outra vai começar!

Qual é a arte boa?

Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes.

Isto ninguém vai negar...

Quem souber conte outra.

Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

UM EMPREGO PARA MALASARTES

 

Diz que o Malasartes, depois de enganar um fazendeiro ladino e gastar todo dinheiro que conseguiu, resolveu voltar pra casa. Mas um fato quase mudou seu destino. A mãe do nosso Pedro estava muito doente. Ela estava à beira da morte! A pobre senhora, num último fôlego, pediu: queria que o filho caçula arrumasse uma ocupação. Um trabalho decente, como todo bom cristão. Fez o pedido e foi pra terra dos pés juntos... Bateu os canecos... Bateu as botas... Vestiu paletó de madeira... Morreu! Malasartes, então, decidiu arrumar uma ocupação. E foi batendo de porta em porta atrás de emprego. Depois de muito bater e receber muita porta na cara, o Pedro foi até uma fazenda e encontrou uma fazendeira. A mulher perguntou o que ele queria e o Pedro respondeu:

 

- Procuro um trabalho... Uma ocupação... Um serviço de bom cristão. Será que na sua fazenda não tem um lugar pra mim?

- Talvez tenha, mas preciso falar com meu marido! – e ela gritou – Marido!

 

Apareceu um homenzinho com a cara engraçada. A fazendeira explicou que o Malasartes queria um emprego. O fazendeiro perguntou o que ele sabia fazer e o Pedro respondeu:

 

- Faço qualquer coisa... Qualquer ocupação... Sabe, foi um pedido da minha finada mãezinha que eu arrumasse um serviço, um trabalho de bom cristão! Será que o senhor tem um trabalho assim?

- Trabalho até que tem. Não muito, mas tem. Só não tem dinheiro pra pagar. Somos muito pobres...

- Trabalho por qualquer coisa. Até por um prato de comida!

- Então está bem! Você vai ganhar um bom prato de comida todos os dias!

 

E Malasartes passou a trabalhar na fazenda! E o patrão, que disse que não tinha muito trabalho, tratou de inventar um montão! O pobre do Pedro trabalhava sem cessar! O Patrão só pedindo. Queria isso, aquilo e “aquiloutro”!  E o amarelo correndo de lado a lado. E o Patrão exigindo:

 

- Malasartes! Malasartes! Eu quero isso!

- Já vai, patrão!

- Agora eu quero aquilo!

- Tá aqui, patrão!

- Agora eu quero “aquiloutro”!

- Já vai, patrão! Tá aqui, patrão!

- Agora não quero mais! Demorou muito!

 

O nosso Pedro estava cansado de tanto trabalhar e quando ia pedir o seu prato de comida, a patroa respondia:

 

- Ah, meu filho, não temos nada pra lhe dar... Somos muito pobres... Só tem esse pãozinho...

 

E dava para o pobre um pão duro, velho e seco. Que não dava nem pra morder. Assim seguia o Malasartes no seu emprego de bom cristão.

Mas até que chegou o dia que o Pedro trabalhou tanto que ficou com uma sede danada. Foi pedir água na casa e viu, por trás da porta, sua patroa limpando um monte de ouro que tirava de duas sacas cheias. E a mulher dizia assim, enquanto esfregava as barras de ouro com um paninho:

 

- Ai, meu ourinho... Meu ourinho vai ficar brilhando! Ai, meu ourinho... Meu ourinho vai ficar limpinho! Que beleza! Tenho que guardar pra ninguém pegar!

 

O Pedro Malasartes ficou furioso e falou com seus botões:

 

- Que safadeza! É uma pouca vergonha! Esses dois se dizendo pobres e tendo esse monte de ouro na mão. E ainda me pagando com aquele pão velho, duro e seco. Minha finada mãezinha, a senhora vai me perdoar, mas esse negócio de serviço de bom cristão não é pra mim. Esses safados vão ver com quem tão lidando. Eu sou Pedro Malasartes!

 

E logo arquitetou um plano: chamou o patrão e disse que não queria mais esse negócio de buscar ISSO, AQUILO e “AQUILOUTRO”. Que preferia ter uma ocupação só!  Preferia tomar conta só dos porcos. O patrão não gostou e resmungou:

 

- Você só quer tomar conta dos porcos?

- É, patrão! Faz mal?

- Bem não faz, mas mal também não chega a fazer! Você pode tomar conta só dos porcos, mas só vamos lhe dar a metade do pão!

- Vindo do senhor e da patroa está bem vindo.

 

E o Malasartes pegou a vara de porcos e foi para bem longe da fazenda. Achou um lugar bonito e ficou por ali com os porcos só esperando. Daí a pouco, apareceu um rico fazendeiro que se encantou com os porcos:

 

- Que belezura de porcos!

- O senhor gostou? – perguntou o Pedro – Eu também gosto muito dos meus bichinhos!

- São seus?

- São meus desde que nasceram! – disse o Malasartes com a maior cara lavada – Eu adoro meus porquinhos!

- E o senhor não vende?

- Vender os meus porquinhos? Acho que não, doutor!

- Venda! Pago bom preço por eles!

- Mas eu vou sentir tanto a falta deles... só se eu ficasse com uma recordação...

- Que recordação? – se espantou o fazendeiro rico.

- O senhor quer os porquinhos para criar ou para matar?

- Para matar e vender a carne!

- Pois então, eu vendo os porquinhos, mas sem o rabo. Vou ficar com os rabinhos de recordação!

- Como é que é?

- O senhor não vai vender as carnes... o rabinho não vai fazer falta! E eu fico com uma recordação dos meus bichinhos! Só vendo assim!

 

O Fazendeiro rico achou aquilo muito esquisito, mas topou fazer o negócio. Deu muito dinheiro para o Malasartes. O malandro pegou um canivetinho e cortou o rabinho de todos os porcos. O novo dono dos porcos foi embora e o amarelo enfiou os rabinhos num canteiro de terra e saiu correndo para fazenda chamando pelo patrão. E o homem apareceu espantado:

 

- Que foi, criatura?

- Os porquinhos! – disse o Malasartes quase sem fôlego.

- Que você fez com meus porquinhos?

- Os bichinhos tão se enterrando!

- Que é isso? Que besteira é essa?

- É verdade, patrão! Os bichinhos foram com as patinhas assim na terra... Roinc... Roinc... Roinc...Depois os focinhos... Roinc... Roinc... Roinc...E foram entrando na terra! Olha lá, patrão! Só estão os rabinhos de fora!

 

O Fazendeiro pôs as mãos na cabeça e gritou desesperado:

 

- Ai! Que é verdade mesmo! O quê é que a gente faz, homem?

- Tem que desenterrar eles!

- Corre lá na casa e pede pra fazendeira uma pá!

- Só uma?

- Não. Pega logo duas!

- Duas. Tem certeza? São as duas?

- Tenho, homem de Deus, pega as duas!

 

O Malasartes saiu na maior carreira. Chegou na fazenda, tomou fôlego e chamou a fazendeira na maior calma. A Fazendeira apareceu com sua cara emburrada:

 

- Que é, homem de Deus?! Você quer mais comida?

- Não é isso não, patroa! É que o patrão mandou a senhora me dar as duas sacas de ouro!

- Como é que é? Você está é doido!

- Eu não sei de nada, Patroa. O Patrão que mandou... A senhora quer ver?

 

E o Malasartes gritou para o patrão de longe:

 

- São as duas, né? As duas!

 

E o fazendeiro sem saber de nada respondeu:

 

- É! As duas!

 

A Fazendeira nem acreditava no que estava vendo e ouvindo. Deu as sacas de ouro para o Malasartes e o malandro foi embora. O Fazendeiro e sua mulher nunca mais viram o ouro, nem os porcos, nem o Pedro Malasartes. E acabou a história!

 

Essa história acabou. Mas outra vai começar!         

Qual é a arte boa? Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes. Isso ninguém vai negar...

Quem souber conte outra. Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

 

 

O COELHO E O SAPO

 

O coelho vivia zombando do sapo. Dizia que ele era preguiçoso e lerdo, incapaz de qualquer agilidade. O sapo ficava zangado. Um dia ele se cansou de tanta zombaria e fez uma proposta ao outro:

 

- Quer apostar uma corrida comigo?

 

O coelho se espantou e o sapo falou tranquilamente:

 

-Vamos correr amanhã, você na estrada e eu pelo mato, até a beira do rio. Que tal?

 

O coelho ainda estava espantado, mas quis saber:

 

- E o que eu ganho com isso?

 

E o sapo explicou:

 

- Se você ganhar, eu lhe darei um tesouro que tenho guardado. Se eu ganhar, você não poderá mais zombar de mim. Aceita?

 

O coelho riu muito e aceitou o desafio.

A notícia da corrida se espalhou pela floresta. Todos os bichos queriam ver aquela competição inacreditável. Teve bicho fazendo até aposta.

Sem os outros bichos perceberem, o sapo começou a armar seu plano. Reuniu todos os seus parentes e pediu para que eles ficassem na margem do caminho, com ordem de responder aos chamados do coelho.

Na manhã seguinte, toda a floresta estava no local marcado para a realização da corrida. Todos curiosos para ver a competição. O coelho chegou com cara de já ganhou.  Quando o sapo chegou, alguns bichos começaram a rir baixinho do coitado. Mas ele nem ligou.

A coruja fez um risco no chão de onde partiria a corrida e avisou:

 

- A corrida começa aqui e termina na beira do rio! Que vença o melhor!

 

O sapo e o coelho se enfileiraram e a gralha deu o grito de partida. O orelhudo disparou como um raio, perdendo de vista o sapo que saiu aos pulos. O coelho correu, correu, correu, parou e perguntou a si mesmo achando graça:

 

- Será que, se eu chamar o sapo, ele me ouve?

 

E rindo sozinho ele tentou:

 

- Camarada sapo? Camarada sapo? Você está aí?

 

E de dentro do mato um parente do sapo respondeu:

 

- Estou aqui, coelho! E vou ganhar a corrida!

 

O orelhudo não acreditou. Como é que o sapo tinha conseguido correr tão rápido? O coelho recomeçou a correr. Correu, correu, correu bastante. Até que ele voltou a chamar:

 

- Camarada sapo? Camarada sapo? Você ainda está aí?

 

E de dentro do mato outro parente do sapo respondeu:

 

- Estou aqui, coelho! E vou ganhar a corrida!

 

O orelhudo não conseguia acreditar. E foi assim por toda estrada. O coelho parava, chamava pelo sapo e um parente respondia:

 

- Estou aqui, coelho! E vou ganhar a corrida!

 

O orelhudo não estava entendendo nada. O sapo estava correndo mais rápido que ele. O coelho exausto chegou à margem do rio. O sapo, que tinha feito um caminho mais curto, já estava esperando no fim da corrida. Sossegado, sereno e com um leve sorriso nos lábios. Os bichos todos ficaram espantados. O coelho declarou-se vencido e nunca mais pode zombar do sapo.

E acabou a história

 

Adaptação de Augusto Pessôa

 

 

PEDRO MALASARTES – o início da saga

 

Como é essa história?  Como foi que começou?      

A história do malandro que muita gente enganou.

Ele é Pedro e Malasartes.  Da arte sempre será.

Quem souber conte logo.  Vamos já começar:

                       

Pois então vamos contar. Ouve-se em toda parte.

É história de esperteza. É de Pedro Malasartes.

O menino tinha família. Tinha pai, mãe e irmão.

Vivia sua vidinha como todo bom cristão.

O irmão, que era mais velho, um trabalho procurou.

Encontrou um fazendeiro que logo o contratou.

O patrão, muito ladino, ofereceu ao empregado

Um acordo diferente. Coisa de malandro safado:

 

- Te dou um bom trabalho, mas não gosto de falação.

Nem a minha, nem a sua, não quero reclamação!

Se um de nós reclamar, o castigo assim será:

Uma tira de couro das costas perderá!

 

AAAAIIIIIIII!

 

Pra onde vai essa história? Onde é que vai dar?      

Qual é a arte boa? Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes. Isso não vai mudar.

Quem souber conte logo. Pode continuar:

 

Isso é arte do tinhoso. É coisa de gente má.

Uma proposta dessa não dá para aceitar.

Mas o pobre do empregado o acordo aceitou.

“São coisas dessa vida!” Assim o rapaz falou.

O malvado fazendeiro tratou de arrumar

Todo trabalho do mundo para o empregado reclamar.

Mas o pobre do empregado trabalhava sem cessar

Mas um dia (Ai, que dia!) o rapaz não aguentou.

Sem força nenhuma, do trabalho reclamou.

O fazendeiro sem piedade fez o combinado

Tirou a tira de couro das costas do coitado.

 

AAAAIIIIIIII!

 

Que maldade terrível! Que raiva que dá!     

Qual é a arte é boa? Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes. Ele sempre será.

A história continua. Vamos ver no que vai dar.

 

Pra casa, cabisbaixo, voltou o empregado.

Sem uma tira das costas e com o olho esbugalhado.

O caçula, quando soube, com muita raiva ficou.

Uma vingança medonha, ele logo planejou.

Foi até a fazenda e o fazendeiro encontrou

Pediu um emprego e assim escutou:

 

- Te dou um bom trabalho, mas não gosto de falação.

Nem a minha, nem a sua, não quero reclamação.

Se um de nós reclamar o castigo assim será.

Uma tira de couro das costas perderá.

 

AAAAIIIIIIII!

 

Pra onde vai essa história?  Onde é que vai dar?     

Qual é a arte boa? Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes. Ele vai se vingar.

Quem souber conte logo. Pode continuar:

 

O Malasartes assim quis e o trabalho começou.

O fazendeiro danado muito trabalho arranjou.

Sem nada reclamar, mas fazendo tudo errado, 

Malasartes trabalhava de modo atrapalhado.

Vendeu os bois da fazenda e com o dinheiro ficou.

Queimou o roçado e até os porcos matou.

O fazendeiro ia firme, até que não aguentou.

Botou a boca no mundo. O homem assim falou:

 

- Que bagunça é essa? Que tanta enrolação!

Um empregado assim vai ser minha perdição.

Faço qualquer negócio. Qualquer arrumação.

Só quero que vá embora. Não quero você aqui, não!

 

Essa história tem um fim? Ela já vai terminar!        

Qual é a arte boa? Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes. Ele já se vingou.

Quem souber conte logo. Ponha um fim e acabou.

O Malasartes deu um sorriso. Um sorriso de lado a lado.

Não podia ir embora sem resolver o combinado.

Uma nova proposta o Pedro fez ao patrão: 

Queria muito dinheiro! Muito dinheiro na mão!

Com medo de perder o couro o fazendeiro aceitou.

Na mão do Malasartes muito dinheiro deixou.

O malandro foi embora! Ganhou rumo na estrada!

E essa história acabou. Assim foi terminada!

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

MALASARTES E A ÁRVORE QUE DAVA DINHEIRO

 

Uma velhinha colocava seus pertences em cima de uma carroça, ao lado uma casinha simples e pobre que ficava bem na beira da estrada. A pequena construção era separada do caminho apenas por uma cerca baixinha de madeira. Passando pelo lugar, o Pedro Malasartes viu a cena e foi ajudar a velha. O amarelo não gostava muito de fazer força, mas vendo aquela senhora arrumando com tanta dificuldade seus cacarecos, resolveu ajudar. A velha ficou satisfeita. Depois de tudo arrumado, o Malasartes perguntou:

 

- Vai passear, Vó?

- Não – respondeu ela – Estou de partida!

- Mas por quê?

- Essa terra já não dá mais nada, meu filho. As secas acabaram com tudo. Só restou essa pequena árvore.

 

E a velha apontou para uma árvore pequena, mas cheia de galhos com folhas verdes, e continuou:

 

- Só essa árvore que é teimosa e continua de pé. Mas ela só dá essas folhas verdes. Nem uma frutinha. Não sei nem que árvore é essa. Lá no quintal, está tudo seco. As goiabeiras, as laranjeiras, a horta... Tudo seco! Mais seco do que eu. Vou embora!

- E vai pra onde, vó? – quis saber o amarelo.

- Vou morar com meu filho. Ele já me convidou várias vezes. Ele mora lá na capital numa casa bonita. Tem lugar pra mim lá. Eu já fui conhecer. Uma casa no fundo do quintal. Linda! Branquinha! E é pra lá que eu vou.

- E essa sua casinha? Vai ficar aí?

 

A velha fez uma cara desconsolada, mas de repente o rosto dela se iluminou como se tivesse tido uma boa ideia.

 

- Vou dar a casa para você!

- Pra mim, vó?

- É! Você me ajudou sem nem saber quem eu era. Vou ser sincera: essa casa não tem nada. A terra esta seca, os móveis que restam dentro estão quebrados. Só tem essa árvore, mas ela também não dá nada. Só essas folhinhas verdes.

- E o que eu vou querer com essa casa, vó?

- Sei lá! Você é novo! Tem muita vida pela frente e pode pensar em alguma serventia para a casa. Eu já estou velha e quero o descanso da casinha no quintal do meu filho. Ah! Mas dou para você também esse pote de melado. Pode comer com farinha. É só o que eu tenho para dar.

 

A velha pegou um pote de vidro cheio de melado e entregou ao Malasartes. E o amarelo agradeceu:

 

- Tá ótimo assim, vó! Obrigado!

 

A velha já ia saindo quando lembrou de uma coisa:

 

- Ah! Meu filho, só peço uma coisa: tem um homem aqui na região... um banqueiro... um sujeito avarento! Empresta dinheiro para esse povo tentar melhorar a terra. Mas a terra está seca e o dinheiro é pouco. Faltam as máquinas para trabalhar a terra e não dá jeito. E ele cobra juros altos até ficar com a terra dos pobres. E aí, ele vem com as máquinas dele e fica tudo bonito. O danado é doido para comprar minhas terras, mas quer pagar uma ninharia. Ele vive rondando por aí. Se ele quiser comprar, não vá vender barato.

- Pode deixar, vó.

 

A velha se despediu e foi embora. E o Malasartes ficou pensando o que ele faria com aquela casa. Vender seria uma boa ideia, mas não queria vender por pouco. Não só pelo pedido da velha, mas queria ganhar um bom dinheiro com aquilo. O dinheiro do amarelo estava curto. Ele só tinha um punhado de moedas. Mas quem iria pagar muito por uma casa como aquela? Aquilo não valia nada. Aliás tudo que o Pedro tinha não servia para muita coisa: umas moedas, um pote de melado, uma casa velha e uma árvore que não dava nada. De repente o amarelo teve uma ideia daquelas! Pegou o melado e passou nos galhos da árvore. Colou as moedas nos galhos e ficou sentado do lado da árvore esperando se alguém passava. O sol estava alto e o calor intenso. Não demorou muito e o Pedro viu um homem se aproximando. Vinha montado num cavalo, vestido num terno branco e com um chapéu de aba larga na cabeça.  Era um homem muito gordo que suava muito. O homem viu o Malasartes sentado do lado da árvore e perguntou com muita arrogância:

 

- Quem é você, amarelo? O que está fazendo aí?

 

O Pedro deu um sorriso e respondeu:

 

- Uma boa tarde pro senhor também! Mas o que é mesmo que o senhor deseja?

- O que você está fazendo aí?

- E quem é que deseja saber?

 

O homem desmontou do cavalo. Chegou perto da cerca de madeira e disse se achando muito importante:

 

- Eu sou o banqueiro dessa região. Sou dono da maioria das terras daqui. E quero saber o que você está fazendo aí?

- Ué! Essa casa é minha!

- Sua? E a velha que morava aí?

- Foi embora. Foi morar na casa do filho, lá na capital. E me deu a casa. Eu fiquei até com pena porque ela não sabe a preciosidade que perdeu...

 

O banqueiro deu uma risada.

 

- Preciosidade? Uma casa velha... uma terra seca... tentei comprar a casa dessa velha, mas ela não quis vender. A única coisa que essa terra dá é essa árvore aí que ninguém sabe pra que serve.

- Mas é dela mesmo que eu estou falando.

 

O sol estava muito quente e foi derretendo o melado. A primeira moeda que o amarelo colou no galho com o melado, se desprendeu e caiu no chão. O malandro correu e pegou a pratinha.

 

- Opa! Que já foi a primeira!

 

O homem gordo estranhou:

 

- O que é isso que você pegou?

- Nada – tentou disfarçar o Malasartes.

- Nada? Eu vi bem! Foi uma moeda e ela caiu dessa árvore!

- Imagina, seu doutor! Não foi isso, não...

- Eu vi, amarelo! A moeda caiu dessa árvore!

 

O Pedro se aproximou da cerca de madeira e disse baixo ao banqueiro:

 

- Foi isso mesmo, mas não conte a ninguém. Essa árvore que o senhor diz que não dá nada. Dá, sim! Essa árvore dá dinheiro!

 

O outro ficou espantado:

 

- Árvore que dá dinheiro? Isso é possível?

- Olha... eu sou um viajante. Conheço muita coisa desse mundão de meu Deus. Já vi dessas árvores, mas não aqui. Lá pras terras do oriente têm muito delas. O dinheiro dá que nem jabuticaba. Grudadinho no galho.

 

O banqueiro olhou bem para árvore e viu as moedinhas coladas nos galhos. Ficou de boca aberta.

 

- E não é que é mesmo!

 

O sujeito tentou pegar uma moeda, mas o Malasartes bateu na sua mão.

 

- Não! Não pode pegar enquanto não cair. Se o doutor tirar agora, antes de ficar maduro, não vai valer nada. Tem que esperar amadurecer, cair, limpar e usar como quiser.

 

O malandro limpou a moedinha que caiu para tirar o restante do melado. Depois entregou na mão do homem gordo que estava de boca aberta.

 

- E não é que é dinheiro mesmo!

- Legítimo – completou o amarelo.

 

O banqueiro bateu na cerca com força e gritou:

 

- Eu quero uma árvore dessa!

 

O Malasartes fez cara de espanto.

 

- O senhor quer? Ih... doutor... aqui por essas bandas é a primeira vez que eu vejo uma. Lá no oriente tem muita. Mas aqui... Nem sei como essa planta veio parar aqui. E, olha, essa terra seca é ideal para esse tipo de árvore. Ela custa a dar o dinheiro, mas quando começa a dar... não pára nunca mais.

 

O outro não se aguentava de vontade de possuir aquela árvore.

 

- Eu quero essa árvore pra mim! Ela tem que ser minha!

 

Foi aí que o Malasartes se zangou:

 

- Peraí! Essa árvore é minha! A velha me deu! Deu o terreno, a casa e a árvore. Isso tudo aqui me pertence!

- Venda tudo que eu compro! Pode botar preço!

 

O malandro amarelo se fez de rogado.

 

- Não sei... gostei daqui... O ar é agradável... Faz um pouco de calor, mas com o dinheiro que a árvore vai me dar eu posso mandar instalar uns ventiladores grandes. Vai ficar uma beleza!

 

O gordo insistia:

 

- Venda, rapaz! Pago bom preço!

- Não sei... eu gostei daqui... se bem, que eu tenho que ir lá pras bandas do Nordeste. Sou esperado lá e não sei se vou poder voltar.

 

O homem de terno branco não se continha.

 

- Então! Venda e siga o seu caminho! Faça negócio comigo!

 

O Malasartes coçou a cabeça, olhou para a árvore e depois olhou para o banqueiro. Coçou o queixo e falou:

 

- Tá bom! Vamos fazer negócio. Cadê o dinheiro?

- Está lá na minha casa. Vamos lá buscar.

- Mas é longe?

- Um pouco.

 

O Pedro se espreguiçou e disse:

 

- Ai! Tô tão cansado...

 

O outro suava. Não via a hora de possuir tal preciosidade e disse afobado:

 

- Vá no meu cavalo!

- No seu cavalo? E o senhor?

- Eu vou a pé! Vamos fazer negócio, homem!

 

O Malasartes aceitou. Montou no cavalo do banqueiro e eles foram para casa dele. No caminho, o homem gordo só imaginava as fortunas que ganharia com a tal árvore. Chegaram lá e o malandro amarelo recebeu uma boa quantia. Depois pediu licença e foi embora para nunca mais voltar. Dá árvore caíram as moedinhas que ainda estavam coladas com o melado e mais nenhum centavo.

 

Essa história acabou.

Mas outra vai começar!

Qual é a arte boa?

Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes.

Isto ninguém vai negar...

Quem souber conte outra.

Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

 

 

O MACACO E O OVO DO GALO

 

A onça e a raposa moravam juntas, mas não eram muito amigas. A malhada tinha sempre vontade de enganar a sua companheira de casa. A onça tinha um galo e a raposa uma galinha. Todos os dias no fim da tarde, elas prendiam o galo e a galinha embaixo de um cesto e só soltavam as aves de manhã bem cedo.

Certo dia, quando a raposa foi soltar a sua galinha, encontrou um ovo ainda quentinho. Ela pegou aquilo e foi mostrar para sua companheira. Vendo o ovo a onça saltou em cima dizendo:

 

- Olha só! O ovo do meu galo!

           

A raposa estranhou:

 

- Como ovo do seu galo? Quem pôs o ovo foi a minha galinha!

 

Mas a onça queria enganar a raposa:

 

- Como é que a senhora sabe? Como é que tem tanta certeza?

- Certeza do que, onça?

- Que esse ovo é da sua galinha?

 

A raposa estava cada vez mais espantada:

 

- Mas ovo só pode ser de galinha!

 

E a onça continuou:

 

- Isso a senhora diz! Mas não conhece esse meu galo! Ele sempre pôs ovos! É um galo especial!

- Nunca vi galo botar ovo, onça!

 

A onça cresceu pra cima da raposa:

 

- A senhora está me chamando de mentirosa?

 

Mas a raposa não baixou a guarda.

 

- Não estou chamando a senhora de mentirosa! Só disse que nunca vi galo botar ovo!

 

A onça deu uma risadinha de lado e continuou:

 

- Pois vamos perguntar por aí! A senhora vai viver que estou dizendo a verdade!

 

E saíram as duas. A onça com o ovo na mão e a raposa desconfiada. Encontraram o papagaio. O penoso quando viu as duas, pensou em fugir. Não queria conversa com aquelas duas, mas a onça foi mais rápido e puxou assunto:

 

- Olha lá, comadre raposa, o papagaio! Tudo mundo sabe que ele é um bicho inteligente que dá gosto de ver! Vamos perguntar pra ele!

 

A onça fez uma cara bem feroz e falou para o papagaio:

 

- Penoso, estamos com um problema! Você sabe que eu e a comadre raposa moramos juntas! Ela cria uma galinha e eu um galo bonito que bota ovo! Apareceu esse ovo no terreiro! Ela diz que é da galinha dela e eu tenho certeza que é do meu galo! O que o você diz?

 

A onça fez uma cara bem feia e mostrou o ovo para o outro. O papagaio tremendo por dentro respondeu:

           

- É... Vendo assim... Analisando bem... Pelo formato do ovo... Só pode ser de galo!

 

E a raposa espantada:

 

- Pelo formato?

 

E o papagaio tentou explicar:

 

- Todo mundo sabe que ovo de galo tem um formato diferente do ovo da galinha...

 

E o papagaio querendo se livrar daquela história encerrou o assunto:

 

- Bom... Já ajudei vocês... Agora... Vou cuidar da minha vida! Até mais!

 

E foi embora mais que depressa. A onça deu um risinho e debochou da outra:

 

- Não disse, comadre? E a senhora me chamando de mentirosa!

 

E a raposa:

 

- Não chamei ninguém de mentirosa! Mas esse negócio de formato de ovo parece conversa pra boi dormir...

 

E a onça completou:

 

- Conversa pra boi dormir, não é? A amiga não está acreditando! Vamos então perguntar para o boi! Vamos ver se ele vai dormir!

 

Nesse exato momento ia passando devagar um boi malhado com uma estrela na testa. A onça se chegou e foi falando:

 

- Amigo boi, não se assuste! Eu e a raposa estamos com um problema: moramos juntas! Ela cria uma galinha e eu um galo bonito que sempre botou ovo desde o dia que nasceu! Apareceu esse ovo no terreiro! Ela diz que é da galinha dela e eu tenho certeza que é do meu galo! O que o você diz?

 

A onça fez uma cara bem brava e mostrou o ovo para o outro. O boi assustado não sabia o que dizer. Começou a gaguejar e respondeu:

 

- É... Vendo assim... Analisando bem... Pela cor do ovo... Só pode ser de galo! Tem cor de ovo de galo!

 

E a raposa espantada:

 

- Pela cor? Mas é um ovo branco! O ovo de galinha também não é branco?

 

E o boi tentou explicar ainda meio tremendo:

 

- É que o branco do ovo galo... É diferente do branco do ovo da galinha! Todo mundo sabe disse... Bom... A conversa está boa, mas eu tenho que cuidar da vida...

 

O boi disse o que disse e saiu o mais rápido que pode. A onça estava cheia de si e a raposa não sabia o que dizer. Mas o macaco, que estava em cima de uma árvore acompanhando toda aquela conversa, se aproximou de mansinho. A onça com peito estufado ainda humilhava a raposa:

 

- Então a senhora, né? Não conhece as coisas da vida! Não sabe nada sobre ovo de galo! E ainda me chamando de mentirosa...

 

O macaco ficou olhando a conversa, a onça reparou e perguntou:

 

- Então, macaco, o que você acha desse desaforo da raposa?

 

O macaco arregalou os olhos:

 

- Desaforo? Que desaforo?

 

E a onça fez aquela cara enfezada e explicou:

 

- Você sabe que eu e a raposa moramos juntas! Ela cria uma galinha e eu um galo bonito que sempre botou ovo desde que saiu da casca! Apareceu esse ovo aqui no terreiro! Ela diz que é da galinha dela e eu tenho certeza que é do meu galo! O que o você diz?

 

A onça mostrou o ovo e fez uma cara bem ameaçadora. O macaco coçou a cabeça e respondeu:

 

- Tenho solução para o problema de vocês! Esperem aqui, só um pouquinho, que eu já volto para dar a resposta!

 

E o danado saiu dando saltos. A onça e a raposa esperaram muito. O dia já ia pela metade quando o macaco voltou. A onça já estava chateada:

 

- Por que demorou tanto, macaco? Foi tirar o pai da forca?

- Ih... onça! Fui longe! Fui buscar uma parteira que meu pai está com as dores do parto! Vai dar à luz aos meus irmãozinhos! Vai ter um monte de filhotinhos!

 

A onça deu urna gargalhada muito gostosa e perguntou:

 

- O seu pai? Macaco safado, desde quando o seu pai pode ter filhotes?

 

E o macaco respondeu:

           

- Desde o dia que galo põe ovo, né, dona onça?!

 

A onça ficou furiosa. A raposa pegou o seu ovo e foi embora de casa para nunca mais voltar.

E acabou a história.

 

Adaptação de Augusto Pessôa

In MACACADA

Editora Escrita fina

 

 

 

 

MALASARTES E O CORONEL SABIDO

 

Vindo de outras bandas, Malasartes chegou numa pequena cidade. E era uma cidade tão pequena que só tinha uma rua com casas de um lado e de outro. O Pedro reparou que no meio da única rua tinha uma porteira. Uma porteira que dividia a cidade no meio. E ainda um homem gordo sentado, numa cadeira de balanço, do lado da porteira. O Malasartes estranhou aquilo. Foi até uma venda para escutar as conversas do povo do lugar. E o povo estava revoltado. Um camarada indignado bateu com força no balcão da venda:

 

- É um absurdo! Colocar uma porteira no meio da cidade!

- É pra pagar pedágio. – explicou um outro mais calmo.

- E quem é esse coronel pra cobrar pedágio do povo? Quem ele pensa que é?

- Você diz isso porque o Coronel não está aqui!

 

O Malasartes se aproximou e quis saber mais sobre o assunto:

 

- Dá licença? Mas por que que ele cobra pedágio?

 

E o mais calmo respondeu:

 

- O coronel é um homem muito poderoso e rico. Aqui ninguém se fia com ele, não.  Ele diz que é o dono da cidade e pode cobrar pedágio. E pronto!

- E o pedágio é caro?

- É. Mais você só paga se não responder as perguntas dele.

- Como assim? – quis saber o Pedro. E o mais calmo continuou:

- Ele faz três perguntas. E se você responder certinho, não precisa pagar o pedágio. O coronel diz que faz isso por bondade. Quer que o povo fique mais instruído.

- E as perguntas são difíceis?

- Eita! Põe difícil nisso! Ninguém consegue responder as perguntas desse coronel. Ele é muito sabido!

- E como é que ele faz isso de cobrar pedágio? Ele é que toma conta?

- Ele mesmo! Fica na porteira sentado numa cadeira de balanço, com uma mesa do lado e uma caixa em cima cheia de dinheiro do pedágio.

 

Malasartes pensou logo em ganhar algum com aquilo e disse alto para todo mundo ouvir:

 

- Pois olhe, eu aposto com vocês, que eu vou responder as perguntas desse coronel, ganhar o dinheiro da caixa dele e ainda acabar com o pedágio!

 

Foi um alvoroço danado. Todo mundo quis apostar. O que mais animou o pessoal foi à proposta de acabar o pedágio. Ninguém aguentava mais aquilo. Tinha gente que não ia para casa há mais de um mês. Se um estranho conseguisse resolver, ótimo, sonharam alguns. E se não desse certo, o azar era dele, pensaram outros. O povo logo juntou o dinheiro e deixou na mão do dono da venda. Depois, aquele camarada mais calmo, perguntou como é que o Malasartes ia fazer aquilo. E o Pedro respondeu:

 

- Isso você vai ver na hora. Eu só preciso que me arrumem uma roupa de padre.

 

Arrumaram rapidamente uma roupa de padre. Malasartes colocou a batina, por cima de sua roupa e foi para a porteira. E o povo todo foi atrás. Quando o malandro chegou na porteira, viu o coronel gordo sentado na cadeira de balanço e aquela caixa cheia de dinheiro em cima da mesa. O coronel, quando viu o Malasartes vestido de padre, exclamou:

 

- Eita, que eu nunca vi um sacerdote tão amarelo e tão esfarrapado assim!

 

E o Pedro começou a falar com voz de padre:

 

- Boas tardes, meu filho! Que Deus esteja convosco!

- Boa tarde, padre! O que o senhor deseja?

- Desejo passar para o outro lado.  Continuar o caminho da rua.

- O senhor, pelo visto, é novo por essas bandas. Mas eu explico: nessa cidade, para passar para o outro lado, tem que pagar pedágio.

- Mas, meu filho, eu sou um padre.

 

E o coronel rosnou:

 

- E daí? Pode ser padre, bispo ou coroinha! Aqui só passa pagando pedágio! Mas... como sou um homem bondoso e prezo pela cultura desse povo, permito que qualquer um passe sem pagar. Desde que responda a três perguntas que eu fizer.

- E que perguntas são essas?

 

O povo todo se espichou para ouvir as perguntas. E o coronel começou:

 

- Primeira pergunta: onde é o meio do mundo?

 

O povo todo olhou para o Malasartes que estava tranquilo e respondeu:

 

- Mas essa é muito fácil. O meio do mundo é em qualquer lugar. Já que o mundo é redondo como uma bola. Qualquer lugar é o meio.

 

O coronel fez cara de espanto e o povo deu vivas. Mas o gordão metido a sabido se enfezou:

 

- Axe! Silêncio! Que eu não quero ouvir barulho! – e voltando-se para o Pedro - Essa o senhor respondeu, mas vamos a segunda pergunta: qual à distância entre o céu e a terra?

 

O povo todo olhou para o Malasartes que continuava tranquilo. O Pedro, vestido de padre, coçou a cabeça e perguntou ao coronel:

 

- Em qualquer medida?

- Na medida que o senhor quiser.

- Pois eu não quero metro, nem quilometro! Vou medir em virada de olho que é mais do meu agrado! E nessa medida a distância entre o céu e a terra é uma única virada de olho. Pra cima ou pra baixo. Fica ao gosto do freguês.

 

O coronel ficou de boca aberta. Não podia acreditar naquilo. Mas era homem teimoso e continuou:

 

- Estou vendo que o senhor padre é um homem muito inteligente. Foi o primeiro a chegar na terceira pergunta, mas dessa o senhor não escapa e lá vai ela...

 

O povo todo se espichou mais. Ficou na ponta do pé como se isso ajudasse a ouvir melhor. E o coronel foi falando:

 

- Nesse lugar antes tinha um lago. Um lago grande que a seca fez sumir. E eu quero saber do senhor o seguinte: quanta água cabia nesse lago?

 

O povo todo olhou apavorado para o Malasartes. E o amarelo, que parecia mais tranquilo ainda, perguntou ao coronel:

 

- Esse lago era muito grande?

- Muito, seu padre!

- Dava pra tomar banho?

- Com toda a certeza.

- Pois então, esse lago era do tamanho da caneca de meu finado pai. Meu pai tinha uma caneca tão grande... Mas tão grande... Que dava pra toda família tomar banho nela. E olha, que só de irmãos eu tinha pra mais de vinte. Fora primo, tio e avô. Pois é essa a resposta: cabia nesse lago tanta água quanto cabia na caneca de meu finado pai!

 

O coronel bateu na mesa com tanta força que o dinheiro chegou a pular junto com o povo todo. O homem, vermelho de raiva, esbravejou:

 

- Isso é resposta que se dê? Eu nunca vi essa caneca de seu pai!

- Acredito. Mas eu também nunca vi esse tal lago do senhor. Mas garanto que na caneca de meu pai cabia tanta água quanto no lago. E como sou um homem bondoso, igual ao senhor, permito que mande construir uma caneca tão grande quanto à do meu finado pai e coloque nela toda água que cabia no lago.

 

O coronel, sem saber o que responder e com a boca torta de raiva, abriu lentamente a porteira. O povo deu vivas e o Malasartes pediu silêncio:

 

- Ô gente! O coronel já não disse que era pra fazer silêncio! Que teimosia!

 

E voltando-se para o gordo coronel, falou assim:

 

- Desculpe a interferência desse povo que é muito ignorante, mas eu quero saber: acertei as perguntas?

- De certa forma. – rosnou o coronel. E o Pedro propôs:

- Olha, para o senhor não ficar chateado eu vou mostrar que sou um bondoso e generoso, igual ao senhor. Proponho uma aposta!

 

O coronel cerrou as sobrancelhas e perguntou:

 

- Como é isso?

- Uma aposta: se eu perder eu pago o triplo do pedágio. Mas se eu ganhar: o senhor me dá o dinheiro que tem nessa caixa e acaba de vez com esse pedágio. Topa?

 

O coronel desconfiado mexeu na caixa do dinheiro, olhou de banda para o Malasartes e perguntou:

 

- E que aposta é essa?

- Eu tenho que adivinhar o que o senhor está pensando e provar que o senhor está errado! Se eu acertar, eu ganho. Mas se eu errar, quem ganha é o senhor. Topa?

 

O coronel deu uma gargalhada mostrando todos os dentes, inclusive os de ouro, e respondeu:

 

- É claro que eu topo. Um padre amarelo e esfarrapado pode até adivinhar os meus pensamentos, mas nunca vai provar que eu estou errado. Pode tentar.

 

O povo todo ficou paralisado. O Malasartes fez um silêncio, coçou o queixo e apontou para o coronel dizendo:

 

- O senhor está pensando que eu sou um padre amarelo, esfarrapado e sabido, não é?

 

O coronel riu de lado.

 

- Essa é fácil! Mas agora prove que eu estou errado!

 

O Malasartes também riu de lado.

 

- Essa também é fácil, seu coronel: eu não sou padre. Não sou mesmo. Essa roupa eu peguei emprestada. O povo todo sabe disso.

 

O malandro disse isso e tirou a batina de padre ficando com sua roupa normal. O coronel, de boca aberta, esbugalhou os olhos. E o Malasartes perguntou:

 

- E então, seu coronel: ganhei a aposta?

 

O coronel bateu na mesa e levantou. Foi saindo espumando de raiva e esbravejando assim:

 

- Amarelo desgraçado! Essa é a pior raça que tem!

 

O povo todo começou a gritar. As pessoas derrubaram a porteira e depois fizeram a maior festa. O Malasartes juntou o dinheiro da caixa com o da aposta na venda e foi se embora viver novas aventuras.

 

Essa história acabou.

Mas outra vai começar!

Qual é a arte boa?

Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes.

Isto ninguém vai negar...

Quem souber conte outra.

Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

MALASARTES E O HOMEM ENGANADO DUAS VEZES

 

O Pedro Malasartes estava, para variar, com uma fome danada. Tinha feito uma farra daquelas e gastou todo o seu dinheiro. Ele ia caminhando, e a fome aumentando, quando fez a curva na estrada e viu uma plantação enorme! Tinha tudo que era árvore frutífera: goiabeira, mangueira, jaqueira, laranjeira e muito mais. Todas as árvores carregadas de frutas maduras. Mas a plantação estava cercada e na porteira tinha um homem muito forte com um porrete na mão. O camarada estava com uma cara enfezada. Uma expressão de quem não queria conversa. Devia ter sido muito roubado e estava lá tomando conta. O Malasartes percebeu logo que na conversa, com aquele homem, ele não conseguiria nada. Não tendo dinheiro para comprar uma fruta, começou a procurar alguma coisa que o ajudasse. O malandro olhou em volta, viu um grande saco de pano e teve uma ideia. Ele pegou o saco e encheu de pedra, areia e entulho. Depois puxou o saco até a estrada onde o homem pudesse vê-lo. Pulou em cima do saco como se tentasse conter o que tinha dentro e começou a gritar:

 

- Socorro! Acudam! Ajudem que ela quer escapar!

 

O homem forte, ouvindo aquilo, correu até o Malasartes.

 

- O foi que houve?

- Eu consegui prende-la! Ajude! Ela quer escapar!

- Quem foi que o senhor prendeu?

- A morte – disse o amarelo com cara de espantado

 

O outro nem acreditava.

 

- A morte?

 

E o Malasartes insistiu:

 

- Sim, a Morte! A famigerada... A caveira... Aquela que ninguém quer... A Morte! Ela estava andando decidida para aquela casinha ali.

 

E o Pedro apontou para uma casinha branca. E o homem forte ficou branco.

 

- Mas aquela é a minha casa!

 

E o malandro continuou:

 

- Pois ela andava decidida para lá. Ia com os passos certos para apanhar quem mora ali.

 

O homem do porrete chegou a falar fino.

 

- A morte ia me pegar?

 

E o Malasartes:

 

- Ah! Mas eu conheci a danada! Conheci aquela cara de caveira seca! Peguei este saco e prendi a peste. Mas a coisa ruim quer fugir!

- E o que a gente faz? – quis saber o outro.

- Eu sozinho não posso segurar. Sou muito fraquinho.

- Pois deixe que eu seguro! O senhor vai a minha casa apanhar uma corda pra gente amarrar essa bandida. – disse o sujeito largando o porrete e se atracado com o saco de pano.

 

O Malasartes levantou e aconselhou:

 

- Segure bem! Não deixe a famigerada escapar! Eu já volto com a corda!

 

O homem ficou segurando o saco e o amarelo foi comer as frutas da plantação. Comia uma e guardava duas na bolsa.  Passou um tempo e o homem forte percebeu que a Morte não fazia a menor força para sair. Ele pensou: “Será que a Morte morreu?” Com muito cuidado ele abriu o saco e viu: pedra, areia e entulho. Só não viu a morte. Olhou para o seu cercado e lá estava o Malasartes comendo suas frutas. O sujeito ficou furioso e gritou:   

 

- Desgraçado! Eu vou acabar contigo! Você agora vai se encontrar com a Morte!

 

O camarada saiu correndo pra cima do amarelo. O malandro quando viu aquele homem espumando, gritou:

 

- Pernas, pra que te quero?

 

O amarelo saiu correndo. E foi uma correria danada. O Pedro corria muito, mas o homem era forte e corria mais ainda impulsionado pela raiva de ter sido enganado. O Malasartes percebeu que mais cedo ou mais tarde seria apanhado. Tratou te elaborar um novo golpe. Estava nisso quando chegou num descampado. No meio do lugar tinha um muro velho e descascado. Parecia ser a única coisa que sobrara de uma grande construção. Não tinha mais nada em volta daquele descampado seco. O Pedro viu que, em cima do muro, tinha um ninho de passarinhos e teve uma ideia. Pôs as duas mãos no muro e ficou como se estivesse segurando a construção. O fortão, quando chegou no descampado, deu com o amarelo fazendo aquilo. Foi até ele e perguntou:

 

- Enlouqueceu, seu malandro? Ficou com medo das pancadas e endoidou?

 

E o Malasartes:

 

- Por favor, não me bata agora! Esse muro vai cair!

- E daí?

- Daí que aquele ninho também vai cair e vai matar os passarinhos que ainda nem saíram da casca do ovo! Tenho que salvar esses bichinhos. Depois, se o senhor quiser, pode me bater.

 

O grandalhão viu o ninho e ficou com pena. Ele gostava muito de passarinhos.

 

- E agora? – disse ele – O que a gente faz?

- Eu não sei. – respondeu o Malasartes.

- Eu vou tirar o ninho dali enquanto você segura o muro.

 

O sujeito foi pegar o ninho, mas o amarelo deu um grito:

 

- Não! Não faça isso!

- Por quê?

- Se o senhor mexer no ninho, a passarinha pode não querer mais cuidar deles. Sabe como esses bichos são. Cheios de mania!

 

O fortão lembrou que, quando era criança, mexeu num ninho de passarinho e a mãe deles não voltou mais. Sem saber o que fazer perguntou ao Pedro:

 

- O que a gente faz então?

- Temos que escorar o muro. O senhor que é mais forte segura aqui e eu vou arrumar madeira para escorar.

 

O homem já ia colocando as mãos no muro quando deu um grito:

 

- Não! Você quer é me enganar de novo! Diz que vai arrumar madeira, mas vai é sumir no mundo. Pode deixar que eu mesmo vou pegar essa madeira!

 

O grandalhão procurou alguma coisa por ali, mas no descampado não tinha nada. Então ele disse ao amarelo:

 

- Eu vou a minha casa buscar umas madeiras! Não saia daí!

- Pode ir tranquilo, moço! Não quero que esse muro caia e mate esses bichinhos!

 

O homem foi correndo para casa. Pegou umas madeiras grossas e voltou correndo. As madeiras eram pesadas e ele não pode correr tão depressa. Quando chegou no descampado, o muro continuava em pé e nem sombra do Malasartes. No ninho, os passarinhos quebraram as cascas e começaram a piar.

 

Essa história acabou.

Mas outra vai começar!

Qual é a arte boa?

Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes.

Isto ninguém vai negar...

Quem souber conte outra.

Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

MALASARTES E O URUBU MÁGICO

 

O Pedro Malasartes caminhava por uma estrada de terra batida quando viu um urubu. Na beira da estrada, o bicho estava com a asa quebrada. Parado, quietinho, com cara de triste. O Pedro ficou com pena. Cuidou da asa do bicho e depois colocou o urubu em seu ombro. A ave preta aceitou o novo poleiro e o Malasartes continuou o seu caminho. Daí a pouco, o amarelo começou a sentir fome e ele não tinha nada pra comer, nem dinheiro pra comprar. Viu um camarada que trabalhava num roçado e se aproximou:

 

- Tarde, amigo!

 

O camarada quando viu o Malasartes com o urubu no ombro tomou um susto:

 

- Que é isso? Onde você vai com esse bicho?

 

E o Malasartes na maior calma:

 

- Esse urubu? Encontrei o bichinho com a asa quebrada e eu tô cuidando dele.

- Você é um bom homem! Mas o que deseja?

- Meu amigo, será que não tem aí um pedaço de pão que dê pra matar minha fome?

 

E o outro respondeu:

 

- Ih... desculpe, amigo! Acabei de comer minha marmita. Num sobrou nem um grãozinho de arroz.

 

E o camarada mostrou a latinha limpinha. E o Malasartes perguntou:

 

- O amigo sabe onde eu posso arrumar um prato de comida?

- Aqui por essas bandas... É difícil... Eu até trago a minha marmita.

 

O Malasartes viu uma casa mais adiante e continuou a conversa apontando para o lugar:

 

- E naquela casa? Será que alguém me arrumava um pratinho?

 

O outro deu uma risadinha:

 

- Ali é que o amigo não consegue nada!

- Por quê?

- Mora ali uma mulher muito da gulosa. Ela passa o dia todo comendo e não dá nada pra ninguém. Nem para o marido!

- Nem para o marido? Como é isso?

- Ela inventou que só sabe fazer uma sopinha aguada e é isso que o pobre come todo dia. Enquanto o infeliz trabalha, ela come do bom e do melhor. Quando ele chega em casa, ela diz que está sem fome e dá para ele a tal sopa aguada.

- E como é que o amigo sabe disso?

- As notícias correm. Todo mundo sabe disso aqui. Só o infeliz é que não sabe. E ela ainda fica comendo de tocaia, numa janela, pra “mode” de vê se o marido chega de surpresa. Mas nem isso o coitado faz. O camarada é que nem um relógio. Volta pra casa todo dia na hora certinha.

- E onde que esse pobre trabalha?

- Num roçado mais adiante. Trabalha de sol a sol. E a mulher fica em casa só comendo. O amigo pode até tentar, mas acho que ali não vai conseguir nem uma migalha de pão.

 

O Malasartes coçou a cabeça e disse para o outro:

 

- Eu vou tentar assim mesmo.

 

O Malasartes se despediu e fui até a casa com o urubu no seu ombro. De longe, ele viu a mulher gulosa e gorda de tocaia, na janela, devorando uma grande coxa de galinha assada. O Pedro bateu na porta e a gulosa veio abrir de mau humor.

 

- O que você quer?

- A senhora não teria um pratinho de comida para dar a um pobre?

- Eu vou dar a minha boa comida pra um amarelo sujo que nem você? E ainda por cima com esse urubu no ombro! Sai daqui mau agouro!

 

A mulher disse isso e bateu a porta na cara do Malasartes. O Pedro ficou pensando e teve uma ideia. Foi procurar o marido da gulosa lá no seu roçado. E encontrou o homem magrinho que dava pena de ver. O malandro se aproximou:

 

- Boa tarde, amigo!

- Tarde! – respondeu o outro sem parar de trabalhar. E o Malasartes continuou:

- O senhor mora naquela casa assim... assim... que tem uma senhora?

- Sou eu mesmo. É minha mulher.

 

O homem disse isso, virou-se para o Malasartes e tomou um susto:

 

- Que é isso?

 

O Malasartes se fez de desentendido:

 

- O que?

- Esse urubu no seu ombro?

- Ah, isso... É meu amigo urubu. E olha, é por causa dele que eu vim lhe falar. O senhor pode não acreditar, mas esse urubu é mágico. E ele mandou uma mensagem, aqui pra minha cabeça, que a sua mulher está tendo uma aflição.

 

O homem ficou assustado:

 

- Mas como é isso, meu amigo?

 

Malasartes tranquilizou o outro:

 

- Não se preocupe. O urubu me disse que é só uma afliçãozinha à toa. Coisa de mulher. Sabe como é? Não carece preocupação. Se o amigo perguntar pra sua mulher, ela não deve nem saber porque está com isso. Mas é bom o senhor ir lá dar uma olhada, porque... Sabe como é?... Mulher gosta dessas coisas. Desses agrados.

 

O sujeito ficou meio preocupado:

 

- Bom... ainda bem... vou seguir seu conselho. Vou terminar aqui esse serviço e vou até lá dar uma olhada.

 

E o Malasartes se despediu:

 

- Então faça isso... Fique com Deus, meu amigo. Até uma próxima!

- Até!

 

O Pedro saiu e deixou o homem coçando a cabeça. O malandro voltou pra casa da gulosa e ficou escondido vendo o que a mulher ia fazer. Não demorou muito, o marido apareceu na estrada. E vinha esbaforido. A mulher gulosa deu um salto e começou esconder toda a comida dentro de um armário grande que tinha na sala. E o Malasartes vendo tudo. Ela escondeu garrafa de vinho, bolo, galinha assada, carne ensopada, arroz branco e um monte de comidas. Mas fez isso tão depressa que ficou botando os bofes pela boca. Quando o marido entrou em casa encontrou a mulher sem ar.

 

- Mulher! O que houve?

 

A gulosa não conseguia nem falar e o marido continuou:

 

- Bem que um sujeito me avisou que você estava assim com essa aflição em casa. Quando for assim, mulher, tem que mandar me chamar.

 

A mulher arregalou o olho, mas o marido disse:

 

- Mas pode ficar tranquila, o sujeito disse que você nem sabe porque está sentindo isso.

 

A gorda gulosa respirou aliviada, mas foi por pouco tempo. Foi ela dar uma suspirada que bateram na porta. Era o Malasartes com o urubu no ombro.

 

- Desculpe incomodar, mas fiquei preocupado e vim ver se estava tudo bem.

 

A mulher ficou branca quando viu o sorriso amarelo do malandro, mas o marido ficou muito satisfeito.

 

- Olha aí, mulher! Esse foi o sujeito que eu lhe falei! E esse urubu dele é mágico! Não é uma beleza?

 

A gulosa nem falava. Só sacudia a cabeça afirmativamente. E o homem perguntou ao Pedro:

 

- Como é que eu posso agradecer tamanha bondade?

 

O Malasartes aumentou o sorriso.

 

- Bom se o amigo tiver um pratinho de comida para acabar com minha fome, eu ficarei muito grato.

- Com certeza! Mas olha, aqui a comida é bem simples. A gente só come uma sopinha magra. Minha mulher não sabe fazer outra coisa e eu respeito isso. Que jeito, né?

 

O Malasartes arreganhou o sorriso.

 

- Mas sendo assim, eu é que quero lhe dar um presente. Como o amigo sabe, meu urubu é mágico. Eu nem gosto de fazer isso pra não cansar o bichinho. Mas acho que, depois desse susto, nós merecemos uma boa refeição, né?

 

O Malasartes disse isso, passou a mão pelo urubu que estava no seu ombro e disse bem alto:

 

- Urubu, quero que apareça muita comida dentro daquele armário grande ali!

 

O malandro disse isso e apontou para o armário. Por coincidência, o urubu fez um barulho esquisito e o Malasartes falou para o homem:

 

- Pode abrir aquele armário que está cheio de comida ali!

 

A gulosa não estava nem mais branca. Estava verde. E o marido deu uma risada.

 

- Que é isso, meu amigo! Aqui em casa só tem sopinha. Não tem muita comida.

- Pois abra o armário – sugeriu o Pedro.

 

O marido fez menção de abrir, mas a mulher deu um salto e abriu o armário. O marido tomou um susto e a gulosa fingiu que se espantava. Era muita comida. O marido nem acreditava.

 

- Eita! Que é verdade! Mas esse urubu é maravilhoso! Vamos comer meu amigo!

 

A mulher teve que servir a comida para o marido e para o Malasartes. Até o urubu comeu. A gulosa comeu só um pouquinho, olhando com ódio para o Malasartes pelo canto do olho. Terminada a comilança, o marido falou para o Pedro:

 

- É, meu amigo, tinha até esquecido como é comer bem assim!

- Mas o senhor não come bem porque não quer!

- Como assim? – quis saber o homem.

 

O Malasartes olhou sorrindo para a gulosa. A mulher arregalou os olhos achando que o malandro ia contar toda a história, mas o Pedro perguntou ao homem:

 

- O amigo tem mãe?

- Tenho, sim senhor!

- E ela cozinha bem?

- Cozinha como ninguém! Uma comida que é uma delícia!

- Pois convide sua mãe para morar com vocês e ensinar sua mulher a cozinhar! Aposto que sua esposa não vai se incomodar. Vai? – perguntou o amarelo para a gulosa.

 

A mulher respondeu entre dentes:

 

- Não. Vai ser ótimo!

 

O homem ficou feliz:

 

- Que boa ideia! Não tinha pensando nisso. E minha mãe pode ficar tomando conta de minha mulher para ela não ter mais aflição. O que o amigo acha?

- Mas que ideia boa demais. Nem tinha pensado nisso! – respondeu o amarelo.

 

E o homem, meio sem jeito, falou:

 

- Olha, o amigo me ajudou muito, mas eu quero pedir mais um favor: sei que isso é coisa que não se pede, mas... venda esse urubu pra mim! Pago o preço que o senhor pedir. Esse bicho é maravilhoso!

 

A gulosa não falava nada, mas por dentro estava explodindo de raiva. O Malasartes não queria vender o bicho.

 

- Mas eu gosto tanto do meu bichinho...

- Venda! – insistiu o homem – Pago bom preço por ele.

 

O homem insistiu tanto... ofereceu uma quantia tão boa... que não teve jeito: o amarelo vendeu o bicho. Mas antes falou assim:

 

- Eu vendo, mas o amigo tem que jurar que vai cuidar bem do meu bichinho.

- Pode ficar tranquilo! Minha mulher vai dar comida na boca do urubu todos os dias. E não vai ser sopa aguada. Vai ser a comida gostosa que minha mãe vai ensinara fazer. Pode ficar sossegado.

 

O Malasartes deu um sorriso:

 

- Agora eu fico tranquilo. E vejo que sua mulher está tão feliz que nem tem palavras para agradecer.

 

A mulher ficou com tanta raiva que desatou a chorar. E o marido completou:

 

- Desculpe, meu amigo. Minha mulher é muito emotiva. É a felicidade!

- Eu imagino! Que a felicidade reine nessa casa!

 

O Pedro Malasartes disse isso, se despediu e depois foi embora com a barriga e o bolso cheios.

E o urubu nunca mais fez nenhuma mágica, mas foi bem tratado até o último dos seus dias.

 

Essa história acabou.

Mas outra vai começar!

Qual é a arte boa?

Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes.

Isto ninguém vai negar...

Quem souber conte outra.

Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

 

 

MALASARTES NO CÉU

 

Contam, lá em Gato Pelado, uma cidade perdida no interior desse Brasil, que o Pedro Malasartes foi para o céu. Mas não se preocupe, minha gente! O Malasartes não morreu.  Ele só queria ver como eram as coisas por lá. Estava cansado de tanto aprontar por aqui e resolveu ir pro céu! Queria ver como eram as coisas por lá! Queria saber se todo mundo era bom mesmo lá no céu ou era só enganação. E também queria palestrar com seus santos de devoção. Principalmente com Jesus e com a Virgem Maria. Mas o pobre teve que andar muito pra chegar no céu. Porque o céu é longe. E bota longe nisso. Foi uma canseira... uma verdadeira ladainha.... uma romaria... uma procissão sem fim.... Mas enfim, ele chegou no céu. E diante daquele portão celeste, todo dourado, Malasartes suspirou:

 

- Nossa! Como eu andei para chegar aqui! Pois é, minha gente, eu tava cansado de tanto aprontar lá na terra. Resolvi vim conhecer o céu. Mas eu só quero dar uma olhada, bater um papo com Santo Antonio, com São João e com Santo Expedito. E quero muito conhecer a mãe de todos. A nossa Virgem Maria! A minha Mãezinha de coração! Mas como é que eu vou entrar?

 

O portão dourado começou a abrir lentamente e surgiu São Pedro com suas barbas brancas, sua túnica azul e carregando um enorme molho de chaves. Alto. Muito alto. Com mais de dois metros de altura. Malasartes ficou encantado:

 

- Mas olha quem está na porta, pra me receber... É São Pedro! O chaveiro do céu! Vixe, como ele é grande! – tirou o chapéu e cumprimentou o santo – Tarde, São Pedro!

- Boa tarde, meu filho!

- Desculpe, eu lhe falar, mas o senhor é muito grande!

- Que bobagem! Somos todos grandes aos olhos de Deus!

- Não sei quanto ao olho de Deus, mas pro meu olho o senhor está grande pra caramba!

- Mas o que o filho deseja aqui? Acho que ainda não chegou sua hora!

 

O Malasartes coçou a cabeça:

 

- Eu sei, São Pedro! Mas é que eu estava tão cansado de tanto aprontar lá na Terra. Queria dar uma olhada como é que são as coisas aí no céu! Podia até conversar com alguns santos, conhecer a Virgem Maria e quem sabe palestra com o homem... o próprio Jesus! Se não for pedir de mais!

- Mas não chegou sua hora, meu filho! Aqui só entra quem está “na hora”. E quem entra no céu não pode mais sair!

 

O Pedro Malasartes arregalou o olho:

 

- Não pode sair?

- Não!

- Ninguém?

- Ninguém!

 

O Malasartes deu um sorriso de lado e disse:

 

- Mas Jesus não foi pro céu e voltou no terceiro dia?

 

São Pedro deu uma pigarreada e sem graça respondeu:

 

- Isso é lá com Jesus! Ele manda por aqui!

- Nossa, até no céu os poderosos têm regalia!

 

O santo não gostou e com voz de trovão deu uma bronca no malandro:

 

- Pedro Malasartes, não fale isso!

 

O amarelo ficou espantado:

 

- O senhor sabe meu nome?

- Aqui no céu nos sabemos de tudo!

- Ah é, então me diga: o quê eu estou pensando agora?

- O quê você está pensando? Deixa ver...

 

São Pedro apertou os olhos e fez uma careta com força como se quisesse ler os pensamentos do matuto. Malasartes deu um sorriso:

 

- O senhor não está conseguindo, mas eu vou lhe ajudar! Eu sei o que o senhor está pensando. Está pensando que eu quero enganar o senhor, não é?

- É.

- Mas eu não quero não. Eu só quero entrar no céu. Viu, o senhor não sabe de tudo! Então como o senhor não sabe de tudo, podia me deixar entrar um pouquinho...

- Não pode, Malasartes! Quem entra aqui não sai! E só entra quando está “na hora”!

- Deixa, São Pedro! O senhor é meu xará!

- Só pode entrar quando estiver “na hora”!

- E se não estiver “na hora”? Não pode ficar aí dentro?

 

São Pedro explicou que se não podia nem entrar, também não podia ficar lá dentro. O Malasartes coçou a cabeça e teve uma ideia. Começou a se esfregar como se tentasse se aquecer e disse:

 

- São Pedro está uma ventania aqui! O senhor está sentindo?

 

São Pedro olhou para um lado, para o outro e respondeu:

 

- Eu não estou sentindo nada.

- O senhor aí de cima não pode sentir nada. Está fazendo até barulho, escuta só.

 

O malandro começou a fazer o barulho do vento: VUUUUUUUUUUU! VUUUUUU! E ficou se balançando como se o vento quisesse carregar ele. E São Pedro não entendia nada:

 

- Mas eu não estou sentindo nada!

 

O matuto foi fazendo mais barulho e se balançando mais ainda. Até que deu um grito bem alto:

 

- O vento está muito forte! Vai levar o meu chapéu! VUUUUU! VUUUUUU!

 

O Malasartes pegou seu chapéu, jogou lá dentro do céu e começou a gritar:

 

- Ai, meu chapéu! Meu chapéu novinho! Tenho que pegar ele!

 

O amarelo tentou entrar no céu. São Pedro quis impedir, mas o malandro passou por entre as pernas do santo. O chaveiro do céu gritou furioso:

 

- Você não pode ficar aqui dentro!

 

Malasartes deu um sorriso maroto e foi entrando:

 

- Ah, São Pedro, agora que eu já estou aqui vou conversar um pouco com os meus santos queridos.

 

Quando viu o santo casamenteiro, o Malasartes correu atrás dele:

 

- Santo Antonio! Ô, Santo Antonio!

 

São Pedro foi atrás, reclamando. E começou um corre-corre danado no céu. O Malasartes falou com Santo Expedito, com São João, com o Arcanjo Gabriel. Palestrou até com a Nossa Senhora! Atrás dele ia São Pedro bufando e reclamando. Até que o Malasartes parou para descansar. O santo conseguiu alcançar o malandro e lhe deu um puxão de orelhas:

 

- Mas isso é coisa que se faça! Ficar correndo pelo céu!

- Mas eu queria pegar o autógrafo dos meus santos queridos! – mostrou orgulhoso - Peguei de Santo Antonio... São Marcos... Santo Expedito... e esse é o mais importante... É o autógrafo da Virgem Maria!

 

O porteiro do céu bufava de raiva:

 

- Isso aqui não é show para você ficar pegando autógrafo!

- Ih, o senhor está muito nervoso! É melhor eu ir embora!

- Ir embora? Como? Você não pode sair!

- Mas o senhor não disse que eu não podia ficar?

- Mas já que entrou não pode sair!

- Agora vá entender! O senhor ficou o tempo todo atrás de mim dizendo que eu não podia ficar! Agora eu não posso sair?

- Mas você entrou no céu...

- Entrei no céu pra pegar o meu chapéu!

- Pois não devia ter entrado! E agora não vai sair de jeito nenhum!

- Mas não chegou “a minha hora”!

 

São Pedro cada vez mais furioso ficou enorme e esbravejou:

 

- Não interessa! Agora que entrou não vai mais sair! Quem manda aqui sou eu!

 

Malasartes percebeu que tinha que arrumar um jeito de enganar de novo o santo e teve uma idéia. Baixou os olhos e encolheu os ombros murmurando:

 

- Está certo! O senhor é quem manda aqui, então eu vou ficar!

 

São Pedro ficou todo orgulhoso e deu um sorriso. E o Malasartes continuou:

 

- E quando perguntarem eu vou dizer que foi o senhor que mandou!

 

O chaveiro do céu já estava inchado de tanto orgulho. Foi aí que o Malasartes sapecou:

 

- Eu só quero ver a cara do Todo Poderoso... Do Messias... de Jesus de Nazaré quando der comigo por aqui. Um sujeito como eu... Que nem está “na hora”! Mas pode deixar que eu digo que foi o senhor que mandou. Eu acho que ele vai compreender!

 

O santo arregalou o olho e o matuto continuou:

 

- Aposto que Jesus vai compreender e não vai ficar nem um pouco chateado! Ainda mais sabendo que é ordem sua. Afinal, quem manda aqui é o senhor, né?

 

São Pedro, muito sem graça, pigarreou e perguntou:

 

- Ah... Você não vai dizer isso para Jesus?

- Mas é claro que... VOU!

 

São Pedro viu que aquilo não ia dar certo e disse para o malandro ir embora. Mas o danado ainda quis gozar da cara do santo. Deu um sorriso maroto e foi dizendo:

 

- Ah, não, agora eu quero ficar! Quero ver a cara de Jesus quando ele souber quem manda aqui de verdade!

 

São Pedro foi perdendo a paciência e disse entre dentes:

 

- Malasartes vai embora...

- Se o senhor mandar...

 

São Pedro perdeu a paciência deu um grito e empurrou o amarelo para fora do céu. Os portões celestes se fecharam nas costas do malandro e ele foi embora feliz da vida.

E não é que o Malasartes enganou até o santo! São Pedro ficou furioso, mas depois esqueceu. E o Pedro Malasartes voltou pra Terra e continuou suas estripulias por aqui! Diz que ele anda pelo mundo todo só aprontando, mas isso já é outra história!

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro - EDITORA ROCCO

 

 

MALASARTES SONHANDO COM ANJOS

 

Já era noite e o Pedro, depois de gastar todo o seu dinheiro, andava por uma estrada. Estava cansado e com muita fome. A barriga roncava. E num ronco alto. Até que passou por ele uma charrete. O amarelo falou ao condutor, parando o veículo:

 

- Boa noite! O amigo mora por aqui?

- Moro, sim senhor! – respondeu o outro.

 

E o Pedro continuou:

 

- O amigo sabe se por aqui tem algum povoado, uma estalagem ou uma venda?

 

O homem da charrete, antes de responder, olhou para o amarelo com muita pena e falou assim:

 

- Tem, meu amigo! Tem uma estalagem logo virando a curva, mas acho que o amigo não vai se fiar ali. É uma estalagem com muito conforto. Metida a besta. O dono é um sujeito cheio de artimanha. Gosta um bocado de dinheiro. Principalmente dos outros. Ele é muito sabido... Inventa umas histórias... Conta umas lorotas... E engana todo mundo! Obriga as pessoas a pagar uma fortuna pela hospedagem. Quem não tem dinheiro, tem que ficar trabalhando na estalagem para pagar a divida. E o sujeito adora enganar os trouxas!

 

O condutor da charrete respirou fundo e continuou:

 

- O amigo... Peço perdão... Mas não parece nem provido de dinheiro, nem de esperteza. Acho melhor seguir seu caminho e procurar um lugar mais tranquilo.

 

E o amarelo quis saber:

 

- E como é que ele engana as pessoas?

- Ele inventa que tem uns sonhos... E diz que com eles consegue coisas maravilhosas! E cobra alto por elas! Muito alto mesmo! E tem uma lábia! Leva todo mundo na conversa.

 

O Pedro ficou curioso de conhecer o tal estalajadeiro, fez uma cara de pobre coitado para o homem da charrete e pediu:

 

- Meu amigo, eu não aguento mais! Estou muito cansado e com muita fome! Vou me entregar a minha própria sorte! O senhor se incomoda de me dar uma carona até a estalagem?

 

O outro encolheu os ombros:

 

- Se o amigo assim quer... Pode subir!

 

O Malasartes subiu depressa e a charrete seguiu pela estrada. Logo na virada, o Pedro viu a estalagem. E era realmente uma construção bonita. Muita enfeitada, com um telhado vermelho e paredes branquinhas. Tinha uma placa que anunciava: “Estalagem dos Sonhos”. O amarelo saltou da charrete, agradeceu ao homem e entrou no estabelecimento por uma porta de vai e vem. Dentro tinha um bar com mesinhas. O lugar estava cheio e quando o amarelo entrou, todos olharam para ele. Começaram a cochichar e dar risadinhas. Deviam estar pensando que era mais um que o dono da estalagem iria enganar. O Pedro foi até o balcão e o estalajadeiro veio atender. Era um homem bonito. Com a cara redonda e rosada. Os cabelos eram encaracolados e louros. Parecia um anjo. A face da bondade.

 

- O que o amigo deseja? – perguntou o homem com um sorriso e cara de boas vindas.

 

Malasartes coçou a cabeça, olhou para todos em volta e respondeu:

 

- Preciso comer alguma coisa e de uma cama para descansar. É possível?

- Mas claro que é possível! Vou mandar servir nossa melhor comida. Depois o amigo vai dormir na mais confortável cama da estalagem.

 

O Malasartes agradeceu e foi sentar numa das mesas. O povo todo do lugar não tirava o olho dele. Riam e cochichavam. A comida veio e era realmente uma beleza. Tudo muito bem servido e apetitoso. Quando terminou de comer, Malasartes deu uma espreguiçada e o dono da estalagem se aproximou:

 

- Ficou satisfeito, amigo?

- Muito! Nunca comi uma comida tão gostosa!

- Eu sabia! É uma receita especial! – o sujeito respirou fundo e baixou a voz – Olha, o amigo pode não acreditar, mas quem me ensinou essa receita foi um anjo!

 

Malasartes coçou a cabeça e pensou: “Agora é que começa a lorota!”

O Pedro olhou para o homem, fez uma cara de espanto e perguntou alto:

 

- Um anjo?

 

E o outro respondeu muito sério, fazendo um gesto para o Malasartes baixar a voz:

 

- É! Um anjo! Eu sonho com anjos e eles me dizem coisas!

- Como assim? – quis saber o amarelo.

- Eles mostram onde eu posso encontrar coisas maravilhosas e me ensinam receitas. Tudo que têm lá no céu, eles me contam.

- É mesmo?

- Claro! O amigo não acredita?

- Acredito! Já vi cada coisa nessas minhas viagens! O amigo não pode nem imaginar! Viajo tanto e estou tão cansado... Foi muito bom comer essa comida receitada por anjos! Mas agora, o que eu preciso mesmo, é de um lugar para descansar os ossos...

 

O homem louro deu uma risadinha e todo mundo que estava no lugar esticou os ouvidos. O homem esfregou as mãos e disse ao amarelo:

 

- Pois o senhor vai ter o melhor lugar desse mundo para descansar. Uma cama maravilhosa e com um detalhe especial: um travesseiro forrado com penas!

- Pena de que? – quis saber o Pedro – Pena de ganso?

- Penas de anjo! – respondeu o dono da estalagem.

 

O Malasartes fez novo espanto:

 

- O senhor depenou os anjos?

 

O homem louro riu.

 

- Não, meu amigo! É que nos meus sonhos, os anjos descem do céu por uma escada de ouro e contam para mim maravilhas!

 

O Pedro continuou no espanto.

 

- Escada de ouro? E como eles arrumam tanto ouro para fazer uma escada que vem do céu? Eles é que constroem a escada?

 

O outro ficou espantado com a pergunta, mas não se fez de rogado:

 

- Não sei. Isso eles nunca me contaram.

 

E o Malasartes o tranquilizou:

 

- Ah... Deve ser segredo deles!

- Isso mesmo! Eles descem pela escada de ouro e vem conversar comigo lá no meu quarto. Enquanto falam, batem com força as asas e as penas vão caindo. E os meus sonhos são tão reais que, quando acordo, o meu quarto está coberto de penas. Penas de anjo. Eu cato aquelas pluminhas branquinhas e fabrico esses travesseiros.

 

O Pedro olhou bem nos olhos do sujeito. Deu um suspiro profundo e falou:

 

- Mas que beleza, né?

- O amigo não acredita?

 

O povo que estava na estalagem deu uma risadinha. Parecia que aquela pergunta era uma espécie de bordão do dono da estalagem. Mas o Malasartes não se incomodou.

 

- E por que não havia de acreditar? Um homem com essa sua cara... Parece que veio do céu junto com os anjos. Como é que eu não vou acreditar numa história tão bonita e tão verdadeira?

- E ainda tem mais!

- Pois continue! – disse o amarelo querendo ver onde isso ia chegar.

- Esses travesseiros são mágicos!

- Mágicos?

- É. Quem deita a cabeça neles tem o melhor sono do mundo! Recupera todas as forças e pode depois enfrentar qualquer coisa!

 

O Malasartes deu um pulo de felicidade e falou:

 

- Pois é exatamente isso que eu estou precisando! Amanhã tenho uma tarefa grande para enfrentar!

 

O povo todo do lugar, não se aguentou, deu uma grande gargalhada. E o Pedro perguntou ao dono da estalagem:

 

- Eles estão rindo de que?

- De nada, meu amigo, essa gente tem o riso frouxo!

- Bom... Se é assim... Eu prefiro ir dormir. Minha cama já está pronta com o travesseiro mágico?

- Prontinha! Está só esperando o seu descanso!

- Eu só tenho uma pergunta para fazer: quanto isso vai me custar? – quis saber o amarelo.

- Ah... Amanhã a gente conversa sobre isso! – desconversou o homem louro.

Malasartes deu de ombros e foi para o quarto. O dono da estalagem esfregou as mãos com satisfação.

 

- Amanhã vou ter mais um empregado na casa!

 

O povo todo do lugar deu uma nova gargalhada.

O Pedro entrou no quarto. Era um quarto muito jeitoso com uma janelinha que dava para o quintal da estalagem. Era uma janela baixa. Apesar da noite alta, o amarelo viu que o quintal era coberto de pedrinhas. Ao fundo uma grande pedreira. Não tinha como fugir dali. Devia ser mais uma artimanha do estalajadeiro para prender aqueles que ele enganava. O Malasartes se espreguiçou e foi deitar. A cama era realmente muito confortável. O amarelo ficou curioso, pensando em quanto o dono da estalagem iria cobrar por aquela estadia. Estava nisso quando... dormiu. O sono dos justos.

No dia seguinte, já com o sol alto, o Pedro levantou. Tomou um banho, se vestiu e saiu do quarto para tomar o seu café da manhã. Encontrou o bar cheio. Todas as pessoas, que estavam ontem à noite no lugar, já estavam lá. O dono da estalagem estava atrás do balcão com um sorriso largo. O Malasartes se aproximou e falou apontado para as pessoas:

 

- Bom dia! Desculpe perguntar: esse povo não dorme, não? Parece que ninguém saiu daqui!

 

O homem louro deu uma gargalhada.

 

- Eles gostam daqui! – mudando de assunto, emendou – Dormiu bem?

- Como um rei! Tive um sonho maravilhoso! O amigo nem vai acreditar!

 

Atrás do balcão, o homem que parecia satisfeito disse:

 

- Foi o travesseiro! Eu não falei?

- Mas eu não duvidava disso. Bendito travesseiro com asa de anjo! – respondeu o amarelo.

 

O estalajadeiro fez uma cara triste.

 

- É... Mas tem uma coisa chata.

- O que é? – quis saber o Pedro.

- O travesseiro mágico só pode ser usado uma única vez. Depois de usado ele perde a magia e vira um travesseiro comum.

- Ah... Mas que tristeza! Tive um sonho tão gostoso que estava pensando em até levar um travesseiro comigo! – e o Malasartes mudou de assunto – Tem café da manhã?

- Claro!

- É receita dos anjos?

- E podia ser de outro jeito?

- Então pode me servir, por favor?

 

O Pedro sentou numa mesinha e todo mundo ficou olhando. O estalajadeiro serviu um café digno de um príncipe. O Malasartes comeu até se fartar. Depois foi até o balcão onde estava o dono da estalagem, sendo o tempo todo seguido pelos olhares do pessoal que estava no bar. Chegou no balcão, bateu de leve e disse ao homem louro:

 

- Bom... Já comi, já dormi e só uma coisa me prende aqui: quanto lhe devo pela comida e dormida?

 

O povo, que estava por lá, espichou o ouvido e foi aí que o homem louro mudou a cara. Ficou sério e falou assim:

 

- Espera aí! Não é só uma “comida e uma dormida”! É uma comida receitada por anjos e uma dormida em travesseiro mágico. Um travesseiro com asa de anjo que o amigo estragou!

 

Malasartes fez espanto:

 

- Estraguei?

- Se ele perdeu a mágica porque foi usado pelo senhor... Foi o senhor que estragou!

- E não é que é verdade! Que pena! Mas quanto vai ficar isso?

 

O povo todo se espichou mais para ouvir a quantia. Teve gente que quase caiu da cadeira. E o dono da estalagem fez seus cálculos:

 

- Bom... Contando a comida... Mais noite de sono... E o café da manhã. Tudo de primeira! Receitado por anjos! O amigo me deve...  Seis milhões!

 

Houve um alarido entre aqueles que estavam no bar. O dono da estalagem nunca tinha cobrado tão alto. O Malasartes arregalou o olho e não disse nada, mas o homem louro perguntou:

 

- Que foi? Achou caro? Não tem o dinheiro para pagar?

 

E o amarelo respondeu:

 

- Seis milhão! – ele respirou fundo e continuou – Meu amigo, tô impressionado como o senhor é barateiro! O senhor não valoriza o seu trabalho! Um serviço de primeira!

 

O povo todo ficou de boca aberta com a resposta do Malasartes, mas o estalajadeiro perguntou:

 

- E o senhor vai me pagar?

- Claro! O senhor tem dúvida?

 

Houve um silêncio e o caipira malandro continuou:

 

- Eu vou lá no meu quarto pegar minhas coisas e já lhe trago o pagamento.

 

O Malasartes saiu. Ficou tudo mundo no maior alvoroço para saber como aquele amarelo iria pagar aquela dívida. O dono da estalagem estava tranquilo. Sabia que por ali o Pedro não podia fugir por causa da pedreira. Outros já tinham tentado e não conseguiram. Lá no quarto, o Malasartes pegou suas coisas e abriu a janela. Sem pular, esticou o braço para o quintal e pegou um punhado de pedrinhas do chão que colocou no bolso. E voltou para o bar. O povo todo esperava ansioso. O homem louro, quando viu o Malasartes, perguntou:

 

- Cadê o meu pagamento?

- Tá aqui!

 

Disse o amarelo tirando do bolso seis pedrinhas e colocando em cima do balcão. Uma do lado da outra. O povo todo ficou espantado e o homem louro perdeu a cara de anjo. Ficou bravo e gritou:

 

- Isso são seis milhões? Isso são seis pedrinhas vagabundas!

 

Aí, o Malasartes é que ficou meio bravo:

 

- Não diga isso! O senhor não sabe o que está falando, mas pode deixar que eu vou explicar!

 

O malandro respirou fundo e baixou a voz:

 

- Como o senhor, essa noite, eu também sonhei com os anjos! Deve ser por causa do travesseiro mágico! Eles vieram até o meu quarto e me contaram um segredo mais do que secreto! Um segredo que eles esconderam até do senhor! Um segredo importantíssimo! Eles me ensinaram a fazer a escada de ouro que vai até o céu!

- Como é que é? – perguntou o outro sem entender.

- É como eu estou lhe dizendo: sonhei com os anjos e eles me ensinaram a fazer a escada de ouro. E sabe como faz? Com essa pedrinha! O amigo pega uma delas e de manhã coloca pra tomar chuva. Numa tarde deixa tomar sol. E numa noite deixa tomar sereno. Depois planta a pedrinha. Enquanto planta reza um Pai-nosso e duas Ave-Marias. Depois faz uma cruz em cima riscando a terra e... Em dois dias nasce uma escada de ouro. E a escada fica uma beleza! Toda de ouro! E os anjos ainda me disseram que cada escada custa um milhão! Como eu estou lhe dando seis pedrinhas... tão aí: seis milhão!

 

O homem louro e o povo todo só olhavam para as pedrinhas. Não falavam nada. E o Malasartes completou com a mesma entonação do dono da estalagem:

 

- O que foi? O amigo não acredita?

 

O estalajadeiro ficou vermelho de ódio. Mas o povo todo deu uma gargalhada daquelas. Era bem feito. Um homem, que vivia de enganar os outros, foi finalmente enganado. Mas o dono da estalagem, ainda não se dando por vencido, falou:

 

- Se isso for verdade... Esse seu sonho aí... O seu quarto deve estar cheio de pena de anjo! Eu vou lá catar...

 

Mas o amarelo interrompeu o homem louro.

 

- Ih, meu amigo, não tem, não! Não tem umazinha sequer! Os anjos me disseram que São Pedro, o chaveiro do céu, não está satisfeito com essa história de fazer travesseiro com asa de anjo. O Porteiro Celeste disse que era até pecado! Acho que é por isso que os anjos não lhe contaram o segredo da escada. Mas contaram para mim! Os bichinhos ficaram com as asinhas paradas. Nem mexiam! Não perderam uma peninha! É melhor o amigo parar com esse negócio de fazer travesseiro com asa de anjo! É pecado!

 

O povo todo deu uma gargalhada ainda maior. E o Pedro ainda disse:

 

- Como gostei muito do seu serviço, vou lhe dar mais duas pedrinhas formando assim... Oito milhão! É um agrado! Uma gorjeta! Pelos serviços prestados!

 

O homem bufava e o amarelo aconselhou:

 

- Não perca essas pedrinhas! Elas valem muito!

 

O caipira bateu de leve no chapéu e se despediu:

 

- Obrigado pela estadia e... Uma boa tarde, amigo!

 

O malandro disse isso e foi embora. O povo todo deu vivas pela esperteza do amarelo. O dono da estalagem, sem poder fazer nada, espumava de raiva. E o Pedro Malasartes continuou sua viagem.

 

 

Essa história acabou. 

Mas outra vai começar!         

Qual é a arte boa?

Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes.

Isso ninguém vai negar...

Quem souber conte outra.

Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

 

 

 

MALASARTES E A SOPA DE PEDRA

 

Diz que era um camarada chamado Pedro. Pedro Malasartes. Que andava por umas terras que ele não conhecia, até que parou numa birosca. Ficou reparando na conversa de dois compadres. Dizia um compadre ao outro:

 

- Aquela velha é terrível!

- Aquilo é sovina que Deus me livre e guarde!

- Não dá bom dia pra não gastar a língua!

- Pior. Ela não dá nem adeus. Porque balança a mão e ela pode perder os dedos!

 

Malasartes ficou prestando atenção e quis saber mais sobre a velha. E os dois compadres só não a chamaram de anjo:

 

- É uma sovina! Mão de vaca!

 

O Pedro coçou a cabeça e disse:

 

- Pois olhe, que eu vou fazer essa velha me dar de comer.

 

Os dois compadres riram a valer e disseram ao mesmo tempo:

 

- Pois essa eu pago pra ver!

- Então está feita a aposta!

 

Disse o Malasartes já perguntando onde morava a velha. Os compadres ensinaram que era ali perto. O Pedro foi e pediu que os dois compadres ficassem espiando. A casa era grande e antiga. Toda quebrada e remendada. Com a velha na janela, tomando conta da vida dos outros. Ao lado da casa tinha um riacho. Malasartes foi ao riacho e pegou sua panela. E a velha reparando. Lavou a panela e encheu de água. E a velha reparando. O Pedro começou a procurar uma coisa. Pegava uma pedra olhava e jogava fora. Pegava outra e guardava. Assim, juntou seis pedras. E a velha reparando. Lavou as pedras e colocou-as na panela com a água. Acendeu um foguinho, botou a panela em cima e ficou mexendo. A velha de onde estava coçou a cabeça:

 

- Que diabo aquele homem tá fazendo?

 

A velha saiu da janela, foi se aproximando... Se aproximando, até que...

 

- Tarde, amigo.

- Tarde...

- Se o amigo não se “incomodá”, podia me “dizê” o que é que tá fazendo?

- Tô cozinhando!

 

A velha olhou dentro da panela.

 

- Mas é pedra que tem aí dentro!

- E é. Eu tô fazendo uma sopa!

- Sopa de pedra? Nunca vi disso!

- A senhora nunca comeu sopa de pedra? Olha, não sabe o que está perdendo.

- E é bom?

- Se é bom? Aprendi a fazer a sopa com minha finada mãezinha. Ela fazia pra nós, quando nós “era” criança. Dona... O gosto... Olha, não dá nem pra falar. É maravilhoso. Chega eu tô com água na boca só de pensa que eu vou “comê”. Ai, meu Deus!

 

A velha começou a sentir uma águinha na sua boca. E o Malasartes continuou:

 

- Se bem, que essa não vai ser... Aquela... Porque falta uns temperinhos. Mas vai tá boa também.

 

A velha já estava com a boca cheia d'água.

 

- Não seja por isso. Eu arranjo tempero.

 

A velha foi em casa e voltou com salsa, cebolinha, cebola picada. Tudo que era tempero.

 

- Agora sim. Se bem que falta uns tomatinhos, mas...

- Não seja por isso. Quantos tomate?

- Quatro, dos grandes, cortados em rodela.

 

A velha foi para casa e trouxe os tomates.

 

- E agora? Falta muito pra ficar pronto?

- Falta. Se tivesse um macarrão pra ajudar no cozimento, mas a gente tem paciência e espera...

- Não seja por isso.

 

A velha foi em casa e trouxe um saco de macarrão. O Malasartes atiçou mais o fogo para ajudar no cozimento.

 

- Ai, dona, vendo essa sopa me deu uma saudade da minha finada mãezinha. Ela adorava essa sopa. Com tocinho de fumero e umas carninhas magras pra “complementá”, ela chegava a lamber os beiços. Mas essa vai fazer lembrar dela também...

- Não seja por isso.

 

A velha foi em casa e trouxe o toucinho e as carnes. A mulher lambendo os beiços pediu:

 

- Quando ficar pronto, o senhor me dá um pouquinho pra eu experimentar?

- Claro! Mas a senhora arruma uns pratinhos, porque nós dois não vamos comê nessa panela.

 

A velha foi em casa e trouxe dois pratos fundos. Malasartes colocou um pouquinho no prato da velha e encheu o seu. Os dois comeram. Quando terminaram o Malasartes perguntou:

 

- Gostou?

- Gostei. Mas e as pedras?

- As pedras? As pedras a gente joga fora! Eu não sou louco de comer pedra!

 

A velha ficou com raiva e xingou muito. O Malasartes saiu dali com a barriga cheia de comida e foi à birosca encher seu bolso com o dinheiro da aposta.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

 

HISTÓRIA DE PASSARINHO

 

Outra história do Malasartes

Agora eu contarei.

Essa eu ouvi lá longe.

Em Bom Jesus Del Rei.

Pois acredite, minha gente,

O Malasartes por lá andou.

E quando chegou na cidade,

Ele assim falou: 

 

- Depois de enganar os fazendeiros safados!

Gastei meu dinheiro. Estou sem um trocado.

Vim parar nessa terra pra “mode” consegui.

Um dinheirinho fácil pra poder me divertir.

Mas essa estrada não tem uma criatura se quer!

Por aqui não passa bicho, homem ou mulher.

 

O Malasartes não repara

Num montinho a sua frente.

Um montinho mal-cheiroso

Que espanta toda gente.

O malandro quase pisa

Nesse monte fedorento.

Quando reparou na coisa

Veio-lhe um pensamento:

 

- Mas olhe que eu estou enganado dessa minha afirmação!

Passou por aqui, com certeza, um grande porcalhão!

Se bicho, homem ou mulher não posso afirmar.

Mas a prova da passagem aqui deixou ficar.

Deve ter comido, em outro lugar,

Um farnel gostoso, bom de saborear.

Descomeu aqui, no meio da estrada,

Deixando essa porqueira. Coisa mal acabada.

Mas uma ideia me veio desse cocô da estrada.

Vou ganhar um dinheirinho pra gastar com a mulherada.

Deve passar por aqui doutor, bispo e fazendeiro.

Gente boa de enganar e que tem muito dinheiro.

Vou ficar por aqui só a esperar.

Não demora muito alguém vai passar.

 

O que é que Malasartes

Agora vai aprontar?

Dessa vez eu acho

Ele vai se estrepar.

Cobriu com seu chapéu

O fedorento montinho.

E ficou segurando as abas

Sentado e sozinho.

Até que surge na estrada

Um moço garboso.

Montado em seu cavalo

Todo limpo e cheiroso.

Era moço muito prosa.

Era besta que só vendo.

Vestido de importante

Ia assim dizendo:

 

- Sou Moço Doutor. Letrado na capital!

Sou muito inteligente, esperto, coisa e tal.

Aqui nessa terra a burrice é geral.

Só tem bobalhão. Só tem capial.

Pois olhe lá! Eu não estou falando.

Sentado na estrada, o chapéu segurando.

Que fará esse bobo sentado sozinho?

Fica na estrada atrapalhando o caminho.

 

O moço se aproximou

E Malasartes olhou de banda.

O doutor foi logo falando

Dizendo quem é que manda:

 

- Ei, você aí, sentado sozinho.

Que está fazendo? Saia do caminho!

 

Malasartes, muito esperto, se fez de bobalhão.

E a conversa foi por aí. Tomou esse rumo então:

 

- Desculpe atrapalhar, seu Moço Doutor.

Tenho aqui uma joia. Coisa que é um primor!

 

- Esse chapéu velho, sujo e encardido.

Isso é primor aonde?  Isso é coisa de bandido!

 

- Não falo do chapéu.  Falo do que tem dentro.

Um passarinho lindo. Um verdadeiro talento!

 

- Pois levante o chapéu e mostre o bichinho.

Quero ver o talento desse passarinho!

 

- Se o chapéu levantar ele vai voar.

Sem o lindo passarinho eu vou ficar!

 

- Então ponha o bichinho gaiola adentro.

Pra gente apreciar belezura e talento!

 

- Mas, seu moço doutor, gaiola não tenho, não.

Só tenho esse chapéu sujo e lambão.

 

- Pois, então, vá comprar. Vá comprar agora

Uma boa gaiola pra essa ave canora!

 

- Se eu pudesse, doutor, bem que ia comprar.

Mas não tenho dinheiro. Não tenho onde arranjar.

 

- Pois, se esse é o problema, eu lhe dou o dinheiro.

Quero ver o passarinho cantar bem faceiro.

 

- Seu Moço Doutor, isso pode ficar caro.

É coisa especial. Um passarinho raro.

O bichinho não fica em gaiola qualquer.

Tem que ser da boa. A melhor que tiver.

 

- Pois estou mandando. Chega de zoada.

Quero a melhor gaiola. A mais enfeitada

Bonita e grande. Com poleiro dourado.

Pro lindo passarinho. Soltar seu trinado!

 

- Se o doutor assim quer. Assim feito será.

Mas segure o chapéu pro pássaro não voar.

 

Não é que Malasartes

Enrolou o Moço Doutor

Tanta esperteza é arte.

É coisa de professor!

O Doutor Gabola

Do cavalo desmontou.

Sentou naquele chão

E o chapéu segurou.

Agora vamos saber

Que outra enrolação.

Fará Pedro Malasarte

Para o Doutor Bobão!

 

- O Doutor segure bem. Vou numa carreira só!

Mas devo demorar. A venda é longe que dá dó.

Indo de pé a pé a estrada fica comprida.

Se tivesse outro jeito de fazer essa corrida!

 

- Vá no meu cavalo. Veloz e ligeiro.

Aqui nesse bolso você pegue o dinheiro.

Anda logo, matuto, deixa de enrolação.

Quero ver o bichinho soprar uma canção.

Vai depressa, matuto, deixa de moleza.

Quero ver o bichinho cantar que é uma beleza

 

Malasartes pegou o dinheiro

E no cavalo montou.

Sumiu na estrada

E só poeira deixou.

O moço doutor,

Ainda se achando esperto,

Disse bem alto

Quando não viu ninguém por perto:

 

- Agora, que se foi o bobalhão capial

Vou pegar o passarinho pra cantar no meu quintal!

 

Assim disse o Doutor

Oh, Doutor bobinho!

Enfiando a mão no chapéu

Pra pegar o passarinho.

Mas teve uma decepção

Ficou só no lamento!

A mão ficou lambrecada

De montinho fedorento.

O Malasartes foi embora

Sumiu no seu caminho.

E o Doutor ficou sem dinheiro

Sem cavalo e passarinho.

 

Essa história acabou, mas outra vai começar!          

Qual é a arte boa? Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes. Isso ninguém vai negar...

Quem souber conte outra. Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

O SAPO COM MEDO D´ÁGUA

 

Diz que era um menino muito levado. Mais muito levado mesmo. O menino era uma verdadeira peste. Vivia aprontando.

 Um dia, a mãe dele estava arrumando a casa e o menino só aprontando. Até que ela não aguentou:

 

- Meu filho, sai! Vai brincar lá fora! Tenho tanta coisa para arrumar! Sai! Vai lá pra fora!

 

O menino saiu, mas saiu querendo fazer uma maldade. A casa dele ficava na beira de um grande lago. O menino ficou andando por ali procurando alguma coisa para aprontar. Até que ele viu um sapo descansando bem na beira do lago. Era um sapo grande e gordo. O menino correu e pegou aquele bicho. Ficou com ele entre as mãos e disse:

 

- Sapo feio! Sapo horroroso! Eu vou fazer uma maldade contigo, sapo medonho!

 

E o pobre do bicho ficou pensando num jeito de se livrar daquilo. E o garoto continuava:

 

- O que eu vou fazer, sapo? O que eu vou fazer?

 

Até que ele teve uma ideia:

 

- Já sei! Já sei, sapo feio! Sapo horroroso! Eu vou te furar todo com um espinho!

 

 E o pobre do sapo desesperado não sabia como se livrar daquilo:

 

- Ai, meu Deus, o que eu faço? O que eu faço?

 

E o sapo também teve uma ideia:

 

- Já sei!

 

O bicho olhou bem na cara do menino, começou a rir enquanto dizia:

 

- Vai me furar com espinho? HAHAHAHAHAHAHA! Que delícia! Vou ficar todo furadinho! Que maravilha! HAHAHAHAHAHAHAHA!

 

O menino não gostou:

 

- Esse sapo gosta de ser furado! Assim não tem graça... Tenho que pensar em outra coisa... Já sei! Eu vou enterrar você, sapo feio! Sapo medonho! Vou enterrar você todinho!

 

O sapo olhou para o menino e começou a rir:

 

- Vai me enterrar? HAHAHAHAHAHAHA! Que delícia! Que delícia! A terra caindo em cima de mim! HAHAHAHAHAHAHA! Adoro! Adoro!

 

O menino ficou chateado:

 

- Esse sapo gosta de ser enterrado! Assim não tem graça! Tenho que pensar em outra coisa...  Já sei! Eu vou queimar você, sapo feio! Vou queimar você todo, sapo horroroso!

 

O sapo olhou para o menino e começou a rir mais uma vez:

 

- Vai me queimar? HAHAHAHAHAHAHA! Que delícia! Adoro! O fogo queimando minha pele! HAHAHAHAHAHAHA! Muito bom! Adoro!

 

O menino ficou mais chateado:

 

- Mas esse sapo gosta de tudo! Assim não dá! Tenho que pensar em uma coisa bem horrível!

 

E o garoto olhou para o lago enorme e teve uma ideia:

 

- Já sei, sapo feio! Vou jogar você no lago, sapo horroroso!

 

O sapo olhou para o menino com cara de desespero e começou a implorar:

 

- Não! Por favor! No lago não! Pelo amor de Deus! No lago não!

 

O menino ficou feliz:

 

- Ah! Sapo danado! Vou jogar você no lago! Eu vou jogar!

 

O garoto esticou bem o braço e jogou o sapo com toda força.  E o bicho foi rodando e voando para o lago. Caiu bem no meio e foi lá no fundo. Depois subiu, ficou bem na superfície, olhou para o menino e deu uma gargalhada:

 

- HAHAHAHAHAHAHAHA! Você me jogou no lago! HAHAHAHAHAHAHAHA! Você me jogou no lago!

 

O sapo pode ser feio, medonho e horroroso, mas burro ele não é. E acabou a história.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

 

 

QUEM É O MAIS ESPERTO?

A onça era muito metida e dizia ser muito esperta. A mais esperta. Ela convenceu todos os animais da floresta que, só ela e mais ninguém, tinha o direito de ter o título de animal mais esperto do mundo. O macaco, que sempre teve essa fama, quis acabar com essa história. Muito matreiro, ele convenceu a pintada a comprarem um pote de mel juntos. Com a iguaria nas mãos, resolveram guardá-la no buraco de uma árvore. E o macaco falou:

 

- Bom, amiga onça, vamos descansar e depois saborear essa delícia!

 

Os dois foram se deitar. Quando a grande onça já dormia a sono solto, o macaco se levantou e correu ao oco da árvore. Comeu toda a sua parte do mel e voltou para se deitar. Quando ele chegou, a onça abriu os olhos e perguntou:

 

- Onde você foi?

- Amiga, você não imagina! – disse o espertalhão – Sonhei que fui convidado para ir a uma festa de aniversário! E o sonho era tão real que eu levantei e foi correndo para a festa!

- E você encontrou a festa? - quis saber a onça.

- Que nada! Mas eu sei o nome do aniversariante! O menino chama: “A-minha-parte”! Não é estranho?

- Muito!

- Mas é coisa de sonho! Vamos dormir que é melhor!

 

Então eles se deitaram e voltaram a dormir. Em pouco tempo o macaco se levantou de novo e correu ao oco da árvore. Comeu um pedaço, da parte da onça, e voltou para se deitar. Quando ele chegou, a pintada abriu os olhos novamente e perguntou:

 

- Você saiu de novo? Pra onde você foi?

- Amiga, tive o sonho de novo! – respondeu o macaco – Fui convidado para ir a outra festa! E o sonho, igual ao outro, era tão real que eu levantei e foi correndo para a festança!

- E dessa vez você encontrou? - quis saber a onça.

- Que nada! Mas, como da outra vez, eu também descobri o nome do aniversariante! O menino chama: “Foi-um-pedaço”! Não é estranho?

- Muito!

- Mas é coisa de sonho! Vamos dormir que é melhor!

 

Então eles se deitaram e voltaram a dormir. Em pouco tempo, o macaco levantou-se mais uma vez e correu ao oco da árvore. Comeu quase todo o mel do pote deixando só um pouquinho. Tirou esse restinho, guardou em outro lugar e deixou o pote limpo. O espertalhão voltou correndo para se deitar. Quando ele chegou, a onça abriu mais uma vez os olhos e perguntou:

 

- Você saiu de novo? Pra onde você foi dessa vez? Sonhou de novo?

- Não aguento mais esses sonhos que me atormentam! – continuou o macaco – Sonhei de novo que fui convidado para ir a outra festa! E o sonho, igual aos outros, era tão real que eu levantei e foi correndo para o festejo!

- Mas dessa vez você encontrou, não é?

- Que nada! Mas, como das outras vezes, eu também descobri o nome do aniversariante! É o nome mais estranho de todos! O menino chama: “Só-um-restinho”! Não é esquisito?

- Muito!

- Mas só pode ser coisa de sonho! Vamos dormir que é melhor!

 

Então eles se deitaram e voltaram a dormir. Dessa vez, os dois dormiram a sono solto. Quando acordaram, os dois foram até o oco da árvore para comer o mel. Quando lá chegaram encontraram o pote vazio. Sem uma gotinha de mel. A onça ficou espantada:

 

- O que aconteceu com nosso mel?

 

O macaco, fingindo indignação, começou a acusar a outra de comer o mel. A onça não sabia o que dizer para tentar se defender, mas a macaco foi definitivo:

 

- Eu quero acreditar na senhora, mas só tem um jeito da gente descobrir a verdade! A senhora vai se deitar no sol quente!

- Mas como isso vai provar que eu não comi o mel?

- Ah... O sol é um grande juiz, amiga onça! Ele vai esquentar a sua pança. E se o mel estiver lá dentro vai sair! Se, no final de um tempo, a sua boca e seus bigodes estiverem sujos de mel foi a senhora que comeu! Se estiver tudo limpo, teremos que procurar o bandido! A amiga aceita?

 

A onça, que tinha a certeza que não tinha comido o mel, aceitou imediatamente. Os dois foram para um descampado. O sol estava a pino, a pintada se deitou e o macaco disse:

 

- A amiga vai dormir pra gente ter a certeza que não foi você! E pra não termos nenhuma dúvida, eu também vou deitar, para a senhora não ter dúvida que não fui eu que roubei!

 

O sol estava muito gostoso. Não demorou muito para a onça cair num sono profundo. Com muito cuidado, o macaco foi até o lugar onde tinha guardado o restinho de mel. Voltou e lambuzou os bigodes e a boca da onça. Depois deitou e ficou esperando.

Passou o tempo, a onça abriu os olhos e viu a macaco com uma cara zangada. A pintada lambeu os beiços e sentiu o gosto do mel que lambuzava todo o seu focinho. E a macaco continuou fingindo estar indignado:

 

- A senhora não tem vergonha de comer todo o mel? Como pode fazer isso com um amigo? E agora fiquei sem meu mel! Isso é um absurdo! Isso não está certo!

 

A onça, sem entender nada, ficou muito envergonhada. Comprou um novo pote de mel e deu para o “amigo”. E o macaco mostrou quem realmente merecia a fama de esperto.

E acabou a história

 

Adaptação Augusto Pessôa

A BIBLIOTECA DE MALASARTES

 

Diz que o Pedro Malasartes estava morando numa pequena cidade. Ele, que era um grande viajante, resolveu ficar naquele lugarejo por um tempo e... Foi ficando. O povo todo do lugar já conhecia a sua fama. O Malasartes já estava se cansando daquilo e pensando em ir embora dali. Num dia de muita chuva, pois São Pedro resolveu fazer uma grande lavagem no céu, Malasartes estava numa birosca tomando sua garapa e pensando em realmente tomar um rumo na estrada. Quando entrou no estabelecimento um rico coronel. A birosca estava cheia de gente, mas o coronel deu de cara com o Malasartes. Foi até a mesa onde o Pedro estava sentado, bateu na mesa, encheu os peitos e falou:

 

- Então, você que é o Pedro Malasartes?

 

Malasartes levantou o olho e respondeu:

 

- Sou eu, sim senhor!

 

O coronel fez uma cara feia e perguntou:

 

- Você é que engana todo mundo? Que é o rei da mentira?

- Que é isso, coronel. Quem sou eu...

- O povo todo fala isso. Diz que essa é sua fama!

- Esse povo fala demais, seu coronel! Não vá atrás disso não!

 

O coronel se enfezou. Bateu de novo na mesa com a força de um trovão como da chuva que caia lá fora. Bateu e disse:

 

- Se o povo fala deve ter alguma verdade. A voz do povo é a voz de Deus.

- Se o senhor está dizendo...

- Pois então eu quero ver você contar uma mentira agora! E quero ver se alguém daqui vai acreditar!

 

As pessoas que estavam na birosca foram se aproximando para ver onde isso ia dar. O Malasartes levantou devagar, olhou o coronel por baixo dos olhos e disse:

 

- Não vai ser possível, seu coronel.

- Como não! Você não é o rei da mentira? O rei da enganação?

- Seu coronel olhe bem para mim. O senhor acha que eu, um amarelo sem eira nem beira, sem instrução... Um camarada que não pode nem com ele mesmo...  O senhor acha que alguém vai acreditar numa mentira contada por mim? O senhor acha que eu tenho capacidade de fazer isso sozinho?

- Eu concordo com você! Acho meio difícil mesmo. Mas o povo diz que essa é sua fama.

- É verdade, mas eu não faço isso sozinho.

- Como assim?

- Eu preciso de ajuda.

- Ajuda de quem?

- Não é de quem! É do quê!

 

O povo todo, que estava em volta, espichou o ouvido para não perder uma palavra. O coronel arregalou o olho e perguntou:

 

- Do quê? Que história é essa, cabra?

- Eu leio essas mentiras nos meus livros da Mentira!

- Livros da Mentira?

- Uma coleção em quatro volumes!

- Quatro volumes para contar mentira?

- Uma mentira bem contada é mais difícil que uma verdade mal contada, né?!

 

O coronel amansou, mas quis saber:

 

- Isso é verdade? Mas onde estão esses livros?

- Estão lá na minha palhoça. Na minha biblioteca.

- E você tem uma biblioteca, amarelo?

- Tenho. São poucos livros, mas sem esses livros não dá para contar mentira...

 

O coronel insistiu:

 

- Então, faça lá uma enganação para gente vê se enrola alguém aqui da birosca!

- Coronel, o senhor não entendeu. Eu sou um pobre coitado. Sem os livros não vai dar jeito...

- Tem livro da enrolação?

- Uma coleção em dois volumes!

- Em dois volumes?

- Enrolar é mais fácil. Esse povo é muito “abestaiado”, coronel. Qualquer coisinha eles já estão se enrolando. Mas sem os livros que chance eu tenho.

 

O coronel ficou curioso:

 

- E esses livros são bons?

- São uma beleza, coronel! Encadernados com capa dura. As ilustrações são uma formosura. Ensinam direitinho.

 

O coronel estava cada vez mais curioso. A chuva caia forte lá fora.

 

- E onde estão esses livros?

- Lá na minha palhoça. Sem eles eu não sirvo pra nada.

- Vá pegar esses livros.

- Nessa chuva, coronel. Magrinho do jeito que eu sou. Posso pegar uma doença. Uma constipação. Posso até morrer.

- Eu lhe empresto meu casaco de couro e meu chapéu. – disse o coronel já tirando um bonito casaco e seu chapéu de vaqueiro e entregando a Malasartes.

 

O Pedro pegou aquilo e ficou contente, mas disse:

 

- Que beleza de casaco. E o chapéu é uma formosura. Mas a minha palhoça é tão longe e eu estou a pé. Vai molhar suas coisas todas, vai demorar tanto para eu voltar.

- Vá no meu cavalo. É um alazão branco que está bem aí na porta.

- No seu cavalo! Mas vai ser uma honra.

- Ande logo, amarelo!

 

O Malasartes fez um gesto com a mão, chamando o coronel para perto, e falou baixinho:

 

- Coronel, eu não tenho como sair daqui.

- E por quê?

- A minha conta aqui na birosca está alta e eu não tenho dinheiro, aqui comigo, para pagar. Se eu sair, com essa fama que esse povo diz que eu tenho, o dono da birosca vai achar que eu estou querendo enganar ele.

- E como é que você pretendia pagar isso?

- Com serviço. Ia lavar um chão, lavar a louça, limpar as coisas...

 

O coronel se aprumou e disse bem alto, para todo mundo ouvir, apontando para o Malasartes:

 

- A conta desse camarada eu pago!

 

Depois, olhou para o Pedro e apontou a porta com a cabeça:

 

- Agora vá logo, amarelo! Eu estou doido para ver esses livros.

 

O Malasartes encolheu os ombros:

 

- Se o coronel assim quer... Assim feito será!

 

O Pedro Malasartes foi embora com o chapéu, o casaco de couro e o alazão do coronel. E nunca mais voltou.

O coronel teve que pagar a conta e diz que ele está esperando até hoje. O pessoal quando passa por ele, não deixa de dar um risinho, lembrando da biblioteca do Malasartes.

 

Essa história acabou,

Mas outra vai começar!         

Qual é a arte boa? Qual é a arte má?

Que Pedro é Malasartes. Isso ninguém vai negar..

Quem souber conte outra. Pode continuar.

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

MALASARTES E A PANELA MÁGICA

 

O Pedro Malasartes ficou sem dinheiro depois de uma farra danada. Restou só o suficiente para comprar uma panela usada e bem velha. E na primeira viagem que fez, sentindo uma fome terrível, ele decidiu usar a panela, lá no meio da estrada mesmo. Com uns gravetos secos, o amarelo fez uma fogueira. Tirou uma batata e um toucinho de dentro da sua bolsa. Encheu sua panela com água, que pegou numa cachoeira, e começou a cozinhar a comida. Quando o mirrado almoço estava quase pronto, o Pedro percebeu  que um comboio se aproximava. Era um comboio enorme com uma carga imensa. O caipira teve uma ideia daquelas para enganar o comboio e ganhar um bom dinheiro. Abriu depressa um buraco e colocou as brasas e os tições da fogueira dentro. Cobriu tudo com a areia e colocou a panela que fervia em cima. Ficou esperando até que o comboio carregado se aproximou. Vendo aquela cena estranha, o grupo de comboieiros logo parou. O pessoal do comboio ficou espantado com o que via. Sem fogo nenhum aquela panela fervia. Parecia mágica. Uma panela assim todo mundo quer. E perguntaram ao Malasartes:

 

- Amigo, que mágica é essa? Sem fogo essa panela está fervendo essa comida. Como é que pode?

 

O amarelo sem pressa, mexendo na tal panela, contou para os comboieiros essa história:

 

- É uma panela mágica que ganhei de minha mãezinha. Não carece de ter fogo, pois ela mesma se esquenta sozinha. É uma coisa muito útil quando a gente não tem cozinha. Dá pra fazer de um tudo! Eu sempre cozinho nessa panela.

 

O grupo de comboieiro ficou espantado. Eles queriam ter aquela preciosidade. Imagina?! Uma panela que não precisa de fogo?! Um objeto desses teria muita utilidade na viagem. E falaram ao caipira:

 

- Faço um preço, amigo! Podemos fazer negócio!

 

Mas o malandro, comendo seu almoço, inventou uma saudade:

 

- Ah! Essa panela não dou nem vendo por nada. Ganhei essa panela de minha velha mãe que já morreu. Olho para a panela e vejo minha mãe adorada. Não posso vender uma relíquia que ganhei de minha mãezinha.

 

Mas os comboieiros pediram tanto e ofereceram tanto dinheiro, que o malandro, fingindo não ter outra saída, vendeu a panela dada por sua mãe querida. Os comboieiros felizes seguiram pela estrada achando que levavam uma panela encantada. E o Malasartes foi, para o outro lado, viver nova aventura.

Eita amarelo esperto! Esse é da pá virada!

 

 

ADAPTAÇÃO DE AUGUSTO PESSÔA

In: Malasartes – Histórias de um camarada chamado Pedro

EDITORA ROCCO

MALASARTES E O PINCEL MÁGICO

 

O Pedro Malasartes estava andando por uma estrada que ele não conhecia. Estava com fome e sem dinheiro para comprar um pão velho. O caipira gastou tudo o que tinha numa festança. Estava nessa situação e começou a pensar em algum jeito de ganhar uns trocados. Enquanto pensava, ele viu, atrás duma moita, um quadro. Era uma bela imagem de um vaso preto com flores. Realmente magnífico. Ao lado, outro quadro com uma pintura horrível que tentava imitar o belo quadro de flores. O Malasartes coçou a cabeça:

 

- Alguém tentou imitar essa pintura e não conseguiu.

 

Mais adiante, o caipira viu um pincel e um potinho com um pouquinho de tinta preta. Então, ele teve uma ideia: pegou o quadro bonito, o pincel e o potinho de tinta. Foi para estrada e disse para seus botões:

 

- Aqui nessa estrada deve passar gente boa de enganar!

 

Não demorou muito, o caipira viu uma poeira ao longe. Era com certeza alguém que vinha a cavalo pela estrada. O Malasartes colocou o quadro de costas para a estrada e deu umas pinceladas, com a tinta preta, no vaso retratado na obra. Jogou fora o potinho com tinta e ficou admirando o quadro.

Na estrada, vinha em seu cavalo um coronel metido a inteligente. Ele viu o amarelo e resmungou:

 

- Ih! Tem lá um caipira vagabundo no meio da estrada. Não gosto dessa gente! Não prestam para nada!

 

O coronel se aproximou do Malasartes. O homem falou grosso e cheio de arrogância:

 

- O que você está fazendo aí, caipira vagabundo? Está atrapalhando o caminho!

 

O Malasartes olhou para o coronel e falou bem manso:

 

- Um bom dia para o senhor também. Desculpe atrapalhar o seu caminho. Eu estou aqui admirando a minha obra...

 

O coronel olhou para o amarelo com desprezo:

 

- Admirando sua obra? E um caipira xexelento como você faz alguma coisa que preste?

 

O amarelo respondeu:

 

- O senhor tem razão. É muito pretensão minha dizer que esse quadro foi feito por mim...

 

O Pedro disse isso e mostrou o quadro. O coronel ficou de queixo caído. O quadro era uma beleza.

 

- Meu Deus! Foi você que fez esse quadro?

 - Não fui bem eu... Foi o meu pincel... Opa!

 

O Malasartes botou a mão na boca como se não quisesse falar. O coronel estranhou:

 

- Como é que é? O pincel é que pintou? Como é isso?

 

O Pedro quis desconversar:

 

- Não é nada disso, seu coronel! Eu me enganei!

 

O outro insistiu:

 

- Eu ouvi muito bem você dizer que foi o pincel que pintou. Que história é essa?

 

O Malasartes se mostrou bem humilde:

 

- Olha, seu coronel, eu não queria falar porque o senhor pode não acreditar. Mas esse meu pincel é mágico!

- Como assim?

- Eu ganhei esse pincel do meu avô, que ganhou do avô dele, que recebeu de outro avô, de outro e de outro. O meu tatatatatatatatatatatatarávô ganhou esse pincel do próprio pintor Leonardo da Vinci! Conhece?

- Não.

- É um pintor muito importante. Veio antes do Leonardo da Trinta e depois do Leonardo da Dez. E esse pincel pinta que é uma beleza. Não precisa nem de tinta. Ele pinta sozinho. Esse quadro ele acabou de pintar. A tinta está até molhada ainda.

 

O coronel desceu do cavalo para ver de perto o quadro. E reparou que a tinta preta ainda estava úmida. Meio desconfiado ele disse:

 

- Se é verdade isso eu quero ver o pincel pintar outro quadro!

 

O Pedro coçou a cabeça:

 

- Ih... Não vai dar, coronel. Agora não vai dar. É que o pincel precisa descansar. Ele só pode pintar um quadro por dia. Só amanhã que ele volta a pintar.

- Então, amanhã eu quero ver ele pintar.

 

O Malasartes coçou de novo a cabeça:

 

- Ih... Não vai dar, coronel. Tenho que viajar hoje a noite. Sou esperado, do outro lado do mundo, numa exposição com os meus quadros... Quer dizer... Com os quadros do pincel. Eles lá não acreditam que é o pincel que pinta. Pensam que sou eu. Sou tão famoso por lá, que eles dizem que eu nem preciso pintar mais nada. Tenho por lá fama e fortuna.

 

O coronel ficou com muita vontade de ter também fama e fortuna e pediu ao caipira:

 

- Já que você nem precisa mais pintar os quadros podia me dar esse pincel!

 

O Pedro fez cara de espanto:

 

- Dar o meu pincel para o senhor? Um pincel que está na minha família há tantos anos? Não posso, coronel! Não tenho condição!

 

O outro insistiu:

 

- Então venda! Pago bom preço!

 

O caipira coçou mais uma vez a cabeça:

 

- Mas um pincel desses é muito caro, coronel.

- Não importa! Pago bom preço!

- E o senhor tem dinheiro aí?

- Aqui comigo não. Mas na minha casa tenho bastante. Vamos até lá!

- É longe?

- Mais ou menos 1 quilometro daqui.

 

O Malasartes se espreguiçou:

 

- Xiii... É longe. Desculpe, mas eu estou muito cansado.

 

O coronel queria muito o pincel:

 

- Você vai montado no meu cavalo que eu vou andando.

- Mas eu estou com fome. Estava mesmo querendo procurar uma pousada para comer.

- Pois você é meu convidado. Vai comer do bom e do melhor. Vamos lá! Aceita!

 

O Malasartes deu de ombros e aceitou. Montou no cavalo e foi andando. O coronel foi ao seu lado levando o quadro. Chegaram na casa e o Pedro comeu e bebeu de tudo. Depois, o coronel deu um bom dinheiro para o amarelo que se despediu e sumiu no mundo para nunca mais voltar.

E diz que o coronel está até hoje esperando o pincel pintar um quadro.

 

Adaptação de Augusto Pessôa

 

 

MALASARTES E O PÉ DE CASA

 

O Pedro Malasartes estava andando por uma estrada que ele não conhecia. O sol estava começando a se despedir e daí a pouco ia anoitecer. O caipira estava cansado e queria dormir um pouco. Mas não queria dormir na estrada. Estava pensando em uma boa cama para descansar os ossos. Ele até foi a algumas pousadas, mas, como estava sem dinheiro, ninguém deu hospedagem. Pediu dormida em algumas casas, mas ninguém quis dar. O Malasartes ficou chateado e sentou na sombra de numa árvore que ficava perto de um riacho.  Murmurou:

 

- Oh, gente mais cruel que não dá um descanso para um pobre como eu...

 

Falou isso e viu que ao seu lado tinha dois tijolos e um balde. Olhou para os objetos e teve uma ideia:

 

- Se ninguém quer me dar pousada por bem, vai ser de qualquer jeito. Por aqui deve ter muito abestado. Gente fácil de enganar... tá pra mim!

 

O Malasartes pegou um dos tijolos e guardou na sua bolsa. O outro ele colocou bem no meio do terreno onde ficava a árvore. Depois ele pegou o balde, encheu de água no riacho e voltou para onde ele tinha deixado o tijolo. Ficou agachado esperando alguém passar.

Não demorou muito, surgiu na estrada uma madame toda metida e com o nariz empinado. O Malasartes viu a mulher, se levantou e começou a despejar devagar a água em cima do tijolo. A madame parou para ver a cena. Quando a água do balde acabou, o Malasartes correu no riacho, encheu o balde, voltou e continuou a despejar a água devagar em cima do tijolo. A água acabou de novo e ele foi ao riacho encher o balde pela terceira vez. A madame não entendeu nada:

 

- O que aquele ignorante está fazendo ali? Despejando água em cima daquele tijolo. Por quê?

 

A mulher ficou curiosa e se aproximou:

 

- Boa tarde! – ela disse.

 

Malasartes fingiu espanto e respondeu:

 

- Boa tarde, dona...

- Desculpe perguntar – disse a mulher – mas o que é que você está fazendo?

- Eu – disfarçou o amarelo – nada...

- Eu tô vendo o senhor despejar água em cima desse tijolo! – insistiu a madame com irritação – O que é isso?

 

O Malasartes quis saber:

 

- Esse terreno é da senhora?

- Não – respondeu a mulher – Eu tenho uma boa casa, mas é mais para adiante. Esse terreno aqui não tem dono.

- Ainda bem. – suspirou o caipira.

- Ainda bem por quê? – quis saber a madame.

- É que eu quero a minha casa aqui. – respondeu o amarelo.

 

A mulher estranhou:

 

- Uma casa? Vai construir casa? Com um tijolo? Cadê o resto do material?

 

O Malasartes riu de lado:

 

- Mas esse não é um tijolo qualquer, dona. Ganhei esse tijolo lá na capital. Um doutor ficou com pena de mim e meu deu até dois! O outro tá aqui na minha bolsa.

 

A mulher olhou para o tijolo. Era um tijolo comum. Nada especial. Ela perguntou:

 

- E você quer construir sua casa só com dois tijolos?

 

E o Malasartes:

 

- Eu não vou construir nada! A casa vai nascer!

- Nascer? Como assim? – quis saber a madame.

- Que nem uma árvore... Só que é mais rápido! – respondeu o caipira.

 

A mulher riu:

 

- Você deve estar maluco!

 

E o Malasartes:

 

- A madame já esteve na capital?

- Já! Claro que já! – respondeu a mulher.

- Viu que tem lá uns “prédio grande” que parece que vai chegar lá no céu? – continuou o caipira.

- Vi! E o que tem isso?

- Pois esses prédios são construídos com esses “tijolo”! – respondeu o Malasartes.

 

A mulher arregalou os olhos:

 

- Não é nada disso, seu ignorante! Os prédios são construídos por operários...

 

O Malasartes interrompeu:

 

- Isso é o que eles querem que a gente acredite. Mas o pessoal da capital tá muito avançado. Eles colocam um tijolo desses num terreno e molham três vezes. Depois é só esperar que nasce um prédio, uma casa, um hospital. Um tijolo para cada edifício!

- Isso é verdade? – perguntou a mulher já querendo acreditar.

- Claro que é! – respondeu o caipira – A senhora pensa comigo: porque que esses prédios lá da capital chamam “edifício”?

- Sei lá! – respondeu a outra.

- Por que não é “fácil”! Ou melhor... Não “era” fácil de construir! – respondeu o amarelo – E esse povo da capital gosta de moleza. Eles logo inventaram um jeito de ficar fácil e criaram esses “tijolo”! Facilita muito! A senhora não acha?

 

A madame ficou de boca aberta e falou:

 

- Se der certo vai ser uma beleza. E esse que você vai construir? Vai ser o que?

- Eu não vou construir. Ele vai nascer que nem um pé de casa. – respondeu o Malasartes.

- E como vai ser?

- O doutor que me deu os “tijolo” – inventou o caipira – disse que cada um deles dá uma casa de três andares, cinco quartos, três salões, sete banheiros, cozinha e garage. Diz que dá até piscina e churrasqueira!

- Mas é uma mansão! – espantou-se a mulher – E o senhor vai fazer as duas?

 

O Malasartes se fez de humilde:

 

- Nada, dona! Sou um homem simples. Uma casa dessa, pra mim, já tá mais que suficiente...

- E vai fazer o que com o outro tijolo?

- O outro... – respondeu o Malasartes se fazendo de desentendido – eu tô pensando em dar para alguém que me faça uma boa ação... Mas ainda não sei pra quem...

- E quanto tempo leva para nascer o pé de casa? – perguntou a madame já toda interessada.

- Uns três dias... pelo menos... – respondeu o amarelo.

- E o senhor vai dormir onde esses três dias? – perguntou a mulher.

 

Malasartes fez um ar de infeliz:

 

- Nem sei, dona. Não tenho onde ficar... Acho que vou ficar por aqui mesmo... deitado nesse chão duro...

 

A madame, que estava doida para ganhar o outro tijolo, falou com entusiasmo:

 

- De jeito nenhum! O senhor vai dormir na minha casa!

- Na sua casa, madame? – fingiu espanto o caipira.

- Claro! – disse a mulher toda animada – Lá em casa tem um bom quarto de hospedes! O senhor não pode ficar aqui nesse chão duro! Pegando relento! Vai para minha casa, esperar o pé de casa nascer! Já tá decidido!

 

O Malasartes deu sorriso largo:

 

- Eu nem acredito em tanta bondade! Uma madame, que nem a senhora, aceitar um caipira, como eu, em sua residência! Sabe o que eu vou fazer? Eu vou lhe dar o outro tijolo!

 

A mulher se fez de rogada:

 

- Não precisa!

 

E o caipira:

 

- Claro que precisa! Eu sei que a senhora está fazendo isso de coração, mas essa sua bondade merece presente. Mas lembre: o pé de casa só nasce depois de três dias. E nasce assim... de repente!

 

O amarelo deu o tijolo para a madame e os dois foram para casa dela. O Malasartes passou lá três dias dormindo numa cama macia e comendo do bom e do melhor. No último dia inventou que ia ver se a casa já tinha nascido e foi embora para nunca mais voltar. E diz que a madame está até hoje esperando nascer o pé de casa.

E acabou a história.

 

Adaptação de Augusto Pessôa

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