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Aquela manhã trouxe notícias ruins. Dona Sinhá e Seu Jeremias estavam na cozinha tomando café quando o mulato Geraldo entrou esbaforido trazendo a novidade:

 

- O Ernesto fugiu com a Rafa Muleca! Fugiu, aquele danado!

 

Dona Sinhá levou uma mão ao peito e a outra ao ventre. Como se quisesse proteger a criança que ela guardava naquele barrigão. Era notícia muito forte para seu estado. O velho Jeremias rosnou:

 

- Muleca safada! Filha duma cadela!

 

A mulher grávida nem falava. Sentada na cadeira com o olho duro pra frente e a mão no peito. Parecia que já sabia que isso iria acontecer. O Geraldo se desculpava:

 

- Madrinha... Desculpe... Perdoe por lhe dar essa notícia assim... Mas tá todo mundo falando... A cidade toda...

 

Geraldo tinha a mesma idade de sua madrinha. Talvez um ano ou dois a mais. Foi criado pela mãe de Dona Sinhá e batizado na igreja quando a madrinha ainda era menina. Virou cristão já mais velho. Com uns doze anos. Fazia pequenos serviços na casa. Quando Sinhá casou, levou de herança o Geraldo. Ele continuou fazendo pequenos serviços, mas na maior parte do tempo enchia a cara de aguardente. A mulher respirou fundo e olhou para o afilhado.

 

- Tu não bebeu, não é Geraldo?

- Por essa luz, madrinha! Já tem uma semana que eu não sei o que é a maldita! E tá tudo mundo falando! Todo mundo com pena da Therezinha...

 

Sinhá perguntou só para ter certeza. No fundo sabia que alguma desgraça estava para acontecer. Ela acreditava que tinha o poder de sentir o futuro. Seu Jeremias continuava a rosnar:

 

- Muleca sem vergonha! Ia com todo mundo!

 

Berenice estava sentadinha na subida da escada e ouvia tudo. Tão quietinha que ninguém percebeu. Gostava da Rafa Muleca. Achava ela bonita. A mãe não deixava a menina nem olhar para a Rafa. Mas escondido, pelas costas de Dona Sinhá, via a mulher dançando no bar da cidade numa roda de samba. Via como ela jogava aquele olho grande, bonito e maroto pra cima dos homens. Adorava as roupas da Rafa, o colorido das saias, os enfeites de cabelo e o perfume... Um perfume intenso e quente que enchia o ar de chispas por onde ela passava. As mulheres da cidade cuspiam quando sentiam aquele aroma de pecado. Sentada na cadeira, Dona Sinhá suspirava:

 

- Ai... Minha filha... Coitada... O enxoval quase pronto... Tanto trabalho...

 

E o Jeremias cuspia:

 

- Rafa Muleca... Muleca de bosta, isso sim!

A gravida reclamou:

 

- Chega, Jeremias!

- Mas é a nossa filha! Essa muleca fugiu com o noivo da nossa filha! Que vai ser dela agora?

- O destino de Therezinha não era esse! Sempre desconfiei disso! Nossa filha tem que servir a Deus!

- Mas, mulher...

- Esse é o destino dela, Jeremias! Ela vai servir ao nosso Senhor Deus! Por essa luz! E não se fala mais nisso!

 

O velho ia resmungar qualquer coisa, mas desistiu. Berenice não entendeu. E bem de mansinho fez a pergunta:

 

- Como assim? Vai servir a Deus?

 

Só então dona Sinhá percebeu a presença da filha. Gritou:

 

- O quê é que tu tá fazendo aqui, menina? Isso não é conversa pra ouvido de criança! Chispa daqui, peste!

 

A menina saiu correndo. Era a mais nova de cinco irmãos. A mais velha era Therezinha. No meio ficavam os meninos: Pedro, Paulo e José. Era a mais nova, mas ia deixar de ser. A barriga da mãe guardava o futuro caçula. Berenice se escondeu debaixo da cama. Tinha um medo da mãe que se pelava. Mas a ideia da irmã servindo a Deus não saia de sua cabeça. Como ela vai servir a Deus? Como se serve a Deus? Rapidamente pensou na Rafa Muleca. Viu a saia estampada girando na roda de samba. E imaginou Deus na roda de samba batendo palma pra Rafa dançar. Será que é assim que se serve a Deus?

 

As negociações para levar Therezinha para seu novo destino foram rápidas. Dona Sinhá tinha conhecimento num convento em Itaperuna. A filha seria da Ordem das Clarissas. Das Clarissas Descalças.  Em menos de um mês tudo foi arranjado. Só não perguntaram a moça qual era o seu desejo. Therezinha seria noviça no convento e ponto final. O enxoval foi mudado rapidamente para atender as necessidades da nova freira.

 

No dia da partida, na porta de casa, Berenice deu um abraço apertado na irmã. Sentia uma dor no peito e a certeza que, de agora em diante, ia ver pouco a mais velha. Pouco ou quase nada. Todos estavam na varanda. Um silêncio enorme. Seu Jeremias já estava na charrete. O Geraldo montou na mula. Ia acompanhar a charrete para trazer o veículo de volta. O velho Jeremias levaria a filha de trem até Itaperuna. As lágrimas de Berenice correram fortes pela face. Therezinha subiu na charrete. O veículo começou a andar devagar. A futura freira olhou para trás. Como para se despedir da sua antiga vida. Berenice tentou chamar a irmã:

 

- There...

 

Mas as lágrimas não deixaram. A mãe também não permitiu:

 

- Não chora! Ela vai ter uma vida melhor que todos nós! Vai se casar com o Senhor Jesus!

 

Berenice se apavorou com a ideia. Casar com o Senhor Jesus? Como assim? Jesus não está no céu? Therezinha vai para o céu? Vai morrer? As perguntas explodiam na cabeça da menina. Mas cadê a coragem de perguntar?

 

Dona Sinhá não chorava mais. No fundo estava até feliz com a escolha que fez para a filha. Ter um parente religioso era uma espécie de orgulho para ela. Mas um sentimento ainda persistia. Vingança.

 

Os dias passaram. Jeremias voltou de Itaperuna. Tudo parecia tranquilo. Mas todos sentiam uma sensação estranha. Não só na família, mas a cidade toda tinha necessidade de algo. Necessidade de um exemplo que não devia ser seguido. A Rafa Muleca foi embora e deixou vago esse lugar. Os olhos se voltaram para Eloá, a irmã mais nova da Rafa.

 

A menina ainda morava com a mãe, a velha Saci. A mulher tinha esse apelido por lhe faltar uma perna. Nem os mais velhos lembravam o seu nome. Talvez, nem ela lembrava mais. Antigamente diziam que a Saci era bruxa e por isso que a filha mais velha saiu errada. Tinha tanta vergonha dessa sina da filha que não saia de casa pra nada. Vivia com a filha mais nova num barraco desmoronado na beira do rio. Ganhava uns trocados lavando a roupa suja de toda a cidade. A menina ajudava a mãe. Como a Rafa Muleca dava o que falar, a cidade esqueceu as duas. Mas agora...

 

Para desespero de todos, Eloá era o contrário da mais velha. Por causa da irmã não podia frequentar o grupo escolar. Aprendeu a ler sozinha catando livros e cadernos velhos no lixo. Apesar da miséria, andava sempre limpa e com o vestido engomado.  Tentava, há tempos, ensinar as letras para a mãe. Mas não era muito feliz nisso. Culpa da velha Saci que parecia não querer fazer parte do mundo. Preferia limpar a sujeira das roupas da cidade.

A menina era um exemplo, mas não o que a cidade precisava.

Quando dona Sinhá, cercada pelos filhos, passava por Eloá não deixava de resmungar:

 

- Vai ser igual à outra! Não demora muito!

 

Mas estava demorando.

 

Pedro e Paulo decidiram apressar o destino. Na conversa com o José, o mais novo não entendeu direito o que ia acontecer. Pedro tentou explicar:

 

- Vamos fazer uma coisa de homem! Você e o Paulo tem que começar de cedo! E tem que ser com a Eloá! O destino dela já tá traçado mesmo! Vai ser igual a irmã! A mãe sempre fala...

- Mas o que é que a gente vai fazer? – perguntou José na sua meninice.

- Vai aprender a fazer coisa de homem!

 

Paulo só concordava fazendo um bico e balançando a cabeça afirmativamente. José entendia cada vez menos. E Pedro explicava o plano:

 

- A gente pega ela no barranco! Vocês seguram a danada e eu faço primeiro para ensinar vocês!

- Mas vamos fazer o quê? – insistia o José.

 

Pedro perdeu a paciência.

 

- Coisa de homem! Coisa que homem faz com mulher que não presta! Tem que fazer primeiro com elas pra depois fazer decente com a sua mulher! Entendeu?

 

Fez-se um silêncio. Na verdade nenhum deles entendia direito. Nem o próprio Pedro. Mas os três ficaram de tocaia no barranco esperando a Eloá.

 

Perto dali, a menina, no barraco, preparou a sua bicicleta velha. A caçula é que entregava as trouxas com as roupas passadas, engomadas e limpinhas de toda a cidade. Eloá amarrou a trouxa em cima da bicicleta, despediu-se da mãe e foi pedalando devagar. Os meninos já estavam na tocaia. Foi tudo muito rápido. Pedro pulou em cima da menina. Eloá caiu com a bicicleta. Num grito o mais velho dos meninos mandou:

 

- Segura ela que eu faço o resto!

 

Eloá estava apavorada. Não gritava. Não entendia nada, mas se sacudia querendo se livrar daquilo. Paulo, branco de medo, correu pra dentro da mata. O mais velho tentava agarrar a menina:

 

- Anda, José, segura ela!

 

O mais novo estava gelado. Num movimento inesperado, o menino pegou uma pedra e jogou com força na cabeça do mais velho. Tonto, Pedro se levantou. O sangue corria da cabeça. Viu José parado na sua frente. Os olhos arregalados. O medo estampado na cara.

 

- Não faz isso, Pedro! A Saci é bruxa! Ela pega a gente!

 

Pedro foi pra cima do irmão. A fúria era grande. A dor da pedrada se misturava ao ódio. O rapazinho voou como um possesso para cima do irmão mais novo. Nisso, Geraldo vinha cambaleando pela estrada. Viu os dois se engalfinhando e Eloá no chão.

 

- Isso não tá bom!

 

A tontura da aguardente passou no susto. Geraldo agarrou os dois pela camisa e foi arrastando os brigões até a casa de sua madrinha.

 

Eloá ficou no chão. Não entendia o que tinha acontecido, mas sentia uma vergonha tremenda. Até que deu um grito de horror. Ficou por um tempo deitada, o vestido puxado pra cima, a bicicleta no chão, a trouxa de roupa desfeita. Foi levantando lentamente. Arrumou o vestido, levantou a bicicleta, ajeitou a trouxa e colocou na garupa. As lágrimas tinham secado. Ela foi pedalando lentamente até a sua casa. Saci viu o vestido sujo de terra e perguntou:

 

- O que foi, Eloá?

 

A menina olhou para mãe. Tinha um olhar estranho.

 

- A senhora é bruxa mesmo?

- Pra que você quer saber, menina?

- Quero aprender! Quero ser bruxa também!

 

A Saci sentiu um arrepio. A menina dizia a verdade.

 

Geraldo contou para sua madrinha o que viu. Sinhá não falava nada. Só olhava para os filhos. Pedro e José estavam de cabeça baixa. Tinham medo da reação da mãe e principalmente do pai que, por sorte, não estava em casa.

 

- Obrigada, Geraldo! Vai até a cozinha beber uma água, mas volte daqui a dez minutos! – disse Sinhá sem tirar os olhos dos meninos.

 

Geraldo se afastou sem dizer nada. A mulher esperou que ele saísse. Ela levantou da cadeira de balanço e pegou o chicote que ficava pendurado num prego na frente da casa. Os meninos estremeceram. Berenice se aproximou da porta com seu passinho manso. Sinhá não viu a menina e disse para os filhos:

 

- Não vou contar para o pai de vocês sobre Eloá! Nem quero que esse assunto continue! Vou dizer que vocês apanharam por causa da briga! Vou bater, mas não quero choro, nem ai! Se eu escutar um gemido, o pai de vocês vai saber de tudo!

 

Rapidamente Berenice se escondeu atrás da porta. Ficou ali sem respirar, mas com os ouvidos atentos. Sinhá bateu muitas vezes nas pernas dos filhos. Primeiro em José, depois em Pedro. Os meninos levaram as pancadas sem se mexer. Tinham mais medo do castigo paterno. Depois de bater nos filhos, a mulher colocou o chicote no prego e sentou na cadeira. Os meninos nem se mexiam.

 

- Agora vão! Não quero ver vocês tão cedo!

 

Os meninos, ainda cabisbaixos, correram dali. E Berenice ficou pensando o que teria acontecido a Eloá.

 

O Geraldo voltou da cozinha e ficou sentado de cócoras ao lado da madrinha. Os dois ficaram uns dez minutos sem dizer nada um ao outro. Até que a Sinhá rompeu o silêncio:

 

- Geraldo, tu vai ter que fazer o serviço!

- Que serviço, madrinha?

- O serviço que os meninos começaram! Isso não é coisa pra menino! Tem que ser tu! Vai ter que ser tu. É coisa pra homem!

- Mas é uma menina, madrinha!

 

Sinhá olhou bem nos olhos do afilhado:

 

- Uma cachorra! Irmã daquela safada! Daquela desgraçada que se meteu na minha família! Eu quero vingança, Geraldo! A sina dela já tá escrita! E é tu que vai ser o primeiro! E não quero ouvir desculpa! Quero esse serviço feito e ainda hoje!

 

O Geraldo levantou e foi andando lentamente cumprir a sua ordem. Sinhá ficou balançando na cadeira e Berenice ficou imaginando o que aconteceria a Eloá.

 

O serviço foi feito e o tempo passou.

 

Hoje a cidade respira aliviada. Já tem um exemplo que não deve ser seguido. As mulheres viram os olhos quando passam pela batucada do bar. No meio da dança, com a saia de chita, Eloá agora tem um olhar diferente. Aprendeu com a mãe as artes da bruxaria. E Berenice ainda continua com a imagem de Deus, na roda de samba, batendo palma pra Rafa Muleca dançar.

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