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PERSONAGENS: ELE e ELA

CENA: ambiente neutro com dois bancos e uma caixa. Esses objetos devem ser de madeira e ter um aspecto rústico. A caixa deve ter uma porta lateral e prateleiras internas onde serão colocados objetos que ajudaram a compor a cena. Em cima da caixa uma engrenagem com um aro de roda de bicicleta. Esse aro tem que girar. No chão pode ter uma lona irregular e manchada dando a sensação de aridez.

A cena começa com ELA sentada num dos bancos mexendo lentamente a roda. ELA é uma mulher velha que murmura uma cantiga. Em alguns momentos ELA para de cantar e olha para trás como se procurasse por alguém. ELA repete esse movimento três vezes até que ELE entra. É um homem jovem que fica se movimentando freneticamente pelo palco como se procurasse por algo. ELA volta a mexer na roda.

 

ELE: (DEPOIS DE ANDAR PELO PALCO COMO SE PROCURASSE ALGUMA COISA) Você sabe que horas são? (ELA NÃO RESPONDE) Que horas são? (ELA OLHA PARA ELE) Estou perguntando pra você: sabe que horas são?

ELA: Não está na hora!

ELE: Mas que horas são?

ELA: Não sei... Não tenho relógio.

ELE: Mas eu não dei um pra você?

ELA: Não.

ELE: Dei sim... Não dei? Ano passado... Foi... Foi! Não foi?

ELA: Não foi.

ELE: Então foi esse ano! Tenho certeza... Foi esse ano... Esse ano eu te dei um relógio. Não foi?

ELA: Não foi.

ELE: Foi sim! No seu aniversário!

ELA: Você nunca me deu um presente de aniversário...

ELE: Como não! Todo ano eu dou!

ELA: Você nem sabe quando é meu aniversário...

ELE: Claro que eu sei! Todo ano a gente faz uma festa! Teve aquele ano que fiz uma festa surpresa pra você! Veio todo mundo! Eu enfeitei a casa com balões! A gente ficou no escuro esperando você aparecer...

ELA: Você nunca fez festa pra mim...

ELE: Claro que fiz! Foi quando? Têm uns dois anos! Não é? Veio o Edgarzinho, o Paulo, o Joaquim, o ....

ELA: Quem é Paulo e Joaquim?

ELE: Como assim “quem é Paulo e Joaquim”? Nossos filhos! Foi até o Paulo que ficou segurando você lá na casa de sua mãe pra gente arrumar a festa... Você não lembra?

 

(ELA NÃO RESPONDE. APENAS SORRI COMO SE LEMBRASSE DE ALGO)

 

ELE: Do Edgarzinho você não esquece, né? Essa sua mania de preferir o Edgard aos outros ainda vai nos dar problema! Os outros também são seus filhos! Os meninos já estão reparando...

 

(ELA NÃO RESPONDE, MAS PARA DE SORRIR. PARECE CONTRARIADA. ELA VOLTA A MEXER NA RODA LENTAMENTE)

 

ELE: (REPARANDO QUE ELA MEXE NA RODA) O que é isso?

ELA: Isso... Isso o quê?

ELE: Isso aí... isso aí que você está mexendo...

ELA: Não tá vendo?

ELE: Tô... mas... porquê você está fazendo isso?

 

(ELA NÃO RESPONDE. TIRA AOS MÃOS DA RODA NUM GESTO DIZENDO QUE VAI PARAR – PAUSA – ELE ANDA DE UM LADO PARA OUTRO – PARECE EUFÓRICO)

 

ELE: Você sabe quando vai...

ELA: Não sei! Acho que só quando o outono chegar!

ELE: Mas eu nem falei nada... Não terminei a frase...

ELA: Não precisa... Às vezes não precisa falar... A gente já sabe o que vai ser dito...

ELE: Você sempre com essa mania de adivinhar o que eu falo! Às vezes você acerta! Mas é só às vezes que você acerta...

JUNTOS: ... Não é sempre, não!

ELE: Engraçadinha!

 

(ELA OLHA PARA ELE – PEQUENA PAUSA – ELA VOLTA A MEXER NA RODA – ELE OBSERVA)

 

ELE: Quando foi mesmo que eu ensinei a você a andar de bicicleta?

ELA: Eu não sei andar de bicicleta!

ELE: Claro que sabe... Eu ensinei pra você! Ensinei primeiro pra seu irmão! Você sabia que eu conheço seu irmão desde pequeno?

ELA: Ele me disse!

ELE: Boa gente, seu irmão! Era meu melhor amigo! Ele aprendeu rapidinho! Aliás, eu ensinei a todo mundo lá da escola a andar de bicicleta. Eu aprendi sozinho, sabia? Levei uns tombinhos...mas aprendi! Eu era o único que tinha bicicleta na turma! Depois seu irmão ganhou uma!

ELA: Minha mãe deu uma bicicleta para ele...

ELE: Não foi não! Foi seu pai! Ele me disse que foi seu pai que deu a bicicleta! Era vermelha, tinha umas rodinhas para ele não cair... as rodinhas eram pretas! Não eram?

ELA: A bicicleta era azul com detalhes prateados... A rodinha era branca...

ELE: (SEM DAR ATENÇÃO) Eu disse logo pra ele tirar esse negócio de rodinha! Rodinha é coisa de bebezinho, de criancinha... Tirei aquelas rodinhas e disse pra ele: monta e vai fundo! Lembra o tombão que ele tomou?

ELA: Quebrou a perna...

ELE: Nada disso! Torceu! Torceu o pé! Depois ficou com “medinho” de andar de novo! Eu que tive que convencer ele! Lembra que arranhou a pintura da bicicleta? Eu arrumei tinta vermelha e a gente pintou! Ficou novinha!

ELA: A bicicleta dele era azul...

ELE: Não! A azul era minha! Você tá confundindo! Lembra que eu levava você na garupa?

ELA: Isso nunca aconteceu... Nunca aconteceu...

ELE: O quê? Eu levar você na garupa? Claro que aconteceu... a gente ia... ia aonde mesmo?

ELA: Não era eu...

ELE: Não era você? Então quem era?

ELA: Devia ser meu irmão...

ELE: Não! Seu irmão ia na bicicleta dele! E quando nós três saíamos da escola de bicicleta?

ELA: Escola? Que escola? Eu nunca fui para a escola com vocês...

ELE: É mesmo? Tem certeza?

ELA: Tenho!

ELE: Então era... Era só eu e seu irmão... A gente saia da escola pegava as bicicletas e ZUM... Saia em disparada pela rua principal... Virava na padaria da esquina, entrava na vila e ia direto pra praça! Ah... a praça! A praça era o nosso mundo! A gente nem trocava de roupa! Ficava de uniforme mesmo! Brincando! Brincando muito! E aí vinha sua mãe! Cansei de correr dela...

ELA: Minha mãe era muito quieta... Muito educada... Ela não sairia correndo atrás de vocês! Ela nunca fez isso!

ELE: Claro que fazia! Corria atrás da gente! (IMITANDO) “Menino! Vai sujar o uniforme! Depois eu tenho que lavar! (ELE RI)

ELA: Minha mãe nunca lavou roupa na vida...

ELE: (SEM DAR ATENÇÃO) A gente fugia lá pro morrinho! O morrinho era tudo de bom! Cheio de árvore! Um monte de frutas: manga, jabuticaba, goiaba, banana... Eu gostava mais de manga! E tinha árvore com cipó! Tinha uma com um cipó enorme que dava pra se pendurar e ir que nem Tarzan até uma pedra grande! A gente ficava lá a tarde toda!

 

(ELE PARA UNS INSTANTES COMO SE CONTEMPLASSE A CENA – ELA OBSERVA)

 

ELE: Eu e seu irmão sempre disputávamos pra ver quem ia ser o dono da pedra! (ANUNCIANDO) Eu sou o Rei da Montanha! (NORMAL – ACHANDO GRAÇA) Ele ficava chorando e dizendo que ele é que era! Lembra como ele era chorão?

ELA: Meu irmão não era chorão! Nunca chorou! Nunca vi chorando...

ELE: Era um chorão! Chorão, sim! Chorava por qualquer coisa! Você não lembra... Não era nem nascida ainda...

ELA: Não era nascida, mas ouvi muitas histórias! Meu irmão era forte, valente, brigão...

ELE: Brigão? Seu irmão? (ELE RI) Seu irmão só não apanhava de tudo mundo porque eu não deixava...

ELA: Era o terror da turma! Todo mundo tinha medo dele...

ELE: (SEM DAR ATENÇÃO) Ele chorava por qualquer coisinha! Não podia ser contrariado que abria o maior berreiro! Isso era chato nele! Mas, às vezes, até que era engraçado! Teve aquela vez... Foi porque mesmo? Não estou lembrando direito... Mas teve uma muito boa! Ele chorou por uma bobagem... Era por causa de uma... De uma bola... Acho que a bola furou... Furou não! A bola caiu no vizinho! Lembra aquele vizinho que furava as bolas? Aí... Ele... Ele começou... Era bola mesmo? Não! Não era bola! Era um apito! Isso! Um apito grande que fazia um barulho chato! Ninguém gostava daquilo! E ele ficava PÍ... PÍ... PÍÍÍ... Atrás da gente! Até que ele foi apitar com força e...  O... O apito quebrou e... E ele... Era apito ou bola? Não lembro bem! Mas era uma coisa assim... O Paulo chorava por qualquer coisinha...

ELA: Meu irmão se chamava Edgard!

ELE: Edgard? Tem certeza?

ELA: Claro!

ELE: Edgard? Não era Paulo?

ELA: Não!

ELE: Às vezes eu confundo as coisas! Dei pra isso agora!

ELA: Não tem problema! É assim mesmo!

ELE: Eu estou cansado!

 

(ELE SENTA COM DIFICULDADE – PARECE ENVELHECER. ELA LEVANTA COM DIFICULDADE. VAI REJUVENESCENDO DURANTE A FALA)

 

ELA: Meu irmão se chamava Edgard! Era um belo rapaz! Valente! Danado! Implicava comigo! Quando eu era pequena ele me chamava de bolota! Bolota! Vê se pode? Eu que sempre tive um corpo perfeito! Sempre gostei de me exercitar! Adorava correr pela casa! Eu corria e escorregava pelo assoalho da sala. Daquela sala comprida! Lembra?

ELE: Mais ou menos...

 

(ELA REJUVENESCE. VIRA UMA MENINA QUE CORRE PELO PALCO – ELE ESTÁ VELHO, SENTA PERTO DA RODA E COMEÇA A MEXER NELA LENTAMENTE)

 

ELA: Era tão bom correr pela sala! E o Edgard falava: “Cuidado bolota! Vai se machucar!” (ELA ACHA GRAÇA) Sabe que eu quebrei todas as partes do meu corpo? Não tenho um osso inteiro! Até a cabeça! Quebrei aqui, olha! (MOSTRA UM LUGAR NA CABEÇA) Minha mãe ficava maluca com isso! Ela que era toda quieta... Quase não fazia nada... Dizia que eu parecia um moleque! Depois... Descobri porque ela era tão quieta! Aquele homem... (PEQUENA PAUSA) Eu nem ligava... Parecia um moleque mesmo! Gostava de ser moleque: subia em árvore, pulava muro, corria... Pintava o sete! E adorava brincar com meu irmão. Mas, quando ele era pequeno, só queria brincar com um amigo! Ele não dizia o nome! Só falava assim: “um amigo”! Era o amigo misterioso dele! E como eu estava quase sempre com um braço ou uma perna quebradas tinha que deixar! Só essa perna aqui eu quebrei quatro vezes! E eu adorava me esconder pra dar susto nas pessoas! Ficava às vezes umas duas horas escondidinha... quietinha no meu canto... até chegar o momento que... BUUU... Dava aquele susto! O Edgard cansou de levar susto assim! (PAUSA) Mas por causa disso é que eu vi...

ELE: Viu o quê?

ELA: (ELA ENVELHECE DURANTE AS FALAS – É UMA MULHER ADULTA – UMA MULHER REVOLTADA) Eu me escondi no quarto de minha mãe! Queria fazer a brincadeira com ela! Já tinha uma meia hora que eu estava lá... Escondida no armário... Quando eles entraram...

ELE: Quando foi isso? Foi no outono?

ELA: Achei que era, mas estava enganada! O outono estava muito longe... Muito longe de mim... Mas parecia o outono... Quando eles entraram no quarto parecia o outono...

ELE: (PARECE NÃO ENTENDER) Quem? Aonde?

ELA: Meu pai e minha mãe! Eu só ouvi ele dizer: “Não grita! Não fala nada! Não quero um piu!”

ELE: (AINDA COM DIFICULDADE DE ENTENDER) Mas o que foi que houve?

ELA: Ele bateu nela! Bateu muito!... E ela nem deu um ai! Mas eu não agüentei! Sai do ármario e fui pra cima dele! Arranhei a cara dele e ele me bateu também! Por causa disso fui para o colégio das freiras! Disseram que era por causa do meio jeito! Que eu parecia um menino, meio moleque, e isso... e aquilo... Mas não era verdade! Foi porque eu vi! Eu vi o que ele fazia com ela todo dia!

ELE: Não foi nada disso! Seu pai nem era mais vivo na época que você foi pro colégio das freiras!

ELA: Claro que era vivo! Eu arranhei a cara dele! Deixei uma marca! Uma cicatriz bem aqui... perto da boca...

ELE: Essa cicatriz ele ganhou na guerra...

ELA: Não foi! Fui eu! Eu que fiz a cicatriz nele!

ELE: Ele tinha essa cicatriz antes de se casar com sua mãe... Todo mundo sabe disso... O país inteiro conhece essa história...

ELA: Não tinha! Fui eu que fiz a cicatriz!

ELE: Você não era nem nascida quando seu pai morreu... Sua mãe ainda estava grávida... Morreu cedo... Na guerra... Você não lembra... Não pode lembrar... Seu irmão me falou de você e do colégio de freiras! Ele me dizia até que você gostava muito do colégio!

ELA: Nunca gostei! Nunca gostei! Fui pra lá porque vi meu pai batendo na minha mãe! Porque marquei a cara dele! Foi um castigo que ele me deu!

ELE: Foi pra lá pra se tornar uma moça direita! Porque parecia um menino... Um moleque!

ELA: Fui para o colégio esperar... esperar a morte de meu pai! Sabia que não ia demorar muito! Mas o tempo é estranho! É teimoso! Demorou mais do que eu queria! E fiquei lá esperando a morte...  Não ia pra casa nem no Natal! Minha mãe que vinha me visitar com meu irmão! Meu pai não “vem”! Nunca “veio”! Nunca apareceu aqui!

ELE: Não ia porque estava morto! Morreu na guerra... Virou herói de guerra! Tem praça... Tem rua... Tem cidade com o nome do seu pai! Por isso ele não ia visitar você! Estava morto! 

ELA: Não vem porque tem medo que eu fale o que eu vi! Que eu conte como ele conseguiu aquela cicatriz! Covarde!

ELE: Um herói! Tem monumento em homenagem a ele! Os pais colocam o nome do seu pai nos filhos... O país inteiro pagava os seus estudos... Os estudos do seu irmão... Sustentavam a sua casa... Tinham orgulho de sustentar a família do herói!

ELA: Isso é mentira! Minha mãe é de família rica! Nunca precisou do dinheiro do meu pai que, aliás, nunca teve dinheiro nenhum! Enrolou minha mãe e conseguiu casar com ela! Meu avô e minha avó eram contra! Sempre foram! Tinham medo que meu pai acabasse com toda fortuna! Meu tio é que tomava conta dos negócios! Nunca deixou que meu pai chegasse nem perto do dinheiro da família!

ELE: Seu tio era um covarde! Aliado dos inimigos! Fugiu da guerra! O tempo mostrou a verdade!

ELA: O tempo não mostra nada! Ele só passa e a gente se acostuma! E o tempo foi passando pra mim e eu comecei a inventar coisas pra passar o tempo...

ELE: Que coisas?

ELA: (A LUZ MUDA – MUDANÇA DE TOM – ELA VOLTA A SER UMA MENINA – UMA MENINA DELICADA) Sabe... Um dia as freiras falaram pra gente da festa de debutante. Toda menina que se preza, diziam elas, tinha que estar preparada para essa ocasião! Pra grande festa onde ela seria apresentada a sociedade! Apresentada como uma moça! Uma digna moça de sociedade! E elas ensinavam a gente a bordar, a costurar, a cozinhar. Ensinavam etiqueta, boas maneiras, tudo para gente virar uma digna moça da sociedade: (ELA SE MOVIMENTA COMO SE FALASSEM COM PESSOAS) Como vai, senhora? Muito prazer em conhecê-los! Como vai, senhor? Muito obrigado! Bom dia! Boa tarde! Boa noite! Com licença? Pois não! Que lugar mais agradável! (ELA ANDA COMO NUM DESFILE) Ensinavam a andar com postura e elegância! Retas, leves e delicadas! Os passos têm que ser precisos, mas suaves! Andando nas nuvens! Como uma fada! (ELA SENTA COMO SE ESTIVESSE DIANTE DE UMA MESA E FALA PARA ELE) Tive aulas de civilidade! Sabe o quê é isso? Civilidade! Ensinavam que não podíamos falar alto! Que certos assuntos não eram permitidos! A se comportar numa mesa: (FAZ OS GESTOS - PUNHOS NA MESA) Sempre... (ANTEBRAÇO SOBRE A MESA) Às vezes... (COTOVELOS SOBRE A MESA) Nunca...  (BRAÇOS CRUZADOS SOBRE A MESA) Jamais! (PARA ELE) E ensinavam as meninas a dançar, sabia? Vem dançar comigo! (ELA LEVANTA)

ELE: (PARANDO DE MEXER A RODA) Não posso... Estou cansado...

ELA: (LEVANTANDO ELE) Anda! Deixa de preguiça!

 

(ELE LEVANTA COM DIFICULDADE – ELES COMEÇAM A DANÇAR SEM MÚSICA)

 

ELA: As freiras é que dançavam com a gente! Ensinavam: nada de encostar no cavalheiro... Deixe que ele a conduza, mas não deixe que se aproxime... Dance como se fosse uma pluma... Uma pluma flutuando no ar... Frágil e delicada como um sonho.... Os sorrisos devem ser constantes! Olhares de deslumbramento e felicidade! Sem exageros! Uma moça educada, uma digna moça da sociedade, não comete exageros!

 

(A MEDIDA QUE DANÇAM ELE REJUVESNESCE, MAS AINDA É UM HOMEM MAIS VELHO QUE ELA)

 

ELE: A bela menina dança muito bem!

ELA: Oh, senhor! Não devo falar com estranhos!

ELE: Mas como estranhos? Nós estamos dançando!

ELA: Mas eu sou uma apenas uma menina e tenho ainda muito que aprender!

ELE: Eu posso ensinar! O que a menina quer aprender?

 

(ELA SE DESPRENDE DELE)

 

ELA: As freiras ensinavam que alguns cavalheiros podem ser deselegantes! Ter atitudes... Atitudes... Não condizentes com os valores corretos da sociedade! Era assim que elas falavam! E ensinavam pra gente que nesses momentos precisávamos ser firmes! Mostrar a esses cavalheiros, com muito tato e sem chamar a atenção, que ao nosso redor não há lugar para deselegâncias! A nossa volta só existe a beleza, a harmonia e o encantamento. Civilidade!

ELE: Mesmo em tempo de guerra?

ELA: (COM MEDO) Guerra? Que guerra?

ELE: Estamos em guerra! Seu pai morreu na guerra!

ELA: Meu pai morreu na guerra? Não... Ele está vivo! Eu não sei de guerra nenhuma... Quando começou essa guerra?

ELE: Nós sempre estivemos em guerra! Nascemos em guerra... Vivemos em guerra... Vamos morrer em guerra!

 

(ELA PARECE LEMBRAR – FICA POR UNS INSTANTES COM MUITO MEDO – ESSE MEDO FAZ COM QUE ELA VOLTE A SER UMA MULHER MADURA – ELA RESISTE)

 

ELA: (COM VIOLÊNCIA) Não! Eu sou uma menina! Não posso saber sobre guerras! Não tenho que saber de guerras! (ELA SE CONTROLA – PEQUENA PAUSA - VOLTA A SER A MENINA DELICADA) Todas as meninas do colégio sonham com a festa de debutantes! Querem estar prontas para esse dia! Pensam mais nisso do que no casamento! Toda semana, sem que as freiras soubessem, inventamos a nossa festa de debutantes! Era como um ensaio! No dormitório, esperávamos as freiras dormir e criávamos o nosso baile! Cada semana era o aniversário de uma menina! As outras faziam as convidadas, os convidados, os pais, garçons... Cada uma com um personagem! Eu adorava fazer um garçom que vivia bêbado!

 

(ELA ACHA GRAÇA. ELE FINGE QUE ESTÁ COM UMA BANDEJA NA MÃO E SE APROXIMA DELA)

 

ELE: (FINGINDO ESTAR MUITO BÊBADO) Vai uma bebidinha aí?

ELA: O quê é isso? O senhor está embriagado!

ELE: Não, minha menina, imagina...

ELA: Ah... Ninguém gosta desse personagem que você inventa!

ELE: Porque não? Eu gosto!

ELA: Sou eu que invento o personagem. E ele nunca foi tão bêbado assim! Nossa festa é elegante! Não tem gente tão bêbada!

ELE: (CRUZANDO OS BRAÇOS E SENTANDO) Não brinco mais!

ELA: (SEM DAR ATENÇÃO) A minha festa foi a mais bonita! O ensaio perfeito! Roubamos velas da capela do colégio para enfeitar o dormitório! (ELA PEGA UM GRANDE PANO BRANCO DENTRO DA CAIXA E SE ENROLA NELE) Nos enrolamos em lençóis... Lençóis brancos que seriam nossos vestidos coloridos... Cores variadas: rosa, amarelo, verde, azul... Um mais lindo do que o outro! O meu é branco! Lindo! Deslumbrante! Estamos prontas para o baile, a valsa começou a tocar, os casais reunidos no meio do salão... O sonho realizado!

 

(UMA VALSA COMEÇA A TOCAR. ELE SE LEVANTA E VAI ATÉ ELA. OS DOIS DANÇAM)

 

ELE: E os casais dançaram muito!

ELA: Até o dia raiar... Tudo estava perfeito: o salão iluminado, os vestidos, os sorrisos!

ELE: A elegância dos cavalheiros! Alguns fardados com seus trajes de gala!

ELA: Os familiares todos festejando! O olhar feliz de minha mãe! Sua menina finalmente se transformou numa moça! A moça que ela sempre sonhou!

ELE: Seu irmão também está feliz! Tudo está perfeito!

ELA: De repente eu apareço no alto da escola! (ELA SE DESPRENDE DELE – OS DOIS OLHAM PARA O FUNDO DO PALCO COMO SE ASSISTISSEM A CENA) Estou linda! O meu vestido é longo, branco! Todo enfeitado! Na cabeça um delicado arranjo de flores silvestres! Eu mesma fiz o arranjo, sabia? Fiz questão de fazer o arranjo com minhas próprias mãos! E ele ficou primoroso! Como se tivesse sido comprado na mais fina maison! Pareço uma princesa! É o momento da grande valsa! O outono nunca vai chegar!

ELE: E quem vai ter a honra de dançar com a bela dama?

 

(A VALSA PARA. CADA UM VAI PARA UM CANTO DO PALCO)

 

ELA: (PARA O PÚBLICO – PARECE DESCONCERTADA) Ainda não sei... É apenas um ensaio... Os casais ainda não foram decididos! São quatorze meninas... Comigo quinze... É difícil escolher... Talvez primos... Irmãos de minhas colegas de colégio... E o meu par? (PEQUENA PAUSA – ELA TENTA SE CONTROLAR) Mas foi um ensaio maravilhoso! E eu esperava o dia do baile com muita vontade... Ainda mais depois... Depois... Isso não foi no outono... (PEQUENA PAUSA - OUTRO TOM – MAIS SEGURA) Não foi, não! De jeito nenhum! Nessa época... Nessa época meu irmão já estava na escola militar!

ELE: (PARA O PÚBLICO) Entramos juntos na escola militar! Fizemos quase todo curso na mesma turma! Nossa amizade era muito grande! E ele falava sempre de uma irmã! Escrevia e recebia cartas dessa irmã!

ELA: (PARA O PÚBLICO) Eu recebia cartas de meu irmão que falavam de um rapaz! Um rapaz elegante, inteligente, forte! Era o melhor amigo de meu irmão!

ELE: (PARA O PÚBLICO) Ele me falava sobre essa irmã... De como ela era linda, educada, a moça perfeita... A moça ideal... Eu nunca imaginei que aquela irmã era a mesma da nossa infância. Aquela menina que mais parecia um moleque...

ELA: (PARA O PÚBLICO) Meu irmão queria muito me apresentar esse amigo! E que data melhor se não a minha festa de debutante? O meu baile! O meu esperado baile! (A VALSA RECOMEÇA) Durante o ensaio por várias vezes eu imaginei a cena: (ELES SE OLHAM E FAZEM O QUE ELA DESCREVE) nos olhamos, fazemos uma pequena reverência e sorrimos! Um sorriso que dizia tudo! Que falava daquele tempo!

 

(ELES VOLTAM A DANÇAR E CONVERSAM – OS DOIS ESTÃO BEM JOVENS – MAS SÃO OUTROS PERSONAGENS)

 

ELE: E quando foi isso mesmo? Foi no outono?

ELA: Não! No outono nunca! Nessa época a doce menina nem sabia o que era o outono! Só queria saber do seu baile! Só queria encontrar o amigo misterioso do seu irmão Edgard!

ELE: Paulo! O nome do irmão dela é Paulo! E ele só falava para o amigo sobre o baile de debutante de sua irmã! E o tal amigo não via a hora de colocar o uniforme de gala e dançar com aquela linda moça rodopiando pelo salão!

ELA: O irmão sugeriu que a doce menina dançasse com seu amigo misterioso. Pra ela foi um alívio! Seu pai não queria dançar com ela. Todos sabiam que ele tinha medo da doce menina... Sabiam que a menina guardava um segredo do seu pai. Um segredo terrível!

ELE: Nada disso! O pai dela já tinha morrido há muito tempo. Morreu na guerra. Morreu como um herói. Por isso, ela vai dançar com o tio, com o irmão e depois com o melhor amigo do seu irmão! Mas o primeiro será o tio!

ELA: O tio! Um homem tão distinto!

ELE: Não é o que dizem! Muitas pessoas estão revoltadas! O tio é um homem odiado por grande parte da população do país! Dizem até que ele é aliado dos inimigos! Um espião! Mas o amigo... O melhor amigo do irmão.... Está eufórico! Finalmente terá em seus braços aquela doce menina!

ELA: A menina gostava muito de seu tio! Tinha total confiança nele! Um homem digno! Por isso ela convidou seu tio para a primeira valsa! Afinal não poderia dançar só com seu irmão e com o amigo dele! Ela queria muito dançar com o amigo de Edgard, mas não ficava bem! Tinha que dançar com um homem mais velho da família primeiro! Já que o pai não queria dançar com ela, o mais certo era chamar o tio! Ia ficar estranho para os outros convidados não dançar com seu pai, mas não tinha outro jeito. Ela não queria dançar com aquele homem e ele também não queria. Dizem que a mãe até gostou porque sabia que o pai não teria coragem de dançar com a doce menina! No fundo foi uma vingança para ela!

ELE: Independente de qualquer coisa, o amigo misterioso e a doce menina estavam eufóricos!

JUNTOS: Eles contavam os dias para o baile!

ELE: E finalmente chegou a semana do baile...

 

(ELA SE DESPRENDE DELE – É UMA MULHER MAIS MADURA)

 

ELA: (EUFÓRICA) Eu passei a contar as horas! Ia ter meu sonhado baile! Ia conhecer o amigo misterioso do meu irmão Edgard! No fundo eu sabia que ele era o homem da minha vida! Que viveríamos juntos para sempre! De alguma forma nós viveríamos juntos para sempre! E finalmente o dia do baile chegou!

 

(A VALSA PARA – A LUZ MUDA – ELA TIRA O LENÇOL E O DOBRA)

 

ELA: (FALA DE UMA FORMA SECA) Mas ele não veio! Nos ensaios ele estava! Dançávamos e conversávamos! Ele era um príncipe! Dizia coisas inteligentes e maravilhosas! Fazia galanteios! (ELA GUARDA O LENÇOL NA CAIXA E COMEÇA A ENVELHECER)

ELE: (SECO) Não pude ir! Não pude ir por causa de um acidente! Uma coisa terrível! Fiquei preso na escola!

ELA: (CAMINHANDO LENTAMENTE PARECE PROCURAR POR ALGUÉM) Meu irmão chegou sozinho... Sem dizer nada... Achei que era uma brincadeira dele... Que ele estava ali... Escondido... Pronto para se apresentar, fazer a reverência e me dar aquele sorriso... Mas quem seria ele? Como seria seu rosto?

ELE: (COM MAGOA) Eu estava pronto para sair! Pronto para ir ao baile! Estava elegante, vestido com meu uniforme de gala! Um aluno debochou do baile! Um despeitado! Disse que era uma vergonha estar num baile junto com um traidor! Que a família não merecia nenhuma honra por aceitar um espião entre eles! Por desonrar assim o nome do nosso herói! Meu amigo Paulo não estava na sala no momento e eu tinha que defender a família! Defender a família do herói do meu país! Puxei minha espada e quis obrigar o mal criado a se retratar! Na confusão ele tropeçou e... Caiu sobre minha espada! Foi um acidente!

ELA: (ELA SENTA NA CADEIRA COM DIFICULDADE – É UMA VELHA) Meu irmão só me falou no final da festa que ele não viria... Disse que não queria atrapalhar a minha alegria... Como se minha alegria não dependesse unicamente da presença dele... Meu irmão falou que ele estava preso... Que tinha matado um rapaz... Mas eu não acreditei! Tinha que ter alguma coisa por trás disso! Alguém querendo me atrapalhar. Querendo se vingar de mim. Aquele rapaz tão maravilhoso... Amigo de meu irmão Edgard... Não poderia assassinar alguém... Seria impossível... No fundo eu sabia que meu pai é que tinha atrapalhado... Era a sua vingança... A guerra estava prestes a começar de novo... Meu pai tinha muita influência... Ele se vingou de mim...

ELE: (ELE REJUVENESCE – ESTÁ BEM JOVEM E IMPULSIVO) O tal rapaz morreu! Morreu ali na minha frente! Fui preso! Tentei argumentar com o oficial que me prendeu que tinha sido um acidente! E mesmo que não fosse! Era a honra da família de nosso herói maior que estava sendo manchada! Um homem que morreu na guerra defendendo a nação! A festa aconteceria apesar de estarmos em plena guerra! Era uma homenagem a memória de nosso herói maior! E a filha dele estava me esperando! Mas o oficial não quis saber, não! Falou que o assunto era muito grave... Que não podia me liberar! Precisava fazer um inquérito... Ou coisa assim! Ele não podia... Ou não queria deixar! Por causa de uma briga estúpida deixei de conhecer aquela... Aquela que seria... Deixei de conhecer a irmã do meu grande amigo!

 

(ELA COMEÇA A MEXER LENTAMENTE NA RODA)

 

ELA: Ele não foi! Não apareceu! Uma semana depois recebi flores! Rosas vermelhas! Mas já era tarde... A festa já tinha acabado. Mas o que teria acontecido se ele tivesse... Se ele tivesse dançado comigo... Se a gente tivesse conversado... Se meu ensaio virasse realidade... O que poderia ter acontecido?

 

(A LUZ MUDA – FICA RADIANTE E INTENSA – O ROSTO DELA SE ILUMINA)

ELA: Podíamos ter casado!

 

(UMA MÚSICA SUAVE COMEÇA A TOCAR – ELE FICA ADULTO E SE POSICIONA COMO SE FOSSE UM NOIVO – ELA TIRA O LENÇOL DA CAIXA E COLOCA NA CABEÇA COMO UM VÉU – ELES ESTÃO DISTANTES. COMO SE ELE ESTIVESSE NO ALTAR E ELA NA PORTA DE IGREJA)

 

ELA: No dia do nosso casamento eu estava tão nervosa! O meu véu era o mesmo da minha avó! Ela se casou com ele!

ELE: Ela estava radiante! Linda! Linda como eu jamais pude imaginar!

ELA: O vestido não é maravilhoso? De cetim! O buquê fui eu mesma que fiz! Com minhas próprias mãos! E ficou maravilhoso! Como tivesse sido comprado na mais fina maison!

ELE: Todos os meus colegas da escola militar estavam lá! Perfilados! Com as espadas para o alto fazendo um túnel por onde ela passaria!

ELA: Eu vou entrar sozinha na igreja! Preferi assim! Não quis incomodar mais meu tio e meu pai... Bem... Meu pai não teria coragem de entrar comigo... E nem eu queria!

ELE: Ela entrou sozinha na igreja! O pai já tinha morrido e o tio estava preso! Era realmente um espião! Todo o país estava de olho grudado nesse casamento! O casamento da filha de nosso herói maior!

 

(A MÚSICA SOBE – ELA COMEÇA A ANDAR LENTAMENTE NA DIREÇÃO DELE – ELE ESTENDE A MÃO PARA ELA E ELA FAZ O MESMO NA DIREÇÃO DELE. MAS QUANDO VÃO SE TOCAR A MÚSICA PARA)

 

ELA: (TIRANDO O LENÇOL DA CABEÇA E DOBRANDO) Mas nada disso aconteceu! (ELA COMEÇA A ENVELHECER) Nada disso aconteceu... Sonhei com esse momento... Pensei tanto nisso que chegou a doer! Tentei esquecer, mas também não deu...

ELE: (ELE REJUVENESCE DE NOVO – VOLTA A SER UM JOVEM IMPULSIVO) Porque?

ELA: (ACHANDO GRAÇA) Porquê? Por que ele tentou marcar vários encontros... E o Edgard também! Tentava juntar a gente de qualquer jeito... Acho até que o Edgard queria mais do que ele...

ELE: Quem é Edgard?

ELA: (ELA GUARDA O LENÇOL NA CAIXA, SENTA NO BANCO E COMEÇA A MEXER NA RODA LENTAMENTE) Você sabe! É meu irmão!

ELE: Seu irmão se chama Paulo! E ele não queria mais do que eu não, tá?

ELA: Meu irmão tentou de tudo: teve aquela vez da formatura na escola militar...

ELE: Qual delas?

ELA: Aquela que foi no clube militar... Aquele que foi destruído no bombardeio...

ELE: Aquela formatura que você não foi?

ELA: Eu estava doente. Tive uma pneumonia terrível. Quase morri. Mas na outra formatura você é que não foi... E era a sua formatura!

ELE: Não era mais! Eu desisti da carreira militar! Não podia ir a uma formatura que não era mais minha!

ELA: Porque você desistiu da carreira?

ELE: Não acreditava mais na guerra! Depois que ficou comprovado que a morte daquele infeliz tinha sido mesmo um acidente, percebi a inutilidade dessa guerra! Eu estava prestes a entrar numa luta que eu nem conhecia o motivo! Porque lutamos nessa guerra? Aonde a gente quer chegar com isso?  Não queria viver mais aquilo! (PEQUENA PAUSA) E eu tinha um grande desejo! Um desejo que mexia comigo! Que me deixava vivo: queria encontrar você! Queria estar com você! Mas parecia impossível! A gente não se encontrava nunca! Você parecia tão distante! Nunca ia aos nossos encontros... Pensei em desistir!

ELA: Então você não queria de verdade... Desistiu muito fácil...

ELE: Eu não conseguia te encontrar... Você não ia a nenhum encontro...

ELA: Você também não foi naquela festa de minha família... Era o aniversário de minha mãe... Não era? Não! Eram as bodas de prata...

ELE: Bodas de prata de quem?

ELA: Do meu pai e da minha mãe!

ELE: Isso nunca aconteceu! Seu pai já tinha morrido há muito tempo!

ELA: (SEM DAR ATENÇÃO) Mas eu também não fui! Não ia numa festa pra comemorar o casamento da minha mãe com aquele homem! A festa foi naquele clube... O que foi destruído depois do bombardeio... O Edgard insistiu para que eu fosse... Achava que você estaria lá... Queria nos juntar de qualquer jeito...

ELE: O Paulo tentou muito! Eu já tinha até desistido! Mas ele continuava tentando! Tentou até que conseguiu...

ELA: Demorou muito... Demorou tanto que eu achei que nunca ia acontecer... Mas ele conseguiu... Conseguiu num dos piores dias da minha vida!

 

(ELA PARA DE MEXER NA RODA E REJUVENESCE. É UMA MULHER ADULTA. ELE DEIXA DE SER UM JOVEM E SE TORNA UM HOMEM ADULTO. A LUZ MUDA. FICA SOMBRIA. ELA PEGA UM VÉU NA CAIXA E COLOCA  NA CABEÇA . TIRA TAMBÉM UMA VELA DA CAIXA E ACENDE. UM SINO COMEÇA A TOCAR LENTAMENTE. ELA VAI ATÉ O MEIO FRENTE DO PALCO. ELE SE APROXIMA. FICAM UM DO LADO DO OUTRO EM SILÊNCIO)

 

ELA: (ROMPENDO O SILÊNCIO) Que horror, meu Deus!

ELE: A senhora o conhecia?

ELA: (CHOROSA) É meu irmão! Meu querido irmão! A guerra levou meu irmão!

 

(ELE VIRA LENTAMENTE PARA ELA. ELA CONTINUA A OLHAR PRA FRENTE. ATÉ QUE VIRA PARA ELE)

 

ELA: O senhor é?

ELE: Eu sou o melhor amigo dele!

 

(PAUSA – ELES SE OLHAM INTENSAMENTE ATÉ QUE SE ABRAÇAM)

 

ELE: (NO ABRAÇO) Ele conseguiu!

ELA: (SAINDO DO ABRAÇO) O que foi?

ELE: Ele conseguiu!

ELA: Conseguiu o quê?

ELE: Juntar a gente! Nos apresentar! Ele conseguiu!

ELA: Mas desse jeito? Precisava morrer?

ELE: Foi o jeito que ele arrumou...

ELA: Como você soube... Como você soube da morte dele?

ELE: Ele deixou um pedido entre os colegas que me avisassem se alguma coisa acontecesse com ele...

ELA: E ele sabia onde você estava?

ELE: Sim! Sabia! Nós sempre nos falávamos...

ELA: Falavam? Ele me disse que você tinha sumido! Que não sabia mais de você! Não sabia onde você estava!

ELE: Por carta! Eu escrevi pra ele quase toda semana!

ELA: Mas aonde é que você estava?

ELE: Mudei. Sai do país...

ELA: Saiu do país? E a guerra?

ELE: Fugi da guerra!

ELA: Meu irmão morreu na guerra!

ELE: Eu sei!

ELA: E porque meu irmão não falou que você escrevia pra ele?

ELE: Eu sei porquê! Mas vamos conversar primeiro?

ELA: Agora?

ELE: Acho que é o que ele queria... Que a gente conversasse! Vamos?

 

(ELA APAGA A VELA E TIRA O VÉU – A LUZ MUDA – FICA CLARA, VIBRANTE – ELES SE AFASTAM. VÃO PARA OS CANTOS DO PALCO)

 

ELA: (PARA O PÚBLICO) Eu fui! Conversamos muito! E ele é tudo que meu irmão dizia...

ELE: (PARA O PÚBLICO) Ela foi! Conversamos muito! E ela é tudo que meu amigo dizia...

ELA: (PARA O PÚBLICO) Falamos dos nossos possíveis encontros...

ELE: (PARA O PÚBLICO) Pedimos desculpas pelas ausências...

ELA: (PARA O PÚBLICO) E rimos... Rimos muito... Cheguei até a me sentir meio mal! Afinal o encontro não foi no lugar mais adequado... Eu devia estar infeliz! Meu irmão estava morto! Mas eu... Eu sentia uma alegria tão grande... Não sei se isso era certo...

ELE: (PARA O PÚBLICO) Eu sabia que meu amigo estava feliz! Finalmente ele tinha conseguido... Nos encontramos...

ELA E ELE: (JUNTOS, MAS SEM SE OLHAR) Eu me apaixonei perdidamente!

ELE: (PARA O PÚBLICO) No fundo eu sempre fui apaixonado por ela! (ACHA GRAÇA) É estranho... Como é que a gente se apaixona por alguém que não conhece?

ELA: (PARA O PÚBLICO) Mas tinha um problema!

ELE: (PARA ELA) Eu sei porque seu irmão não falou mais de mim! Ele não queria magoar você... E eu também não! Eu... Eu estou noivo! Mas ainda não tem data para o casamento... Eu não quero mais me casar... Eu não vou mais me casar com ela!

ELA: (FALA PARA O PÚBLICO - DURANTE A FALA ELA GUARDA O VÉU E A VELA NA CAIXA) Noivo? Noivo! É uma brincadeira isso? Levamos anos pra nos conhecer... Quando nos conhecemos... Ele está noivo! Noivo! Quem é que fica noivo hoje em dia? Ainda mais em tempo de guerra! E pra que serve ficar noivo? É diferente de namorado? É um compromisso sem muito compromisso? O que é isso?

ELE: (PARA O PÚBLICO) Eu achei que nunca mais ia encontrar com ela! E afinal de contas quem era ela? Eu não podia ficar esperando por alguém quem eu nem conhecia! Fui pra outro país... Conheci uma mulher maravilhosa e... Fiquei noivo!

ELA: (PARA O PÚBLICO) Mesmo noivo ele me fez uma proposta!

ELE: (PARA ELA) Vamos nos encontrar de novo? Amanhã?

ELA: (PARA ELE) Amanhã? Pra quê? Você está noivo! O que você quer comigo? Eu esperei você! Você não me esperou, mas eu esperei! Foi para outro país! Ficou noivo! E eu fiquei aqui! Esperando! Esperando por alguém que eu nem sabia quem era!

ELE: (SEGURANDO ELA PELOS BRAÇOS) Esquece tudo! Esquece o que passou! Eu já esqueci! Vamos viver a nossa vida! Eu te amo!

ELA: (SE SOLTANDO DELE E FALANDO PARA O PÚBLICO) Ele disse a frase! Ele é maluco! Ele disse a frase! EU TE AMO! (PEQUENA PAUSA) Eu te amo! Eu não queria acreditar! Era impossível! A gente mal se conhecia... Mas ele disse a frase! Eu não queria acreditar, porque também era impossível... Mas... Eu amava! Eu também amava! Não queria, mas amava! (AINDA MEIO TONTA PARA ELE) E a gente vai se encontrar aonde?

ELE: Aqui! Na capela!

ELA: Aqui?

ELE: Aqui na capela!

ELA: Não! Aqui não! É estranho... É meio mórbido...

ELE: Seu irmão tanto fez que conseguiu nos juntar! Vamos nos encontrar amanhã aqui pra viver a nossa vida! É uma homenagem ao seu irmão!

ELA: (PARA O PÚBLICO) E marcamos o encontro! Eu estava morrendo de medo! Depois desse tempo todo! De todos esses desencontros... E ele ainda noivo! Eu não sabia o que pensar! Fez assim... Um buraco! Um buraco enorme na minha frente! Que eu ainda não sei como vou encher! Ai... Porque... Porque... Eu estava tão tranquila! Sozinha... esperando... Mas tranquila! Eu sabia onde estava! Podia esticar as mãos e alcançar as coisas! Agora não posso alcançar mais nada! Não sei o quê alcançar! Não sei o quê está acontecendo? Agora não sei mais!

ELE: (PARA O PÚBLICO) É difícil! Será que vai dar certo? A minha vida estava indo por um lado, mas de repente deu uma volta! Uma guinada! Acho que na verdade eu sempre quis essa guinada! E eu fiquei pensando na gente: (PARA ELA) Como é que vai ser?

 

(A LUZ MUDA – UM CLIMA DE SONHO – OS DOIS COMEÇAM LENTAMENTE A ENTRAR NESSE CLIMA)

 

ELA: Não sei! Depois desse tempo todo! Como é que eu vou saber? Tinha planos... Ideais... Pensei em tantas coisas! Mas agora eu não sei...

ELE: Podemos começar do começo: vamos morar numa casa!

ELA: Sem casar?

ELE: Não! Depois de casados!

ELA: Você vai querer ficar noivo também?

ELE: Não. Acho que não precisa...

ELA: Ainda bem! Acho que estou meio velha pra isso!

ELE: Não está não! Você está linda! Mas vamos casar logo! Casamos e vamos morar numa casa... Uma casa com varanda, quintal e jardim! Podíamos ter uma horta! (OS DOIS OLHAM COMO SE VISSEM A CASA) A gente podia plantar e colher juntos! No fundo do quintal podíamos ter um galinheiro!

ELA: É?... Não sei! Casa... Sei lá... Dá muito trabalho! Prefiro um apartamento!

ELE: Mas você não mora em casa?

ELA: Por isso mesmo! Eu sei o trabalho que dá! Apartamento é melhor!

 

(ELA OLHA PARA OUTRO LADO COMO SE VISSE O APARTAMENTO)

 

ELE: Como você achar melhor! Moramos num apartamento!

ELA: (SE MOVIMENTA COMO SE ANDASSE PELO APARTAMENTO) É... Um apartamento... Um apartamento jeitoso... Grande! Grande e jeitoso! Assim... Aconchegante! Podíamos colocar cortinas nas janelas! As janelas teriam jardineiras! Podíamos até fazer a horta nessas jardineiras! Coisinhas pequenas! Temperinhos! Aqui podia ter um sofá... Um não! Dois! Dois sofás! Um de frente para o outro! Uma mesa de centro e uma mesinha pequena do lado desse sofá... Eu podia bordar paninhos... Com minhas próprias mãos...

ELE: A gente podia ter um cachorro!

ELA: Cachorro? Pra quê?

ELE: Sei lá! Pra brincar!

ELA: Não... Cachorro não! Dá muito trabalho! Ainda mais em apartamento! Tem que levar para passear! Prefiro gato! Gato é mais independente!

ELE: Gato é muito arisco! E iria rasgar suas cortinas todas! Afiar as unhas no sofá!

ELA: É verdade. Então, o quê?

ELE: Um papagaio!

ELA: Papagaio não! Não mesmo! Esses bichos ficam imitando o que a gente fala! Tem que tomar muito cuidado com o que se fala perto deles! Depois ele pode dizer palavrões...

ELE: Quem é que vai ensinar palavrão pra ele?

ELA: Você! Eu não falo palavrão! Você vai ensinar um monte de palavrões pra ele... Vai achar uma graça louca disso! E quando eu receber minhas amigas e esse bicho começar a dizer nomes... Com que cara eu vou ficar? Papagaio não!

ELE: Que tal um periquito?

ELA: Periquito?

ELE: É! Periquito é ótimo! Pequeno! Quase não dá trabalho! Eu posso ensinar coisas pra ele! Posso botar uma comidinha no canto da boca... Ele vem e come!

ELA: Que nojo!

ELE: Nojo nada! É muito legal isso!

ELA: Porcaria! Aliás, não entendo porque criam periquito! Pra quê que alguém cria periquito? Serve pra quê? Deixe o bicho solto...

ELE: Tá! Tudo bem! Mas eu quero ter um bicho!

ELA: Tá bom! Aceito! Voltamos ao cachorro! Mas vira-lata e pequeno! Bem pequeno! Que dá menos trabalho! Podíamos chamar ele de... de quê?

ELE: Brutus!

ELA: Não, Brutus, não! É muito agressivo! Que tal... Lulu?

ELE: Você tá brincando, né?

ELA: Porquê?

ELE: Pelo amor de Deus, né? Eu não vou ter um cachorro chamado Lulu!

ELA: Então a gente podia dar um nome de gente pra ele!

ELE: Podíamos chamar ele de Edgard!

ELA: Edgard não! De jeito nenhum! É um nome muito importante! Que tal... Moisés?

ELE: Moisés? É... Moisés eu gosto! Vem, Moisés! Junto, Moisés!

ELA: É ótimo porque ele vai brincar com as crianças!

ELE: Que crianças?

ELA: Nossos filhos!

ELE: Filhos? Quantos?

ELA: Ah... Não sei! Uns quatro!

ELE: (ELE ACHA GRAÇA) UNS QUATRO?

ELA: É! Um número redondo!

 

(ELA VAI ATÉ A CAIXA, PEGA O LENÇOL E ENROLA COMO SE FOSSE UM BEBÊ)

 

ELE: (AINDA ACHANDO GRAÇA) Redondo é zero... Seis... Nove... Oito... Quatro é reto!

ELA: Redondo... Eu disse... Porquê... Sei lá porquê eu disse redondo! Mas eu gosto de quatro!

ELE: Quatro filhos! Muita despesa... Muita preocupação...

ELA: Meu bem, tá precisando comprar fralda e o Edgarzinho precisa ir ao dentista...

ELE: Quem é Edgarzinho?

ELA: O nosso filho mais velho!

ELE: Vai ter um mais velho? Eles não vão nascer todos ao mesmo tempo?

ELA: Como assim?

ELE: Gêmeos!

ELA: Ah, não! Melhor um de cada vez! Imagina... Os quatro dentro de mim? O barrigão que eu vou ficar! Não! Nasce um de cada vez! Eles vão ser lindos... Vão dar o primeiro sorriso pra gente... Um de cada vez!

ELE: Vão chorar de noite! Trocar a noite pelo dia!

ELA: Vão dar os primeiros passos...

ELE: E aí vão mexer em tudo e quebrar tudo que tem dentro de casa!

ELA: Vão para escola! O primeiro dia de aula!

ELE: Aí que a despesa aumenta: livros, cadernos, lanches, boletins... Fora as repetências! E aí começa tudo de novo!

ELA: A gente pode ajudá-los nos estudos...

ELE: Depois eles vão crescer! Vão virar adolescentes! Já imaginou? Quatro adolescentes! E se eles terão idades diferentes... Passaremos pelas quatro adolescências... Uma após a outra... Adolescentes chatos... Reclamões... Tem certeza que você não quer gêmeos? A gente passa por tudo uma vez só!

ELA: Eles podem ser bons meninos!

ELE: Meninos? Serão todos meninos?

ELA: Ah... Podemos ter uma menina... Talvez duas...

ELE: Meninos e meninas? Vamos ter que ter quartos separados! Vários quartos e várias camas!

ELA: Dois beliches! É a solução! E podemos aproveitar o mesmo berço para os quatro! Podia ser assim como uma tradição da nossa família! O berço seria usado pelos quatro... Depois pelos filhos dos quatro... E depois os filhos dos filhos dos quatro... Passando de geração em geração... Um berço que você faria! Com as suas próprias mãos!

ELE: Eu não sei fazer nada com as mãos! Não sei nem pregar um prego!

ELA: (SEM DAR ATENÇÃO) Nós teríamos que reformar o berço de tempos em tempos! Você poderia ensinar ao Edgarzinho como fazer o berço. E ele ensinaria a seu filho... Que ensinaria ao seu filho... E a tradição continuaria!

ELE: Quatro filhos é muita coisa! Não pode ser menos?

ELA: Tudo bem: três!

ELE: Ainda é muito!

ELA: Um casal! Edgarzinho e... O nome da menina... Pode ser... O nome da menina depois a gente pensa!

ELE: Pode ser Paula!

ELA: Porque Paula? É o nome da sua ex-noiva?

ELE: Não! É o nome de um grande amigo meu que você sabe muito bem quem é!

ELA: Está bem! A menina será Paula! Um casal! Porque menos que isso também não dá! Filho único sempre é problemático! Ele não vai ter com quem brincar e depois vai culpar a mim ou a você por todos os males do mundo!

ELE: E tem que ter filho?

ELA: Claro! Depois você arruma uma amante e eu fico sozinha!

ELE: Eu não vou arrumar amante nenhuma!

 

(ELA AINDA ESTÁ COM O LENÇOL NA MÃO E MOSTRA PARA ELE)

 

ELA: Que mancha é essa? É mancha de batom na sua camisa! De quem é esse batom!

ELE: Batom? Que batom?

ELA: Esse batom na gola da sua camisa! É daquela vagabunda! Tenho certeza que é daquela vagabunda!

ELE: Que vagabunda, mulher?

ELA: Não sei! Qualquer uma delas! Todas são vagabundas mesmo! Essas suas amantes!

ELE: Amantes? Mais de uma? Eu não vou ter amantes!

ELA: (PARA O PÚBLICO) Eles sempre dizem isso! Mas depois que a gente fica velha, sem cintura, gorda, cabelo pintado... Louro, né? Passa uma vagabundinha, trinta anos mais nova, na flor da idade, peitinho em pé, tudo no lugar! Aí é que eu quero ver!

ELE: (PARA O PÚBLICO) Ela fala assim, mas ela também pode encontrar um garotão... Novo... Todo forte! Tá na moda coroa com garotão...

ELA: (PARA ELE) Quem é coroa?

ELE: (PARA ELA) Quando você virar coroa! A gente não vai envelhecer junto?

ELA: Eu não vou arrumar garotão nenhum! E estamos em guerra! Os garotões estão indo pra guerra! E além do mais eu me dou ao respeito!

ELE: Olha aí! E isso é falta de respeito por acaso?

ELA: Pra mim é!

ELE: (MUDANÇA DE TOM) E se desse certo?

ELA: Eu com um garotão?

ELE: Não! A Gente!

ELA: A gente o quê?

ELE: E se a gente desse certo? Sem imaginar nada! Sem pensar no quê poderia ser!

ELA: E o outono?

ELE: O outono nunca vai chegar! Eu prometo!

ELA: Você promete?

ELE: Prometo! A gente vai ser feliz pra sempre!!

ELA: Quem sabe?

ELE: Eu sei! Marcamos amanhã? Você vem?

ELA: Eu espero você amanhã!

 

(A LUZ MUDA – UMA LUZ SOMBRIA – ELA GUARDA O LENÇOL NA CAIXA E SENTA NO BANCO COMO SE ESPERASSE)

 

ELE: (PARA O PÚBLICO) Pode dar certo! Tem tudo para dar certo! Eu já vivi tantas coisas! Tantas experiências! Nos desencontramos muitas vezes... É verdade! Tem gente que acha que quando uma coisa é muito difícil é melhor desistir! Mas... Sei lá! Não quis desistir! E eu fico pensando: talvez... Se a gente tivesse se conhecido... Conhecido quando jovem... Talvez não desse certo! A juventude às vezes atrapalha! É tanta coisa pra ver... Tanto pra conhecer... Cheios de sonhos... Desejos... Descobertas... Eu conheci várias mulheres... Até noivo fiquei... Não sei nem porque fiquei noivo... Talvez para esquecê-la... Como se esquece alguém que não conheceu?

 

(ELE SENTA – PARECE DISTANTE, ALHEIO A TUDO – ELA O OBSERVA)

 

ELA: (DEPOIS DE PEQUENA PAUSA) Envelhecer junto... Criar os filhos... Depois os netos... Viver um futuro! Não mais sonhar com ele! Viver! É bom demais para ser verdade! É tão bom que dá medo! Começar um novo caminho... Um caminho diferente! Esquecer os caminhos que não aconteceram! Não se pode voltar a um caminho não começado. Ele se perde. Só fica o desejo do que poderia ter sido. (A VALSA RECOMEÇA – ELE SE LEVANTA E SE APROXIMA DELA) Podíamos ter nos conhecido no meu baile de debutantes! (ELES FAZEM OS MOVIMENTOS DESCRITOS POR ELA) Como no meu ensaio faríamos a reverência, trocaríamos sorrisos e depois... Dançaríamos! (ELE A TOMA EM SEUS BRAÇOS – OS DOIS COMEÇAM A DANÇAR) Teríamos uma vida inteira juntos! Alegrias... Tristezas... Recordações magníficas para lembrar! Uma vida inteira para ser vivida! Sonhos realizados! Mas não aconteceu! (ELES PARAM DE DANÇAR – A VALSA PARA) O arrependimento é um sentimento vão! Não nos conforta, não resolve, não faz o tempo voltar! Não serve pra nada! Nada! A não ser pra gente sofrer pelo que fez ou pelo que deixou de fazer! (ELE COMEÇA A ENVELHECER. CAMINHA COM DIFICULDADE PARA VOLTAR A SENTAR – É UM HOMEM VELHO QUE FICA GIRANDO A RODA LENTAMENTE – ELA O OBSERVA – DEPOIS QUE ELE COMEÇA A MEXER NA RODA ELA VAI PRA FRENTE DO PALCO – É UMA MENINA FELIZ) Mas tínhamos um encontro! Finalmente tínhamos um encontro! A minha ansiedade era tanta que mal consegui dormir! Levantei cedo! Me fiz bonita para o nosso encontro! Ajeitei o cabelo! Pus o meu melhor vestido! Me perfumei! O dia estava radiante! Tudo estava perfeito! Era o nosso encontro! Íamos viver as nossas vidas! (ELA VIRA-SE PARA ELE – ELE ERGUE-SE RADIANTE – PARECE QUE VÃO SE ABRAÇAR – ELA VIRA-SE PARA O PÚBLICO – É UMA MULHER ADULTA) Mas ele não veio! (ELE SENTA NOVAMENTE E ENVELHECE – GIRA LENTAMENTE A RODA) Esperei por duas... Três... Quatro horas! Voltei a capela no dia seguinte, no outro, durante uma semana! Pensei que ele podia estar doente, podia ter sofrido um acidente... Podia até estar morto! Passei anos perguntando, a mim mesma, o que teria acontecido! Depois passei mais alguns anos me perguntando porquê eu pensava nisso! (PEQUENA PAUSA) A gente pensa muito! A cabeça está sempre funcionando... Pensa tanto que deixa... Deixa de fazer as coisas! Fazer o que tem que ser feito! Eu acho que esse é o grande mal da humanidade: Pensar! Quem não pensa sofre menos! (PEQUENA PAUSA) Eu queria ficar com a cabeça vazia! (PEQUENA PAUSA) Decide esquecer! Resolvi viver pra sempre na casa de minha mãe! A guerra... A guerra levou todos que me cercavam! Primeiro meu irmão, depois minha mãe, meus parentes, os criados... Nunca soube que fim teve meu pai! Passei a viver sozinha na casa! Sem lembranças! Sem histórias pra contar! Sem saber porquê? (ELA VAI ATÉ O PEQUENO ARMÁRIO E TIRA UMA CARTA)

ELE: (PARA O PÚBLICO) A gente acorda... Abre os olhos... Escova os dentes, toma café, vai trabalhar, almoça qualquer porcaria, trabalha mais, depois vai pra casa, janta alguma coisa e volta a dormir... No dia seguinte a mesma coisa! No final de semana a gente sai com os amigos... Quando tem amigos... Bebe! Bebe por tudo: pra lembrar, pra esquecer, pra comemorar, pra chorar! Bebe pra beber! Bebe sem desculpa! Até realiza alguma coisa! Alguns escrevem livros... Constroem algo... Criam obras... Isso serve pra quê? Pra quê a gente sai todo dia de casa? Pra ser feliz? A gente tem que ser feliz pra quem? Porquê? Pra gente é que não é! (PEQUENA PAUSA) Dá um vazio! Um vazio grande! Um buraco! E o vazio também não serve pra nada! Tantas vezes tive vontade de acabar com esse vazio... Dar fim a tudo... Mas eu não sei o quê vem depois! (PAUSA – ELE VOLTA A MEXER LENTAMENTE NA RODA) Casei com minha noiva... Nossa vida era um inferno! Tive um filho com ela, mas a abandonei antes dele nascer... Nunca conheci meu filho! Não queria ter histórias para contar com outra pessoa... (PEQUENA PAUSA) Casamento não traz felicidade! Ah... Mas não traz mesmo!! Esse negócio de amor... Isso passa! Acaba! Ninguém casa pra ser feliz... A gente casa pra ter alguém pra ouvir os nossos resmungos... (PEQUENA PAUSA - ELE FALA PARA ELA) Se nada aconteceu porque essas lembranças agora? Porque lembrar isso tudo hoje? Trazer essas memórias pra quê? O quê eu estou fazendo aqui?

ELA: (COM A CARTA NA MÃO) Recebi há dez anos uma carta sua!

ELE: Você não me respondeu! Nunca respondeu!

ELA: Eu nunca li! (PEQUENA PAUSA) Essa carta ficava ali... No armário... Lembrando que eu tenho que esquecer... Mas hoje, depois de dez anos, resolvi abrir a carta! (ELA TIRA A CARTA DO ENVELOPE)

ELE: (DESCONCERTADO) Eu explico tudo... Tudo que aconteceu... Explico porque não fui ao nosso encontro... E peço...

ELA: (INTERROMPENDO) Abri a carta, mas não li! Não quis e não quero ler! Não quero mais saber!

 

(ELA RASGA A CARTA EM PEDAÇOS E OS DEIXA CAIR NO CHÃO)

 

ELE: (ERGUE-SE E VAI LENTAMENTE EM DIREÇÃO A ELA) Você lembra que eu ensinei você a andar de bicicleta?

ELA: Eu não sei andar de bicicleta! Nunca aprendi!

ELE: E a guerra? A guerra acabou?

ELA: Não! A guerra nunca vai acabar! Estaremos eternamente em guerra!

ELE: O que você vai fazer?

ELA: Eu vou embora!

ELE: Embora? Como assim? Vai embora da onde?

ELA: Dessa vida! Dessas lembranças!

 

(ELA VIRA E FAZ MENÇÃO DE SAIR)

 

ELE: Você vai embora?... E o que vai ser?...

ELA: Não sei. Passei a vida sem saber. Passei a vida imaginando o que seria! Vou ser alguma coisa! (PEQUENA PAUSA) Talvez... Talvez, não! Vou! Vou aprender a andar de bicicleta! É um começo!

ELE: Você vai fazer o quê?

ELA: Eu? Eu vou ser feliz pra sempre!

ELE: Ninguém é feliz pra sempre!

ELA: Mas eu vou ser! Não sei como! Não sei aonde! Mas vou ser feliz pra sempre!

ELE: E eu? E as nossas lembranças?

ELA: Lembranças?! Faça o que quiser delas!

ELE: E o outono? O outono já chegou?

ELA: Ainda não!

ELE: E quando ele chegar? O quê você vai fazer?

ELA: Não sei! Mas não quero mais esperar pelo outono!

 

(ELA VAI ATÉ A CAIXA, DÁ UM PUXÃO FAZENDO A RODA GIRAR COM FORÇA E SAI DE CENA. ELE AJOELHA-SE COM DIFICULDADE DIANTE DOS PAPÉIS PICADOS E TENTA ARRUMÁ-LOS COMO UM QUEBRA-CABEÇAS – A LUZ DESCE EM RESISTÊNCIA)

 

FIM

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